Grupo pró-vida constrange vítimas de estupro em frente a hospital

Católicos montam acampamento em frente ao Pérola Byington em São Paulo e são acusados de agressão; coordenadora da ação hostilizou filósofa Judith Butler no Brasil

Celene Salomão, à esquerda, junto a outros integrantes do grupo “40 Dias Pela Vida SP”, pedem pelo fim do aborto em frente ao hospital

Por Anna Beatriz Anjos, Bruno Fonseca, Andrea Dip.

Na manhã da última segunda-feira (21), a assistente de produção J., de 31 anos, que pediu para não ser identificada, foi ao Hospital Pérola Byington, no centro de São Paulo, para uma consulta psiquiátrica. Vítima de violência sexual, há cerca de 20 dias ela frequenta a unidade estadual, considerada centro de referência na assistência a mulheres que sofreram estupro. Antes de entrar no prédio, se deparou novamente com algo que há dias a assombrava: na praça do outro lado da rua havia uma tenda de manifestantes “pró-vida”, como se autodenominam os ativistas contrários ao aborto, cheia de placas condenando a interrupção da gravidez, fotos de bebês, além de uma mesa com imagens de santos católicos e miniaturas fetos.

J. os viu todas as vezes em que esteve ali para atendimento porque, desde 25 de setembro, o grupo católico “40 dias pela vida SP” monta diariamente sua tenda em frente à entrada do hospital, com o objetivo de persuadir mulheres que foram estupradas, que estão em gestações de fetos anencéfalos ou em gravidez com risco de vida a não abortar – únicos casos em que o aborto é permitido no Brasil. Com origem nos Estados Unidos e filiais em diversos países, a campanha também tem como alvo profissionais que atendem essas mulheres, como médicos, enfermeiros e psicólogos.

“Minha família é muito religiosa, muito cristã, isso mexe muito comigo inconscientemente. Fico tendo pesadelos com as crianças da foto, até porque não saíram os resultados dos exames, então ainda não sei se a violência resultou em gravidez”, diz J. Por isso, ela decidiu se aproximar e iniciar uma conversa. “Você conhece o significado de empatia?”, conta ter perguntado a uma das mulheres. “Sim, com todos os seres humanos”, teria respondido a integrante do grupo. “Posso te contar a minha história então?”, questionou J. Ela relataria que, no fim de setembro, durante uma viagem ao Rio de Janeiro, foi levada a um cativeiro e estuprada enquanto estava inconsciente. Acordou num quarto escuro e só foi libertada quando um homem apareceu e lhe entregou R$ 5 para que fosse embora. Caminhou bastante até tomar um ônibus e parar na casa de uma amiga, a quem pediu ajuda.

Mas ela afirma não ter conseguido contar sua história, porque antes disso sua interlocutora teria começado a xingá-la e um homem teria surgido de dentro da tenda e a imobilizado com um mata-leão. Enquanto isso, segundo J., uma segunda mulher lhe dava tapas no rosto, peito e braços, e a agressão era filmada com um celular pela manifestante com quem havia conversado no início. A polícia logo chegou e levou o caso à delegacia, onde foi registrado um boletim de ocorrência por lesão corporal.

O documento traz também a versão de Celene Salomão de Carvalho, de 54 anos, autointitulada coordenadora do movimento e única do grupo a ir para a delegacia – as outras pessoas envolvidas não estão relacionadas no B.O. À polícia, Celene disse que era J., “muito alterada e nervosa”, quem gritava “que aquelas pessoas eram a favor do estupro e apoiavam o estuprador”, além de tentar “tirar a tenda do local”. Relatou ainda que J. a teria agredido com tapas no rosto e chutes na perna.

Essa, entretanto, não é a versão da advogada Adriana Gragnani, que passava de carro pelo local exatamente no momento em que tudo aconteceu. “Abandonei meu carro quando vi o homem que tinha saído da barraca dando um ‘pescoção’ na J., enforcando ela. Comecei a gritar ‘larga, larga e chama a polícia’”, conta. Só quando a polícia chegou foi que Adriana conversou com J. e tomou conhecimento da sua história. Ela acabou acompanhando a jovem à delegacia e a ajudou com os trâmites legais, como a realização do exame de corpo de delito. “Entendo que esse grupo está fazendo um assédio aos profissionais do Pérola Byington e às mulheres que, em razão de um crime perverso que é o estupro, têm que recorrer ao atendimento”, afirma Adriana.

Na tarde de quarta-feira (23), a Agência Pública tentou conversar pessoalmente com os integrantes do “40 dias pela vida SP”. Celene, outras três mulheres e um homem com colar de crucifixo em volta do pescoço conversavam sentados debaixo da tenda. Havia cartazes pendurados com mensagens como “a vida começa na concepção”. A maior das faixas, instalada em frente à barraca, trazia o nome do grupo acompanhado pelo slogan “rezando pelo fim do aborto”. Havia ainda, atrás desse grande banner, uma mesa plástica que servia como uma espécie de altar, sobre a qual estavam imagens de Nossa Senhora e outros santos, um crucifixo dourado e miniaturas de fetos.

Perguntamos a Celene desde quando estão ali, até quando pretendem ficar e quais são seus objetivos. “Nós só rezamos pelo fim do aborto”, ela responde. “Mas vocês são contra o aborto legal?”, questionamos, em referência aos três casos em que a interrupção da gravidez é permitida pela lei brasileira. “Já leu a Constituição brasileira? É só ler lá, [a vida] é desde a concepção. Isso aí é decisão do STF”, retrucou, citando decisão do Supremo Tribunal Federal que em 2012 descriminalizou o abortamento de fetos anencéfalos. Muito antes disso, no entanto, o Código Penal já previa as outras duas exceções. Depois dessa pergunta, Celene e as outras três mulheres se ajoelharam com terços nas mãos e rezaram sucessivas Ave Marias. Insistimos na entrevista, mas ela se recusou a falar e pediu que parássemos, ou então chamaria a polícia.

Para que a memória coletiva prevaleça!

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