Por Afonso Machado
A lua anuncia o sol através de uma mensagem de voz no celular. Os sentidos da massa diariamente abatida por predadores civilizados, estão mobilizados para a escravidão já nas primeiras horas da manhã . Todos prontos para torturar o corpo nas jornadas de trabalho que dizem “ não “ á vida. Como viver na cidade? Para Aristóteles a cidade deveria ser o espaço da felicidade e da harmonia. Estas últimas palavras eram certamente estranhas para o escravo ateniense da Antiguidade. Elas também o são para os trabalhadores das cidades capitalistas de 2020.
Isolados no monumental fluxo humano, as pessoas tem a impressão de que tudo se passa objetivamente em suas vidas. Entretanto, sabemos que esta pretensa objetividade nada mais é do que subjetividade da classe proprietária.
Ninguém que leva a sério a luta política anticapitalista, pode subestimar a grande habilidade histórica que a burguesia possui para fazer da sua subjetividade a subjetividade da classe trabalhadora.
O próprio burguês não gosta de ser apresentado com este nome. Assim muitos dizem que a burguesia não existe mais: como num filme de horror do século passado, o burguês surge como um vampiro que está por aí há séculos, beneficiando-se com aqueles que afirmam que ele não existe.
Neste contexto em que trabalhadores e patrões não aparecem como realmente são, não são chamados pelo seu verdadeiro nome, construções ideológicas fazem da ignorância um elogio diário. Mergulhada na linguagem de um pesadelo medieval, parte considerável dos trabalhadores brasileiros pensa que o causador das suas desgraças é o diabo. Mas este último não tem nada a ver com as armações do capitalismo; inclusive o diabo deveria processar o Estado por injúria e difamação. Hilário? O trágico nisso tudo é que existe uma grande dificuldade para a crítica materialista combater as lorotas metafísicas. A hostilidade ao conhecimento da realidade parte muitas vezes do próprio explorado. É assim que muitas famílias proletárias insurgem-se contra um educador que em sala de aula coloca os filhos daquelas em contato com autores seminais como Darwin, Freud e Marx.
Porém, a distorção da realidade pelos óculos do dominador não impede que as contradições adentrem no aparelho da percepção. A dialética materialista não é um talismã, ela é a força motriz que explica a organização das sociedades, os modos de vida. Sente-se através dos olhos e dos ouvidos que a miséria e as frustrações existem na sociedade atual. Será assim para sempre? Será que o “ sempre “ existe? O mundo não é estático, a vida está em movimento: somente os penteados dos anjos ou as vestes dos santos não mudam. Abrir os olhos para entender que estamos com a cara enfiada na história, é algo que passa também por um esforço estético. Os capitalistas trancaram muito mal o baú que contém as imagens/as lembranças dos dramas históricos, dos conflitos de classe ao longo da história.
Um trabalhador educado para entender que a continuidade do mundo seria tão somente a continuidade da sua vidinha , dos seus pequenos sonhos de sucesso individual, pode descobrir no choque com imagens do passado que os dados estão lançados, que a história está em aberto. Os trabalhadores revolucionários da cultura devem ter numa mão o celular e na outra uma pá: escavando o passado, arrancando do esquecimento multidões de anônimos personagens obreiros de todas as eras, podemos espalhar clandestinamente pela cultura imagens da luta de classes. Através da estratégia das analogias históricas , ocorre um possível ganho na consciência de classe. Vejamos :
EXEMPLO 1:
Uma faxineira terceirizada, que por ventura machuca as mãos com cacos de vidro num banheiro ou no fundo de uma sala escura de uma empresa, pode levar um susto danado se souber que operárias do século passado tinham as mãos muitas vezes cortadas e até decepadas pelas máquinas na indústria têxtil.
Não seriam estas operárias irmãs históricas daquela faxineira?
É papel da Esquerda demonstrar que o passado contém símbolos revolucionários. Diferentemente do senso comum, datas históricas não são números que abrigam meras coletâneas de fatos: as datas podem ser números que anunciam a memória das revoluções. Vejamos:
Exemplo 2:
Um trabalhador brasileiro trajando seu boné, sua camiseta, seu bermudão e sua correntinha no peito, se depara por acaso na rua com números de casas como 1789 e 1917… Se ele pudesse ser informado que estes números são para a história o que o relâmpago é para o céu, esse cara teria a capacidade de relacionar seu bermudão com os trajes dos Sans Culottes!
Ele poderia vislumbrar um parentesco entre seu boné surrado e a boina de um operário russo que estava á frente de um Soviete!
Articular imagens históricas para fazer com que o passado invada criticamente o presente, é certamente um dos mais importantes gestos políticos/culturais da militância de esquerda hoje.