Cerca de 90% das pessoas presas com uso de reconhecimento facial são negras

Em entrevista, o pesquisador Pablo Nunes explica por que esse método aprofunda o racismo e a lógica do encarceramento.

Foto: Justin Sullivan/Getty Images North America/AFP

Por Caroline Oliveira.

Aproximadamente 90% das pessoas presas com o uso de reconhecimento facial até o momento são negras.

O dado é de um levantamento feito pela Rede de Observatórios da Segurança que analisou as prisões com a utilização da tecnologia em quatro estados brasileiros: Bahia, Rio de Janeiro, Santa Catarina e Paraíba. 

O estudo “Retratos da Violência: cinco meses de monitoramento, análises e descobertas”, feito entre junho e outubro de 2019, constatou 151 pessoas presas.

Dos casos monitorados pela Rede, a Bahia foi responsável por 51,7% das prisões, seguida do Rio de Janeiro, com 37,1%, Santa Catarina, com 7,3%, e Paraíba, com 3,3%. Os detidos são, em sua maioria, pequenos traficantes.

“A gente observa que essa guerra às drogas aumenta o encarceramento em massa e provoca essa quantidade absurda de operações e da letalidade policial e pequenos roubos “, argumenta o cientista político Pablo Nunes coordenador adjunto do Centro de Estudos de Segurança e Cidadania (CESeC) e da Rede de Observatórios da Segurança

Em entrevista ao Brasil de Fato, ele falou sobre o estudo e sobre como os dados coletados mostram o uso do reconhecimento facial no aprofundamento do racismo e da política de encarceramento em massa no Brasil.

Brasil de Fato: O resultado do levantamento feito pela Rede apontou que 90,5% das pessoas presas por reconhecimento facial são negras. O que esse dado revela, tanto sobre a política do uso dessa ferramenta quanto sobre quem está implementando, no caso, o Estado?

Pablo Nunes: O estudo mostrou que essas tecnologias estão sendo aplicadas em uma estrutura muito arcaica, que historicamente penaliza mais negros do que brancos.

A tecnologia de reconhecimento facial vem, de certa forma, para acelerar essa engrenagem que há muitos anos provoca esse encarceramento em massa de negros aqui no Brasil.

Afinal, quando se faz uma análise de como operam o sistema de Justiça criminal – tribunais, juízes, desembargadores – percebe-se o perfil é muito diferente dos que são presos.

Acho que para além desse dado de 90,5% ser de pessoas negras, é necessário notar quais são os tipos de crime que são prioridades na utilização dessas ferramentas de reconhecimento facial: tráfico de drogas, e em quase todos os casos são pequenos traficantes.

A gente observa que essa guerra às drogas aumenta o encarceramento em massa e provoca essa quantidade absurda de operações e da letalidade policial e pequenos roubos.

“No que se refere ao crime, é uma discussão anterior. O Brasil vai realmente aplicar policiamento e dinheiro público para ficar prendendo pequenos traficantes?”, questiona Pablo Nunes (Foto: Arquivo pessoal)

Essa é justamente uma das minhas perguntas. O senhor tem ideia de quais acusações pelas quais as pessoas foram presas? E em quais regiões? Foram em regiões mais periféricas?

São exatamente por crime de tráfico e pequenos roubos. Isso dá quase metade dos casos monitorados.

E sobre os locais, tem diferença entre os estados. Na Bahia e no Rio de Janeiro, que são aqueles que mais encarceraram com o uso de reconhecimento facial até agora, os projetos se dão com a utilização de câmeras em determinados bairros.

Aqui no Rio de Janeiro, por exemplo, em Copacabana e nos arredores do Maracanã. Em Salvador, na Bahia, tem algumas câmeras em estações de metrô e em terminais rodoviários.

Então não é necessariamente em locais periféricos, mas são de muita circulação de pessoas.

E como funciona esse reconhecimento facial? Tem alguma interferência de empresas privadas?

O grande problema desses projetos de sobre reconhecimento facial é a baixa transparência.

Procuramos contratos e regulamentações relativas não só a quem está fornecendo, mas também aos bancos de dados, e não obtivemos resposta dos governos estaduais.

Aqui no Rio de Janeiro a gente sabe que a operadora Oi está realizando o suporte técnico. Mas em outros estados a gente não sabe muita coisa. O nordeste tem recebido muitos projetos de empresas chinesas voltadas à tecnologia.

E o senhor vê algum tipo de problema de empresas chinesas estarem fornecendo esses materiais? Como o senhor analisa isso? 

Se tivesse uma transparência com relação ao banco de dados, ao algoritmo utilizado, contratos firmados com as empresas fornecedoras e operadoras de sistema tanto faz com relação à empresa chinesa ou americana.

“O fato é que a gente tem pouquíssima informação sobre o que acontece e como esses projetos estão sendo monitorados.”

Com essa falta de transparência é muito difícil que a sociedade civil faça controle das ações do poder público para que não haja abusos nesse uso dessas tecnologias.

O ministro da Justiça e Segurança Pública Sergio Moro já acenou para um banco digital de dados, como DNA. Como o senhor observa isso?

O Brasil caminha a passos largos na direção contrária de boa parte do mundo.

“Enquanto vários países estão discutindo e banindo o reconhecimento facial, principalmente quando aplicado à segurança pública, o Brasil está avançando na aplicação desses projetos.”

Ainda, isso tem sido feito sem que haja uma consulta da sociedade civil, com uma falta de transparência completa.

A gente não tem uma explicação ou transparência relativa ao uso de dados pessoais. O fato do ministro Moro ter proposto o banco digital só é mais uma forma de elevar essa aposta que aumenta o encarceramento em massa e penaliza os mais pobres e negros.

“Na China, é um grau de controle da vida dos cidadãos que não tem paralelo em outros lugares do mundo.”

E, de certa forma, quando o Brasil envia uma comitiva de deputados para China para conhecer as tecnologias de reconhecimento facial, talvez seja esse o horizonte: uma sociedade completamente monitorada e sem nenhum tipo de discussão crítica sobre o uso dessas tecnologias e a eficácia delas.

Há um diagnóstico ou uma estratégia por trás desses projetos?

Não há diagnóstico. Esse tem sido o drama brasileiro há anos.

A gente sofre muito por não ter um sistema único de segurança pública que unifique os dados produzido pelas polícias, para que a gente possa conhecer as estáticas de violência.

Não há dados confiáveis agora para fazer comparações e até mesmo entender esse fluxo.

“O Brasil está a anos luz atrás de ter dados confiáveis para aplicação e desenvolvimento de políticas públicas realmente eficazes.”

E agora a gente tem esses incentivos para projetos de reconhecimento facial em vários estados brasileiros. É realmente um contrassenso.

Quais outros dados você destacaria? E como foi feito esse levantamento?

Esse levantamento surge exatamente pela falta de transparência da aplicação de projetos de reconhecimento facial voltado ao policiamento no Brasil. Não tinha dados relativos ao que estava acontecendo.

A Rede de Observatórios de Segurança começou a monitorar os casos que saíam na mídia, mas também nos veículos oficiais das polícias de todos os estados brasileiros.

Foram identificados quatro estados que já tiveram prisões com o uso de tecnologia de reconhecimento facial: Bahia, Rio de Janeiro, Paraíba e Santa Catarina.

O destaque é para Bahia e Rio de Janeiro. No primeiro estado, há cerca de 80 pessoas presas até o momento. No Rio de Janeiro, beira 60 presos.

E essa constatação já era esperada?

Havia uma ideia muita vaga sobre o resultado. Nos assustou e surpreendeu a proporção de pessoas negras e dos crimes priorizados pelas polícias.

“Nesse caso, no que se refere ao crime, é uma discussão anterior. O Brasil vai realmente aplicar policiamento e dinheiro público para ficar prendendo pequenos traficantes?”

A gente já tem uma das maiores populações carcerárias do mundo lotada de pequenos traficantes.

Havia a impressão que o reconhecimento facial pudesse ser utilizado para dar mais foco a outros crimes mais graves, como homicídios, latrocínios e afins. Mas infelizmente o reconhecimento facial não mudou o contexto. É sempre o mesmo perfil, com o mesmo tipo de crime.

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