O cangaceiro queer de Bacurau passou por dificuldades, como seu personagem, e hoje é referência em Mombaça (CE)
Por Caroline Oliveira
Quem vê mandacaru – também conhecida como cardeiro e jamacaru – na caatinga nordestina, em época de seca, pensa que ali não há nada tampouco vida. Basta, entretanto, a chuva dar os primeiros pingos, que a flor do mandacaru aparece. O ator Silvero Pereira, que fez a personagem de Lunga, o cangaceiro queer de Bacurau, de Kléber Mendonça Filho, gosta da metáfora para caracterizar a região do país: a potência de um lugar visto como chão rachado e sol na cabeça.
Outra reflexão: para o ator, a arte é um fator da sociedade tão elementar quanto saúde, educação e política partidária. “Faz parte do corpo social”, afirma, “a diferença é que a arte talvez seja o coração, e a política, o cérebro. Uma coisa contradiz a outra em determinados momentos, mas são complementares”. Nesse sentido, para ele, “a arte é o primeiro órgão a denunciar uma sociedade doente.”
O ator é cearense de Mombaça, quatro horas de Fortaleza. Além de Silvero, também é Gisele Almodóvar, seu alter ego, seu mandacaru e sua arte, que surgiu de uma pesquisa para a montagem de seu solo teatral, Uma flor de dama, de 2002, e passou a ser sua armadura de liberdade e questionamento.
Um dos quatro filhos de um pedreiro, que trabalhava três meses fora e ficava três dias em casa, e de uma lavadeira, Pereira vem de uma família que passou pelos cenários da fome e da sede, principalmente durante a década de 1980 – período difícil para a população do sertão nordestino.
“Eu tive que andar bastante atrás de água potável, trabalhar desde os 13 anos de idade para conseguir complementar a renda familiar e ter dinheiro no final do mês para fazer uma feira de alimentos.”
Sua primeira atuação, um tanto inusitada, começou aos sete anos, quando apresentava para quem quer que fosse, ou ninguém, um canal com programações diárias, o SilverShow. Realizava quadros dignos de uma TV Globo: jornal, talkshow, novela e comerciais. Tudo se passava dentro da casa de Silvero e de sua imaginação.
“Logo cedo eu pegava o jornal roubado do vizinho, colocava em cima da mesa enquanto a minha preparava o café e começava a ler: ‘Hoje aconteceu uma tragédia em tal lugar e nesse exato momento…’” e depois “eu falava: boa tarde”.
Não parava por aí. O principal programa, que levava o nome da emissora, o SilverShow, era gravado dentro do banheiro. O quadro começou quando Silvero estudava de manhã. Quando o transferiram para o período da tarde, “isso virou uma problema na minha vida, porque o programa começava às cinco da tarde, e eu não podia atrasar”.
Quando o relógio batia 16h40, Silvero se despedia da professora e corria para o banheiro de sua casa, sentava na privada e dizia: “Olá, gente, estamos começando mais um programa”. Para a sua família, apenas dizia que precisava tomar banho às cinco da tarde.
O teatro singelo protagonizado por ele na mesa da cozinha ou na privada do banheiro deu lugar a Elis Miranda e Nonato, em A Força do Querer, na TV Globo; a Lunga, em Bacurau; a Severino, em Serra Pelada; a Edith Piath, no Show dos Famosos; sem contar as atuações em peças de teatro, sua maior paixão. E o SilverShow, mesmo, é levado pelo nordeste, dentro do carro de Silvero, que roda os estados carregando a arte para os rincões.
“O SilverShow é esse lugar muito carinhoso que eu tenho que vem do infantil, mas que hoje eu consigo olhar para essa perspectiva e ver o quanto aquela criança já era engenhosa e produtiva, que talvez por isso o Silvero hoje, esse geminiano que trabalha com seis pessoas ao mesmo tempo, tem muito ainda dessa criança”.
Estudante de escola pública, foi trabalhar em um comércio de uma tia, aos treze anos, em Fortaleza. Quando terminou os estudos básicos, formou-se em Artes Cênicas Pelo Instituto Federal do Ceará. “Sou exatamente o que você está dizendo: do interior do Estado, com toda uma carga de preconceito machista e homofóbica, por ser artista e LGBTQIA+”. Por isso é tão importante para ele afirmar quem é, em todos os lugares onde aparece.
Foi o que aconteceu quando eleito o homem do ano, em 2019, pela Revista GQ: compareceu à premiação montada de Gisele Almodóvar. “Nessa noite eu gostaria de homenagear a minha mãe. Algumas pessoas, talvez, eu espero estar enganado, se perguntam como alguém pode vir a um prêmio chamado ‘homem’ do ano vestida dessa forma”.
“Se eu estou aqui, é porque uma mulher fez isso por mim. Uma mulher lavadeira, uma avó cabocla, uma avó indígena, um avô negro e um avô branco. Se eu estou desse jeito, é porque em diversos momentos disseram que eu não podia”, completou.
No Festival de Cannes, Gisele também levou para o tapete vermelho um pouco de quem é o ator e as questões que carrega consigo. Gisele mostra o que Silvero traz de Mombaça, mas também leva Lunga – um reconhecimento nacional trazido pelo filme Bacurau, que alimenta o ego. “Mas eu me alimento o tempo inteiro para não cair nessa doença. Eu sei bem a minha trajetória. Eu sei bem da situação social do país, da minha cidade, das pessoas que estão lá”, disse.
Lunga, de unhas compridas e pintadas, cabelos longos, colares de ouro do tipo ostentação, roupas extravagantes, sujo de um sangue que não é o seu e com uma peixeira na mão fala sobre “quem somos de verdade”. Bacurau é o respeito e a admiração acima das diferenças, “é a união em torno de um bem maior, que é não ser aniquilado”. “Esse é o Brasil que dá certo. É um filme de ficção, a gente não precisa pegar em paus e pedras, mas precisa se unir. Quais são as armas que a gente usa hoje?”
Assim como Lunga para Bacurau, ou Gisele para Silvero, o ator nordestino é referencia em Mombaça. Apesar de existir resistência por parte da classe alta e política, assim como em Bacurau, ocorre o oposto na comunidade em geral. “A comunidade me tem como alguém realmente de referência”, afirma.
“Tem um momento em que o Lunga fala: ‘é muito difícil voltar pra cá!’ Eu também saí da minha cidade muito cedo por não concordar com o sistema político daquele lugar, do coronelismo brutal, que existe no interior do estado do Ceará e do Brasil”, afirmou ao MdeMulher.
Silvero saiu para estudar e trabalhar, mas toda vez que retorna a Mombaça, retorna como “um certo tipo de herói”. “As crianças olham para mim com um olhar de esperança, de alguém que veio de um lugar muito pobre, mas conseguiu sobreviver e vencer”.