Os Estados Unidos detém um dos maiores índices de abandono escolar no ensino médio entre os países industrializados. Seus estudantes do último ano do ensino médio têm pior desempenho do que seus colegas em países mundo afora. Metade dos adolescentes não compreendem frações simples. Metade das crianças de nove anos de idade são incapazes de realizar operações simples de multiplicação e divisão. Apesar de nunca ter sido tão alto o número de alunos que estão fazendo exames de admissão em universidades, apenas 22% estão preparados para frequentar aulas universitárias de inglês, matemática e ciências. Muitas escolas rurais e urbanas sofrem com problemas como salas superlotadas, equipamentos inadequados e professores que são forçados a custear o material básico com o próprio bolso. Os Estados Unidos, se realmente se empenharem na criação de um novo sistema educacional para o século 21, a primeira medida a ser tomada é levar a profissão de professor a sério.
O então senador Barack Obama faz essas revelações e mais, pinta um quadro de desesperança na política, economia e no panorama social de hoje em seu país, em “A Audacia da Esperança – Reflexões sobre a reconquista do sonho americano”, Larousse, 2007. O sistema de saúde está quebrado. Reduziram-se os recursos em pesquisas. A globalização aumentou enormemente a instabilidade econômica dos americanos e fez emergir a “economia dos poderosos”, “na qual a maré alta não necessariamente levanta todos os barcos”. O “vício em petróleo” e a ameaça terrorista visando regiões produtoras abala a segurança da nação, dependente de governos frágeis dos países fornecedores. O crescimento econômico foi anêmico em criação de empregos. Saltos de produtividade achataram salários. O salário mínimo, sem aumento há uma década, não compra hoje o que comprava em 1955. O número de pobres aumenta. O sistema capitalista não aguenta fazer frente aos problemas sociais. “O 11 de Setembro fêz os americanos sentirem seu mundo virar de cabeça para baixo”.
A maioria dos eleitores pensa que todos em Washington estão apenas “brincando de fazer política”. Obama indaga: “que processo é esse, que impede pessoas razoáveis e conscientes – os senadores – de trabalharem pela nação? Os republicanos são incapazes de governar”.
A ideia central da Declaração da Independência, compreendida por qualquer americano, “nos guia e traça nosso rumo dia após dia”. Isto é, “de que nascemos livres, todos nós; de que cada um de nós vem ao mundo com um conjunto de direitos que não podem ser tirados por pessoa ou Estado algum sem justa causa; que através da nossa própria vontade nós podemos e devemos fazer da nossa vida o que quisermos”. O conjunto de liberdades individuais identificadas pelos Fundadores “são as relíquias de nossa Constituição”.
Mas “uma Declaração não é um governo”. Não fazer nada agora implica legar um país “em que a frustração econômica levará as pessoas a se voltar umas contra as outras”. E, o pior, não fazer nada “implicará menos oportunidade para os jovens americanos, um declinio na mobilidade social ascendente que sempre foi uma das principais promessas deste país desde sua fundação”.
As reflexões de Obama não permitem acreditar que o sonho americano possa um dia ser reconstruído, tais as análises desalentadoras que faz em oito temas enraizados na vida do país: Republicanos x Democratas, Valores, Nossa Constituição, Política, Oportunidades, Fé, Raça, Política Externa. Ele dizia em 2007 não saber como começar o processo de mudança da política e da vida cívica americana. “Não sei”. Ofereceu algo mais modesto: reflexões sobre os valores e ideais que o levaram à vida pública. Um lampejo de cada um dos oito itens de Obama sobre a maior democracia do mundo, “uma nação despedaçada”, pode servir de aperitivo para a releitura de sua “A Audácia da Esperança”. Não há nenhum sonho à vista, nem o tal que o mundo supunha fosse uma vida com liberdade, justiça e prosperidade para cada americano se fazer por si mesmo.
REPUBLICANOS X DEMOCRATAS – “…o que incomoda é a disparidade entre a magnitude dos nossos desafios e a pequenez da nossa política, a facilidade com que somos distraídos por coisas insignificantes, a maneira crônica como evitamos as decisões dificeis, nossa aparente incapacidade de chegar a um consenso para atacar qualquer grande problema”.
A certeza de Obama é de que os argumentos dos liberais são mais frequentemente fundamentados na razão e nos fatos. “O que caracteriza a estrutura ideológica dos republicanos de hoje é o absolutismo e não o conservadorismo. O absolutismo do mercado livre, a ideologia do fim de impostos ou da intervenção estatal, a ausência de uma rede de proteção, a ausência de governo, enfim, além do estritamente necessário para proteger a propriedade privada e prover a segurança nacional”.
E há o absolutismo da direita cristã, “um movimento que insiste em que o cristianismo é a fé dominante nos Estados Unidos, que sua corrente fundamentalista deve nortear as políticas públicas, atropelando qualquer fonte alternativa de entendimento, sejam os escritos de teólogos liberais, as descobertas da Academia Nacional das Ciências ou as palavras de Thomas Jefferson”. “Não somos mais apenas uma nação cristã, somos uma nação judáica, muçulmana, budista, hindu e uma nação de descrentes”.
“É hora de ambos os partidos colocarem de lado a animosidade, abaixarem as armas e se concentrarem em governar o país. A menos que os líderes políticos estejam abertos a novas ideias e não apenas a um novo arranjo político, não mudaremos o coração e a mente de um número suficiente de pessoas que possibilite construir um governo com energia ou enfrentar seriamente os nossos desafios. Ou quem sabe a política esteja tão trivial que não haja mais volta, de forma que a maioria das pessoas a enxergue hoje como simplesmente uma diversão, um esporte em que os políticos são gladiadores e aqueles que se dignam prestar atenção a ela são apenas fãs dispostos de cada lado das arquibancadas, com o rosto pintado de vermelho ou de azul, incitando seu lado e vaiando o lado do oponente”.
VALORES: “Em uma pesquisa recente, a corrupção no governo e nos negócios e a ganância materialista foram salientados como dois dos três desafios morais mais importantes que enfrentamos atualmente. Como criar os filhos com os valores certos apareceu em primeiro lugar”. Segundo o então senador Obama, é difícil para os políticos falarem de valores de modo que não pareça calculado ou piegas. “Isso, em parte, se deve ao fato de que nós, políticos, adotamos discursos ensaiados e gestos padronizados, que tornam cada vez mais difícil o público distinguir entre honestidade e estratégia política. A isso, acrescente-se o fato de a própria prática da política moderna parecer desprovida de valores”.
“A ideia central da Declaração, de sermos livres e de que viemos ao mundo com um conjunto direitos inalienáveis e que por nossa vontade fazemos o que queremos de nossas vidas, é comprendida por qualquer americano. “Ela nos guia e traça nosso rumo dia após dia. Nós nos apegamos aos nossos valores, mesmo que eles pareçam surrados e gastos. O que mais temos para nos guiar? Esses valores são nossa herança, o que nos torna o que somos como povo. No entanto, muitas vezes parece que os americanos de hoje não valorizam nada além de riqueza, beleza, juventude, fama, segurança e entretenimento”.
A NOSSA CONSTITUIÇÃO – O conjunto de liberdades individuais identificados pelos Fundadores foram transformados em “relíquias” da Constituição americana: o direito à liberdade de expressão e de culto; o livre direito de peticionar o governo; o direito de possuir, comprar e vender bens e de não ser privado desses bens sem uma compensação justa; o direito a não ser perseguido sem motivo justo; o direito a não ser detido pelo Estado sem processo; o direito a um julgamento justo e rápido; e o direito de tomar nossas próprias decisões sem a mínima restrição relativas à vida familiar e à forma como educamos nossos filhos”.
Mas “as leis são apenas palavras impressas em papel, maleáveis, imprecisas ou dependentes de contexto e confiança e uma declaração não é um governo. Crer não é o bastante”. A estrutura perfeita da Constituição garantiria os direitos dos cidadãos, os honoráveis membros da comunidade política americana. “Mas não proporcionava proteção àqueles fora do circuito constitucional – os índios americanos cujos tratados se provaram inúteis perante os tribunais do conquistador”. Igualmente, “o espírito de liberdade não se estendia aos escravos que trabalhavam nos seus campos, faziam sua cama e cuidavam de suas crianças”.
“O melhor que posso fazer” escreveu Obama, é lembrar que foram idealistas resolutos que perceberam que o poder não concederia nada sem luta. Lembrar que o debate e o controle constitucional podem muitas vezes ser um luxo dos poderosos e que algumas vezes os excêntricos, zelotes, profetas, agitadores e inflexíveis – os aboslutistas, em outras palavras, foram os que lutaram por uma nova ordem”.
POLÍTICA – A maioria dos eleitores conclui que todos em Washington estão apenas “brincando de fazer política”, ou seja, que os votos e as posições que se tomam ali são contrários à consciência, estão atrelados a contribuições de campanha, às pesquisas ou à lealdade ao partido e não ao desejo de fazer o que é certo”.
“Isso tudo leva à conclusão de que, se queremos que algo mude em Washington, precisamos arrancar os patifes de lá. No entanto, todos os anos mantemos esses patifes exatamente onde estão, uma vez que a taxa de reeleição dos membros do Congresso gira em torno de 96%”.
“A natureza do processo legislador é tremendamente insatisfatória. Na maioria das vezes, a legislação é uma trama sombria, fruto de centenas de comprometimentos pequenos e grandes, uma mistura de objetivos políticos legítimos, sustentabilidade política, esquemas reguladores feitos apenas para tapar buracos e projetos cujo real objetivo é o favorecimento político de seus proponentes. A imprensa adora o termo bipartidarismo, pois combina muito bem com as disputas partidárias, a trama principal de suas reportagens”.
Segundo Obama, o financiamento público das campanhas ou a criação de horário político gratuito na televisão e no rádio reduziriam drasticamente a busca constante de dinheiro e a influência dos grupos de interesse. “Sinto conforto em saber que, quanto mais tempo estou na política, menos reconfortante me parece a popularidade; que a luta pelo poder, pela posição e pela fama parece indicar na verdade uma pobreza de ambição; e que minhas próprias reações se medem principalmente pelo olhar rigoroso de minha própria consciência”.
OPORTUNIDADE – A globalização aumentou enormemente a instabilidade econômica de milhões de americanos, gerando o que alguns chamam de “economia dos poderosos”; os ricos ficaram mais ricos, os pobres mais pobres; a saúde e a educação estão quebradas. O crescimento econômico foi anêmico no que diz respeito à criação de empregos. Saltos de produtividade provocaram achatamento de salários. Uma fatia cada vez menor dos lucros polpudos das grandes corporações foi repassada aos trabalhadores.
A crença de que os programas de governo são ineficazes causa dependência, reduz a responsabilidade, a iniciativa e a escolha por parte dos indivíduos. Para o país se libertar do impasse político, Obama sugere investimentos em infraestrutura e no povo, reconstrução do contrato social idealizado por Roosevelt na primeira metade do século passado, investimentos que tornem os Estados Unidos um país mais competitivo na economia global, investimentos em educação, ciência e tecnologia e independência energética. Em um momento de estabilidade econômica antes da globalização, a carga tributária fazia frente a problemas sociais, mas havia um problema nesse triunfo liberal. “O capitalismo não aguentaria”, segundo Obama.
FÉ – Obama defende levar a fé a sério não apenas para deter a direita religiosa, mas também para envolver todas as pessoas de fé no mais amplo projeto de renovação americana. “O que quer que já tenhamos sido, não somos mais apenas uma nação cristã; também somos uma nação judáica, muçulmana, budista, hindu e uma nação de descrentes”.O senador sentenciava: “Acredito que cometemos um erro quando falhamos em reconhecer o poder da fé na vida dos americanos e por isso evitamos participar de debates sérios sobre como reconciliar a fé com nossa democracia moderna e pluralista”.
“Dizer que homens e mulheres não deveriam incluir sua moral pessoal em debates sobre políticas públicas é um absurdo: nossa lei é por definição uma codificação da moralidade fundamentada, em grande medida, na tradição judáico-cristã”. “Há algumas coisas das quais estou absolutamente certo – a Regra de Ouro (ética da reciprocidade), a necessidade de lutar contra a crueldade de todas as maneiras, o valor do amor e da caridade, da humildade e da misericórdia”.
RAÇA – O governo Bush não apenas demorou a agir depois do furacão Katrina, em Nova Orleans. As vítimas eram negras. “A incompetência foi daltônica”, argumentou Obama, insistindo em que o planejamento inadequado por parte do governo mostrou desigualdade e indiferença quanto aos problemas da pobreza das regiões urbanas carentes, que precisavam ser discutidos. Ao assistir ao funeral de Rosa Parks quase dois meses após o furacão, depois de reuniões de convenção partidária e mirabolante cobertura jornalística, “parecia que nada havia acontecido”. Rosa Parks foi uma negra que na década de 60 se recusou a ceder seu lugar a um branco no ônibus, e acabou com isso desencadeando revoltas e movimentos pelos direitos civis.
A posição de senador protegia Obama da maioria dos solavancos e contusões que o negro comum americano precisa enfrentar. Mesmo assim, a revelação:”Sou capaz de relatar a ladainha usual de pequenos insultos que me foram direcionados ao longo dos meus 45 anos: seguranças me seguindo quando entro em lojas de departamento, casais brancos que me jogam a chave de seus carros quando estou parado fora do restaurante esperando pelo valet, carros de polícia que me param por nenhuma razão aparente. Sei como é ouvir gente dizer que não posso fazer algo por causa da minha cor e conheço o gosto amargo da raiva ao engoli-la em seco. Também sei que eu e Michelle devemos estar sempre atentos em relação a algumas das histórias prejudiciais que nossas filhas poderão absorver da televisão, de músicas, dos amigos e das ruas,sobre quem o mundo acha que elas são e sobre o que o mundo imagina que deveriam ser. Por mais que insista em que as coisas melhoraram, também sei que na verdade melhorar não é o bastante”.
Estatísticas: o indice de mortalidade infantil entre os americanos negros e pobres é semelhante ao da Malásia. Entre os negros é comum o desemprego e processos criminais que um em cada três deles vão sofrer. Brancos ganham em média 70% mais do que os negros. Há discriminação sistemática e prolongada por parte de grandes corporações, sindicatos ou áreas do governo municipal. Há bairros em que não se vendem imóveis a negros. A miscigenação está tornando Os Estados Unidos mais negro e moreno, “mas em geral os membros de todas as minorias continuam a ser medidos pelo grau de assimilação da cultura branca, o quão próximo seus padrões de discurso, suas roupas ou seu comportamento estão da cultura branca dominante e quanto mais uma minoria se desvia desses padrões exteriores, mais sujeita fica aos preconceitos”.
O MUNDO ALÉM DE NOSSAS FRONTEIRAS – Conquistas como anexação de territórios, conquista sangrenta e violenta de tribos indígenas removidas à força de suas terras, o exército mexicano defendendo seu território, a escravidão. Todas, diz Obama, contradisseram os princípios de fundação do país e tenderam a serem justificadas em termos explicitamente racistas, “uma conquista que a mitologia americana sempre teve dificuldade de absorver por completo, mas que outros países reconheceram pelo que é – um exercício de força bruta”.
Há momentos em que Obama se vê mergulhado em cinismo e desespero ao considerar as dificuldades da África, os milhões de atormentados pela aids, as constantes secas, a fome, as ditaduras, a corrupção endêmica, a brutalidade de guerrilheiros infantis. E também: “Quando encarceramos suspeitos por tempo indeterminado sem lhes dar julgamento ou quando os mandamos na calada da noite para países onde sabemos que serão torturados, enfraquecemos nossa capacidade de exigir direitos humanos e o domínio da lei nos regimes ditatoriais”.
Obama lamenta o tempo demais em que as políticas de ajuda internacional ignoraram o papel crítico que as leis e os princípios de transparência exercem no desenvolvimento de qualquer nação. Ao impôr barreiras comerciais, os Estados Unidos protegem seu eleitorado de exportações que poderiam ajudar a tirar países pobres da miséria. “Em seu zelo por proteger patentes de companhias de medicamentos americanas, desencorajam a capacidade de países como o Brasil de produzir remédios genéricos contra a aids que poderiam salvar milhões de vidas”.
Quase cinco anos após os ataques do 11 de Setembro, 46% dos americanos concluiram que os Estados Unidos deveriam cuidar de seus próprios negócios internacionalmente e deixar outros países se entenderem da melhor maneira que conseguirem sozinhos. Porém, “Gostemos ou não, se queremos tornar o país mais seguro teremos que ajudar a tornar o mundo mais seguro”. A segurança imediata dos Estados Unidos, afirma Obama, não pode ser mantida refém do desejo do consenso internacional. “Se tivermos de ir sozinhos, então o povo americano estará pronto para pagar qualquer preço e suportar qualquer fardo para proteger o país. Temos de alinhar nossas políticas para ajudar a reduzir a insegurança, a pobreza e a violência a redor do mundo e dar a mais pessoas um incentivo à ordem global que nos serviu tão bem”.
*Apollo Natali é jornalista, formado aos 71 anos, depois de 4 décadas atuando na imprensa. É colaborador do “Quem tem medo da democracia?”, onde mantém a coluna “Desabafos de um ancião”. Especial para o QTMD?