Autora do celebrado “Quarto de Despejo”, Carolina de Jesus, traduzida em 13 países, vendeu 1 milhão de exemplares, ganhou dinheiro e morreu pobre. Sua obra faz sucesso nas universidades
O livro “Tempo de Reportagem — Histórias que Marcaram Época no Jornalismo Brasileiro” (Leya, 287 páginas), de Audálio Dantas, que morreu em 2018, contém verdadeiras aulas de jornalismo. Além de reportagens clássicas, típicas do jornalismo literário, mas sem a pretensão típica de Truman Capote e Tom Wolfe, há textos introdutórios sobre como foram feitas. Recomendo vivamente “A nova guerra de Canudos”, “Povo caranguejo” e “O drama da favela escrito por uma favelada”. Neste texto, de 1958, o autor conta a história de Carolina Maria de Jesus (1914-1977), a favelada que se tornou escritora famosa, autora do livro “Quarto de Despejo”, com destaque em vários jornais do exterior e edições da obra em 13 países. Antecipando Jorge Amado e Paulo Coelho, vendeu mais de 1 milhão de livros.
O bom repórter não é aquele que cumpre a pauta à risca, sem abrir espaço ao novo. O verdadeiro repórter é aquele que transforma a pauta, ou, ao cumpri-la, no meio do caminho muda seu eixo, ao descobrir que a realidade é outra. Em 1958, Audálio Dantas propôs ao chefe de reportagem das “Folhas” (eram três jornais, “Folha da Manhã”, “Folha da Tarde” e “Folha da Noite”), Hideo Onaga, uma matéria sobre a favela do bairro do Canindé, às margens do Rio Tietê. O repórter ficaria uma semana na favela, para compreendê-la com mais precisão, mas três dias depois voltou à redação e jogou meia dúzia de cadernos encardidos na mesa do editor. No texto em que apresenta a reportagem, de 2012, Audálio Dantas escreve: “Eu não havia escrito uma linha sequer, mas a reportagem estava, de fato, naqueles cadernos, especialmente em um que continha um diário iniciado três anos antes, em 15 de julho de 1955, pela favelada Carolina Maria de Jesus, moradora do Canindé”. Aos 44 anos, ela vivia “de apanhar papéis no lixo para vender”.
Lidas as primeiras páginas do diário, Hideo Onaga sugeriu: “Isso dá um livro!” Audálio Dantas conta que, “além do diário, havia contos, poesias, até um começo de romance”. Por mais que os textos estivessem repletos de erros de português, com algumas avaliações mal costuradas, havia vida, alma, no trabalho de Carolina de Jesus. O repórter frisa que “estava convencido de que não conseguiria retratar aquele mundo miserável com a mesma força e a mesma verdade contidas naqueles cadernos”. A vida, vista de dentro, sem os adornos dos métodos, era apresentada em toda a sua crueza, numa espécie de levantamento entre o sociológico e o antropológico. Carolina de Jesus lia livros que encontrava no lixo.
Modesto, Audálio Dantas afirma que a “descoberta” dos cadernos não lhe custou “nenhum esforço de reportagem”. Como Carolina de Jesus já havia procurado outras redações, talvez até a do repórter, é possível dizer que sem a percepção de Audálio Dantas, sem a sua sensibilidade, a autora teria ficado inédita por alguns anos ou, quem sabe, seus diários teriam se perdido nos desvãos do tempo e das agruras dos pobres.
O olho clínico do repórter, a sua percepção da importância do outro, mesmo dos que não têm “cultura” e, em tese, não são interessáveis, foi decisivo para a descoberta de Carolina de Jesus. Na favela, Audálio Dantas não conseguia convencer alguns marmanjos que usavam brinquedos a deixá-los para as crianças. Então, imprecando, aparece Carolina de Jesus, com sua voz tonitruante: “Vou botar o nome de vocês no meu livro!” Mesmo xingando, os homens deixaram os brinquedos para os meninos.
Perceptivo, Audálio Dantas perguntou: “Que livro é esse?” Carolina de Jesus respondeu: “O livro em que estou escrevendo as coisas daqui da favela”. A reportagem, com trechos dos diários — mais de 20 cadernos —, foi publicada na edição de 9 de maio de 1958, na “Folha da Noite”, com o título de “O drama da favela escrito por uma favelada”.
A repercussão, bombástica, gerou comentários céticos: “Isso é invenção de repórter, pra vender jornal”, “onde já se viu, uma negra semianalfabeta, e ainda por cima favelada, escrevendo desse jeito”. Ao reler o texto que escreveu para apresentar os diários, 54 anos depois, Audálio Dantas aponta “excessos de adjetivos, alguma pieguice e imperdoáveis falhas de informação” (não deu o nome dos filhos de Carolina de Jesus).
Recorde de vendas e celebridade
Como o Brasil pedia a publicação do livro de Carolina de Jesus — saiu, depois, mais uma reportagem, na revista “O Cruzeiro” —, Audálio Dantas compilou os diários, publicando apenas o que continham de mais instigante. O livro, com o título de “Quarto de Despejo”, saiu em agosto de 1960. Os 10 mil exemplares da primeira edição foram vendidos numa semana. “Um recorde para a época.”
Carolina de Jesus tornou-se, a partir da reportagem e do livro, uma celebridade internacional. “Time”, “Life”, “Paris Match” e “Le Monde” deram amplo destaque aos seus diários e à história da escritora favelada. A revista “Time” destacou o repórter David St. Clair para relatar a história da Cinderela negra que virou escritora famosa. O jornalista hospedou-a no Copacabana Palace, o hotel mais luxuoso do Rio de Janeiro, e comprou vestidos caros para sua “convidada”. “No Antonio’s, se não me engano, montaram uma impressionante cena de preparação de uma sobremesa flambada em meio a altas chamas. Carolina registraria mais tarde em seu diário: ‘Comi aquela confusão toda e não gostei’”, registra Audálio Dantas.
A escritora começou a ser apresentada às elites intelectual e do capital como “uma espécie de bicho estranho. Exibiam-na em jantares elegantes nos bairros finos de São Paulo”. Preocupado, Audálio Dantas alertou-a. Irritada, Carolina de Jesus reclamou que o jornalista queria ser seu “tutor”.
“Quarto de Despejo”, talvez mais comentado do que lido, era elogiado em vários países. É provável que leitores, escritores e críticos percebessem que não se tratava de literatura, de prosa refinada, e sim de retratos ou recortes da vida cotidiana. Os relatos de Carolina de Jesus estão mais próximos da sociologia e da antropologia, ainda que sem o uso de métodos, mas com uma observação direta precisa. Talvez o grande equívoco tenha sido tratá-los como (alta) literatura, que exige uma elaboração que, evidentemente, não há nos livros de Carolina de Jesus.
É claro que Carolina de Jesus não é uma farsa, dada sua percepção aguda e vívida da vida na favela, mas não é também uma escritora comparável a, digamos, Clarice Lispector, Rachel de Queiroz e Lygia Fagundes Teles. Não se pode nem mesmo compará-las. Porque, nas obras de Carolina, por falta de formação cultural e de banco escolar mesmo, não há elaboração, apuro na linguagem.
Ainda assim, o livro foi traduzido em 13 idiomas e vendeu mais de 1 milhão de exemplares. Alberto Moravia prefaciou a edição italiana. O grande escritor italiano percebeu a “força”, extraliterária, dos escritos da mineira. O próprio Audálio Dantas, no texto de 1958, assinala: “… ela é dotada de agudo senso de observação e talvez por isso retrate tão bem o meio em que vive”. Não há condescendência com os pobres nos seus diários, como às vezes ocorre em trabalhos de acadêmicos engajados à esquerda: “Aqui é assim. Não há ricos, só pobres, uns prejudicando os outros”. Um mundo hobbesiano. Noutro trecho diz: “Suporto as contingências da vida, resoluta. Eu não consegui armazenar dinheiro para viver. Resolvi armazenar paciência”.
Autenticidade dos relatos
Com o tempo, enquanto críticos acadêmicos (alguns brasilianistas) tratavam de valorizar a obra de Carolina de Jesus, inclusive do ponto de vista literário — o que é difícil, senão impossível, provar, exceto por frases esparsas, mas nunca no conjunto —, alguns críticos, como Wilson Martins, começaram a duvidar da autenticidade da autoria dos relatos.
Jornalistas diziam para Audálio Dantas: “Rapaz, você teve um trabalhão para inventar o livro da negra!” Manuel Bandeira lavou a honra do repórter. Em texto para “O Globo”, o poeta “menor” escreveu que ninguém seria capaz de “inventar” um texto como o de Carolina de Jesus. O crítico Wilson Martins atacou duro e disse que o livro era um “embuste”. Numa segunda crítica, frisou que a história “não podia ser de Carolina”. Porque “continha expressões rebuscadas como ‘astro-rei’ em vez de sol, simplesmente; ou frases inteiras, como ‘acordei, abluí-me e aleitei-me’, o que, jurava [Wilson Martins], só podia ser coisa de jornalista”. E, por certo, jornalista parnasiano…
Irritado, “bravo de verdade”, Audálio Dantas publicou uma longa resposta no “Jornal do Brasil” e ameaçou processar Wilson Martins. “Tinha como testemunhas os cadernos escritos por Carolina, que mantive sob minha guarda até outro dia, quando decidi doá-los à Biblioteca Nacional”, diz Audálio Dantas.
Mesmo depois de 60 anos de jornalismo, Audálio Dantas diz que a reportagem sobre Carolina de Jesus foi a mais importante de sua vida. Foi a que fez mais sucesso.