Equador escancara contradição entre buen vivir e desenvolvimentismo baseado no petróleo

Governo Correa foi acusado de “extrativista” por ambientalistas e indígenas, os mesmos que hoje se levantam contra aumento do preço da gasolina

Protesto em Quito. Causa Operária

Por Gustavo Menon.

Os fortes protestos dos últimos dias abalaram a base de apoio do governo equatoriano de Lenín Moreno. Eleito com a plataforma de continuidade da Revolução Cidadã, Moreno rapidamente mudou de rota e adotou medidas contrárias àquelas anunciadas durante a campanha.

Em um movimento de aproximação com a agenda neoliberal e com uma retórica de combate à corrupção, o presidente, democraticamente eleito, passou a perseguir os ex-aliados de seu partido, a Alianza PAIS. Os casos mais emblemáticos foram as acusações de corrupção diante do vice-presidente de Rafael Correa, Jorge Glas, pelo, o que ficou conhecido como o “petrolão equatoriano” (um conjunto de suspeitas de fraudes e superfaturamentos, especialmente envolvendo a construtora brasileira Odebrecht em licitações públicas realizadas durante a década correísta, de 2007 a 2017).

O próprio Rafael Correa, hoje morando na Bélgica, passou por sucessivos ataques da ala de Moreno, sendo acusado de ter liderado casos de corrupção no país. Em 2017, por exemplo, forças aliadas ao novo presidente puxaram um referendo que limitava a reeleição de ex-mandatários à presidência, um claro ataque ao ex-mandatário.

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Somado a isso, o principal articulador da Revolução Cidadã, Correa, teve que enfrentar processos e até pedidos de prisão preventiva, apoiados por setores favoráveis ao governo de Lenin Moreno.

Vale a pena recordar que durante a década do correísmo, de 2007 a 2017, um amplo programa de revitalização do papel do Estado sobre a economia foi posto em prática. Rompendo com o chamado Consenso de Washington, o Equador promulgou uma nova Constituição, que reconhece os direitos da natureza, a plurinacionalidade e a experiência do “buen vivir”. Além disso, auditou a dívida pública (interna e externa) e encaminhou uma reforma dos meios de comunicação. As frações rentistas foram duramente afetadas e o projeto do ex-presidente se consolidou a partir de uma perspectiva pós-neoliberal.

Contradições

Contando com o cenário externo de boom das commodities e de rechaço das medidas neoliberais que derrubaram sucessivos governos na transição do século 20 ao 21, a chamada “Revolução Cidadã” se aproximou do capital chinês e apostou num modelo de desenvolvimento amparado no setor petrolífero.

Para os correístas, o período ficou conhecido como a “década ganhada”. Isso implicou na reconstrução e maiores investimentos nas estatais PetroEcuador e PetroAmazonas e na intensificação de projetos de exploração, produção e refino do óleo. Neste sentido, classes populares, como os setores indígenas, romperam como o projeto da “Revolução Cidadã”.

O modelo desenvolvimentista dirigido por Correa foi acusado pelos setores ambientalistas e indígenas de “extrativista” e “dependente”, uma vez que a matriz produtiva do correísmo permaneceu intacta ao longo dos seus dez anos de governo.

Conaie e Moreno

Com a eleição de Lenín Moreno, em 2017, no entanto, especialmente o Pachakutik, sigla indígena e partido com fortes vínculos com a Conaie, passou compor a base do governo e a ocupar cargos estratégicos na nova gestão.

Humberto Cholango, ex-presidente da Conaie, por exemplo, se tornou secretário da água de Lenin Moreno, cargo equivalente a uma pasta ministerial no Estado Plurinacional do Equador. Tal base de apoio, de caráter indígena, também advogou favoravelmente à devolução do prédio da União das Nações Sul-Americanas (Unasul) para a construção de uma universidade indígena no local.

A aproximação de Moreno com o receituário neoliberal se manifestou logo nos seus primeiros meses de governo. Condenando os antigos aliados e os setores correístas, o novo presidente abriu caminhos para os processos de privatização e aproximação com o Fundo Monetário Internacional (FMI). Simultaneamente, Moreno também anunciou o fim do asilo político a Julian Assage, criador do Wikileaks, na embaixada do Equador em Londres.

Crise

O estopim da crise se deu na semana passada com o envio de um pacote de medidas que prevê o fim dos subsídios na área dos combustíveis, além de uma reforma trabalhista que impõe a perda de direitos aos trabalhadores equatorianos.

A flexibilização laboral estaria voltada aos funcionários públicos, que perderiam dias de férias e, concomitantemente, deveriam arcar com impostos maiores no recolhimento dos salários. A medida, por fim, também afetaria os trabalhadores temporais, sujeitos à uma redução salarial na casa de 20%.

Contudo, o xis da questão está no preço da gasolina. O anúncio feito por Moreno elimina os subsídios ao setor petrolífero. Para se ter uma ideia da dimensão do feito, o pacote econômico dirigido pelo governo, em síntese, estabelece a liberação dos preços do diesel e da gasolina em todo país, algo que afeta praticamente toda cadeia produtiva da economia equatoriana, como as passagens dos transportes públicos e outros setores que dependem do petróleo e seus derivados. Há relatos de que o litro da gasolina subiu de US$ 1,85 para US$ 2,22 por galão de 3,8 litros, isso de um dia para o outro.

Cabe ressaltar que os maiores gastos realizados pela administração de Rafael Correa voltaram-se, centralmente, para a manutenção de tais subsídios, processo que afeta diretamente as classes médias e populares e suas respectivas condições de vida. No entanto, isso perpetua o ciclo vicioso de dependência econômica dos combustíveis fósseis. Segundo a Comissão Econômica para a América Latina (CEPAL), cerca de 1/3 das exportações equatorianas dependem do setor petrolífero.

Movimentos sociais

Frente ao anúncio do pacote de medidas, caminhoneiros e entidades ligadas aos setores de transportes convocaram uma greve nacional. Rapidamente a Conaie se juntou aos protestos e as manifestações se tornaram grandes mobilizações populares. Estradas e avenidas foram bloqueadas. Indígenas realizaram paralisações exigindo a renúncia das medidas neoliberais adotadas. Estudantes e professores paralisaram as aulas e tomaram as ruas Quito.

Com a declaração de Estado de Exceção, a repressão policial ganhou ares de dramaticidade. Já há o registro de pelo menos dois mortos desde o início dos protestos e pelo menos a detenção de cerca de 600 manifestantes desde quinta-feira passada (3).

Na última terça-feira (08), manifestantes ocuparam a Assembleia Nacional exigindo a revogação do pacote de medidas. O governo, truculento e sem o respaldo popular, por sua vez, decretou toque de recolher à partir do período noturno nas áreas próximas a edifícios governamentais. A própria sede do governo foi transferida para a cidade de Guayaquil.

Para além da revogação das medidas, estudantes, indígenas e setores da classe média gritam “Fora, Moreno!”, bandeira também defendida por Rafael Correa, que postou um vídeo saudando as manifestações em curso em todo território nacional.

A saída de Moreno passa a ser defendida por amplos setores da esquerda. À direita, aparecem teses conspiracionistas que alegam que os manifestantes estão sendo instrumentalizados pelo chavismo do presidente venezuelano Nicolás Maduro.

Passando o pesadelo do falso Lenin, a esquerda no país terá que redefinir seu projeto de desenvolvimento. Desenvolvimentismo ou buen vivir? Quais são os caminhos viáveis para a construção de uma sociedade verdadeiramente democrática, justa e soberana? Explorar os recursos petrolíferos? Ou mantê-los no subsolo?

As lutas equatorianas são a demonstração de que a negação do ultra-liberalismo é o caminho para uma outra sociedade. Só não sabemos direito qual. As disputas permanecem em aberto. Que as lutas no Equador nos inspirem e se conjuguem as manifestações regionais e globais de superação da atual conjuntura, pautada por discursos e ações de governos obscurantistas.

Vladimir Lenin, sí! Lenín Moreno, no!

Lenin II, ciao!

*Gustavo Menon é pesquisador da “Revolução Cidadã” no Equador e doutorando no Programa de Pós-Graduação em Integração da América Latina pela Universidade de São Paulo – PROLAM/USP. Mestre no Programa de Estudos de Pós-Graduados em Ciências Sociais na PUC-SP e pesquisador do Núcleo de Estudos de Ideologias e Lutas Sociais – NEILS/PUC-SP. Docente no Centro Universitário SENAC, no Instituto Sumaré de Educação Superior e na Faculdade de Guarulhos.

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