Três projetos sobre a legislação fundiária avançam no Senado

Propostas interligadas mudam os índices de produtividade das terras, o conceito de função social e os limites à venda a estrangeiro

Foto: José Cruz, Agência Brasil.

Por Luiza Dulci e Nilton Tubino.

Estão em tramitação no Senado Federal dois Projetos de Lei (PL) e uma Proposta de Emenda à Constituição (PEC) que modificam sobremaneira a legislação agrária nacional. Apesar da origem e da autoria distintas, as PLs 107/2011 e 2.963/2019 e a PEC 80/2019 estão interligadas.

Antes de examiná-los, cabe um breve contexto da atuação ruralista recente, que já no governo Temer liderava a agenda conservadora nacional. O ex-presidente editou a MP 759/2016, posteriormente convertida na Lei 13.465/2017, que modificou profundamente a Lei 8.629/1993, que regulamentou os dispositivos constitucionais relativos à reforma agrária. Já aí, um marco na paralisação da política de assentamentos nos país, com implicações também sobre dispositivos fundiários urbanos.

No caso dos assentamentos rurais, a decisão passou a desconsiderar as famílias acampadas e terras ocupadas, exigindo cadastramento de interessados junto ao Incra. Outra mudança importante tem a ver com a prioridade na titulação dos lotes e na regularização das ocupações irregulares nos projetos de assentamentos, medida que visa colocar no mercado os mais de 87 milhões de hectares dos assentamentos rurais do país.

Com a posse de Bolsonaro, os ruralistas ocuparam todos os espaços ligados à política agrícola e agrária do Governo Federal, inclusive àqueles voltados (ao que restou) dos programas de promoção da agricultura familiar e da reforma agrária. Tentaram ainda alocar a Funai e a agenda indigenista no Ministério da Agricultura, proposta que foi inicialmente barrada no Congresso e posteriormente pelo STF.

Dos três projetos em questão, o mais antigo é o PLS 107/2011, de autoria da senadora e ex-ministra da Agricultura, Kátia Abreu (PDT-TO). Mais uma vez, o alvo é a lei da reforma agrária de 1993. O PLS 107 “altera a Lei nº 8.629, de 25 de fevereiro de 1993, para dispor sobre a fixação e o ajuste dos parâmetros, índices e indicadores de produtividade”.

Após tramitação nas Comissões de Agricultura e Reforma Agrária (sendo terminativo nesta Comissão) e Assuntos Econômicos do Senado Federal, o PLS 107 encontra-se atualmente na Comissão de Constituição e Justiça, onde será necessário apresentar recurso para a votação em Plenário.

Conforme a Lei de 1993, o índice de produtividade em vigor é composto de indicador duplo, que dispõe sobre a conceituação da propriedade produtiva (graus de utilização da terra – GUT) e sobre a caracterização da função social (grau eficiência da exploração – GEE).

Há muito, a necessidade de sua atualização é reivindicada tanto por ruralistas quanto pelos movimentos de luta pela terra no Brasil. As motivações, contudo, são distintas. Para os que defendem a ampliação da democratização da terra no país, a atualização dos índices é importante na medida em que expõe terras improdutivas, garantindo assim o direito à expropriação para fins de reforma agrária.

Na contramão deste argumento, o PLS 107/2011 se adianta no sentido de rever e decompor o índice atual, que, argumenta-se, privilegia a maior área plantada e não leva em consideração a produtividade alcançada pelo uso de insumos e pela aplicação de tecnologia. Por conta disso, diz a justificativa do PLS, “propriedades produtivas, insuscetíveis de desapropriação, estão sendo equivocadamente desapropriadas”.

Pela nova legislação, mantém-se a exigência do GUT no mínimo de 80% (relação entre a área efetivamente utilizada e a área aproveitável total do imóvel). Já a medida do GEE, passaria a considerar “a evolução tecnológica, mas também a renda do produtor”, de tal forma que caso o produtor não tenha condições de investir, não seja prejudicado por não conseguir atingir os índices de produtividade naquele ano.

Desmembrado do GUT, o GEE passaria então a ser atualizado periodicamente conforme legislação complementar. Além de modificar o cálculo dos índices, alterações posteriores precisariam ser aprovadas na forma de PL no Congresso Nacional e não mais por atos do Poder Executivo, como ocorre atualmente. Vale lembrar, os índices em vigor adotados pelo Incra para medir a produtividade das terras são os mesmos desde meados da década de 1970, a despeito das substantivas mudanças por que passou a agricultura brasileira desde então.

A segunda matéria em tramitação no Senado Federal é o PL 2.963/2019, de autoria do senador Irajá Abreu (PSD-TO), que “regulamenta a aquisição, posse e o cadastro de propriedade rural por pessoa física ou jurídica estrangeira”.

O PL obteve parecer favorável nas Comissões de Assuntos Econômicos e Agricultura e Reforma Agrária e de lá seguirá para a Comissão de Constituição e Justiça. Tema controverso e bastante discutido nos últimos anos, a liberação da compra de terras por estrangeiros havia sido objeto do PL 2.289/2007, de autoria do deputado Beto Faro (PT-PA) e do PL 4.059/2012, fruto de projeto substitutivo, formulado pelo deputado Marcos Montes (PSD-MG).

Este último apensou boa parte das propostas relativas à liberação da compra de terras por estrangeiros em tramitação na Câmara Federal. Chegou a ser alçado à condição de “tramitação em urgência” no início do governo Temer e ainda encontra-se no plenário da Câmara. Contudo, sofreu resistências, por exemplo, do então ministro da Agricultura, Blairo Maggi, e de setores militares, em razão dos riscos à soberania. Tais preocupações parecem não gerar maiores resistências no cenário atual.

Uma de suas principais mudanças é a dispensa de qualquer autorização ou licença à aquisição e qualquer modalidade de posse por estrangeiros quando se tratar de imóveis com áreas não superiores a quinze módulos fiscais. A esse respeito, vale ressaltar que dados do Censo Agropecuário de 2017 indicam que 96,6% das propriedades rurais brasileiras em uso agropecuário têm até 15 módulos fiscais.

Com relação à extensão territorial nos municípios, a legislação atual restringe a compra de terras por estrangeiros ao limite de ¼ da área do município ou de 40% do território municipal por estrangeiros de mesma nacionalidade. O PL em questão propõe ampliar tais limites caso o comprador seja cônjuge de brasileiro/a com separação total de bens. Terras em condição irregular serão regularizas, ou seja, aquisições realizadas antes da mudança da lei, os chamados contratos de gaveta, serão regularizadas.

Finalmente, a terceira matéria em questão, a PEC 80/2019, têm como primeiro signatário o senador Flávio Bolsonaro (PSL-RJ) e outros 26 senadores subscrevem a Proposta, que “altera os artigos 182 e 186 da Constituição Federal para dispor sobre a função social da propriedade urbana e rural”. Encontra-se atualmente na Comissão de Constituição e Justiça do Senado Federal.

As mudanças propostas podem ser resumidas em três pontos principais. O primeiro deles é a alteração do cumprimento simultâneo das exigências que compõem a função social das propriedades urbana (art. 182o da CF/88) e rural (art. 186o da CF/88) por “pelo menos uma delas”.

No caso das propriedades urbanas, a Constituição exige o cumprimento simultâneo de:

  1. Parcelamento ou edificação adequados;
  2. Aproveitamento compatível com sua finalidade;
  3. Preservação do meio ambiente ou do patrimônio histórico, artístico, cultural ou paisagístico. Com a nova legislação, apenas uma das três seria suficiente para atestar a função social.

No caso das propriedades rurais, são quatro as exigências Constitucionais:

  1. Aproveitamento racional e adequado;
  2. Utilização adequada dos recursos naturais disponíveis e preservação do meio ambiente;
  3. Observância das disposições que regulam as relações de trabalho;
  4. Exploração que favoreça o bem-estar dos proprietários e dos trabalhadores.

Igualmente, pela nova legislação, apenas uma das quatro exigências bastaria. Conforme resgata o Parecer da Procuradoria dos Direitos do Cidadão, do Ministério Público Federal, o princípio da função social não é uma inovação da Constituição Cidadã. O “interesse social ou coletivo” já era contemplado na Constituição de 1934 e a Constituição de 1967 incorporou o conceito de função social, assegurado pela Lei 4.4504/1964, o Estatuto da Terra.

A segunda modificação da PEC é a retirada da exclusividade do Poder Executivo na decisão sobre a expropriação. Propõe-se que o “descumprimento da função social será declarado por ato do Poder Executivo, mediante autorização prévia do Poder Legislativo, ou por decisão judicial”. De acordo com o mesmo parecer do MPF, tal mudança apresenta inconstitucionalidade de iniciativa, na medida em que fere os princípios da autonomia dos entes federativos – prejudicando sobretudo os municípios no caso das propriedades urbanas – e da separação dos poderes.

A terceira mudança propõe o pagamento das desapropriações pelos valores de mercado urbano e rural, visando, assim, “diminuir a discricionariedade do Poder Público na avaliação de desapropriação da propriedade privada, tendo em vista que é um bem sagrado e deve ser protegida de injustiças”.

No caso das propriedades rurais, atualmente o Incra realiza pesquisa de mercado e leva em conta variáveis como índice de desmatamento, capacidade do solo e outras, que podem vir a desvalorizar os imóveis relativamente ao que seria o preço de mercado reivindicado pelos proprietários que estão sendo desapropriados.

Vale lembrar, contudo, que a desapropriação de terras para fins de reforma agrária no Brasil realiza-se nos termos do mercado, onde o proprietário recebe inclusive juros compensatórios pela não produção durante o período de tramitação do processo de desapropriação – o que não faz muito sentido, afinal trata-se de terras improdutivas.

Como se vê, os três projetos encontram-se interligados. O PLS 107/2011 altera os índices de produtividade, objeto do próprio conceito de função social da propriedade alterado pela PEC 80/2019. Da mesma forma, o PL 2.963/2019 também se utiliza da nova conceituação da função social, a qual deve ser respeitada por estrangeiros que desejam adquirir ou arrendar terras no país.

Desde Temer, e mais explicitamente no atual governo Bolsonaro, certos segmentos conservadores têm atuado de forma coesa, conseguindo implementar agendas reacionárias, a partir de articulações de classe dentro e fora do Congresso Nacional e da Esplanada. Mudanças com profundos impactos sobre a classe trabalhadora, como a reforma trabalhista (aprovada por Temer) e a reforma da previdência foram aprovadas com grandes maiorias parlamentares. As mudanças vêm a passos largos – e definitivos.

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