Por Paulo Eduardo Dias.
“Ela entrou em depressão, perdeu 5 quilos, ela não sai mais de dentro do quarto, não quer sair para rua”. Esse é o dia a dia de Gabriella Talhaferro, 16 anos, narrado por sua mãe, a manicure Kelly Talhaferro, desde que a adolescente ficou cega do olho esquerdo após ser atingida por um tiro de bala de borracha disparado por um policial militar.
Antes do dano irreversível, a menina era muito vaidosa, gostava de passear com os amigos e ficava por horas em frente ao espelho se maquiando ou penteando seus longos e lisos cabelos negros.
Gabriella ou Gabi, como gosta de ser chamada, foi atingida à queima-roupa por um PM no dia 10/11 que, de dentro de uma viatura do 28º BPM/M (Batalhão de Polícia Militar Metropolitano), mirou em seu rosto e atirou. O caso aconteceu 22 dias antes do massacre de Paraisópolis, zona sul, no último domingo (1º/12) quando 9 pessoas morreram em ação policial também durante um pancadão. As vítimas tinham entre 14 e 23 anos.
A PM alega que naquela data atuava para dispersar jovens que estavam num conhecido baile funk em Guaianases, no extremo leste da capital. No entanto, Gabi afirma que estava em frente a uma adega na Estrada Itaquera-Guaianazes, com amigos, já que o “Baile do Beira Rio” havia sido cancelado.
A menina conta que, naquela data, deixou sua casa em Itaquaquecetuba, na Grande São Paulo, e, soube, apenas ao chegar no ponto de encontro já em Guaianases, que a PM havia se antecipado e estava no local desde as primeiras horas da tarde com o intuito de impedir a realização da festa. Como não havia mais trem para voltar para casa por causa do horário, Gabi ficou com os amigos na região.
De poucas palavras e de uma voz fina e doce, típica de sua idade, Gabriella, que agora necessita pingar colírio no olho ferido a cada duas horas, conta como tem enfrentado a nova fase. “Esse um mês está sendo bem difícil. É outra coisa, é outra realidade. Não sei descrever. Não está sendo fácil. Tem hora que eu fico seguindo normal e tem hora que não. Eu não aceito isso”, desabafa a menina.
A mãe conta que tem feito de tudo para animar a garota e, aos poucos, fazê-la retomar a rotina. “Está difícil eu sei, mas está difícil para mim, também. Eu obrigo ela levantar, dar uma volta, ver alguém. A vida dela agora é essa, ficar trancada dentro do quarto. Não quer se olhar no espelho, não quer que eu acenda a luz”, conta, com a voz embargada, Kelly Talhaferro.
As mortes em Paraisópolis fizeram mãe e filha reviverem o sofrimento das primeiras horas após Gabi ser baleada.
“[Sentimento] de dor. Eu estava no hospital com a Gabriella para conseguir um exame, enquanto ela relatava a matéria [sobre os mortos em Paraisópolis] para mim. Eu comecei a chorar, eu me coloco no lugar daquelas mães. Eu senti a dor que elas estavam sentindo, só que infelizmente ao chegar lá [no hospital] a notícia que elas tiveram era que seus filhos estavam mortos e eu tive sorte de ter a minha filha viva”, completa Kelly.
“Eu fico muito mal com isso. Eu me coloquei no lugar deles. Poderia ter sido comigo. Pelo menos eu tive mais chance de viver e eles não”, comenta Gabi, ponderando que, apesar da sequela para o resto da vida, ela está viva.
A manicure alega que nunca gostou dos bailes, mas que mudou seu posicionamento após o caso envolvendo sua filha.
“Eu nunca concordei, nunca gostei, mas hoje a minha visão é diferente. A tragédia teve que acontecer comigo para que meus olhos se abrissem para a realidade que a gente vive. Os bailes não acontecem de uma hora para outra, eles são agendados, os locais colocados nas redes sociais. Se a polícia quer coibir e evitar isso, por que eles não chegam antes? Não precisaria de uma ação como a que eles fazem para que se evitasse baile funk. E tem mais, por que o baile funk é proibido?”, questiona.
Além de não receber nenhuma ajuda do Estado (gastos com medicamento e combustível já superam R$ 1 mil), seja para o tratamento físico ou psicológico da menina, a família Talhaferro ainda aguarda, “ansiosamente”, ser chamada pela Corregedoria da Polícia Militar para reconhecer os PMs que participaram da ação. Gabriella contou que consegue lembrar do rosto do policial militar que mirou a escopeta em sua face e apertou o gatilho.
“É tudo muito burocrático. Parece que tudo isso é feito para a gente desistir de encontrar o culpado. É um empurra-empurra, faz isso, faz aquilo, em uma semana a gente entra em contato, e isso já está se passando mais de duas semanas [desde o depoimento prestado à Ouvidoria das Polícias e a elaboração do Boletim de Ocorrência] e até agora nada. A gente acaba ficando sem perspectiva”, disse Kelly.
A Ponte procurou a SSP-SP (Secretaria de Segurança Pública de SP) para questionar sobre a demora em mãe e filha serem chamadas para o reconhecimento dos policiais militares na Corregedoria da PM e o andamento do caso na esfera da Polícia Civil, registrado pelo 44º DP (Guaianases).
Em nota, a pasta informa que “a autoridade policial [44º DP onde o caso está sendo investigado] ouviu a vítima e trabalha para esclarecer o caso”. A SSP também afirma que um Inquérito Policial Militar foi instaurado pelo Comando do 28º Batalhão Metropolitano e “que está em fase de instrução. A apuração segue o prazo previsto na legislação”.