Por Guigo Ribeiro, para Desacato.info.
Sobre uma situação de 2014, mas que possivelmente aconteceu ontem, hoje, amanhã.
Em uma tarde qualquer de um domingo qualquer de 2014, caminhava por uma rua
tranquila em que o sol começava a despedida do turno do dia. Atravessou uma rua,
aguardou para atravessar outra. Trocou de música e lá ia na pressa de quem ainda tem
alguma esperança de aproveitar o restinho do final de semana.
Entrou numa avenida e, em seu pouco movimento, estranhou uma viatura estacionada
para depois entender o motivo ao constatar a abordagem de dois meninos negros.
Atravessou a situação e lá seguiu. Mas não por muito tempo. No meio da faixa, ouviu
um som distante, possivelmente abafado pelos fones. Sentiu uma pesada mão agarrar
seu ombro. Se virou e deu de cara com um dos policiais presentes na abordagem dos
meninos mais atrás, meninos que foram dispensados. Com a calma que o manual de
sobrevivência diante da polícia ensina, parou e cuidou para que não houvessem
movimentos bruscos:
– Não tá ouvindo não? – indagou o homem da lei.
– Estou com fones…
– Tem passagem? Fuma maconha? – perguntou o oficial um tanto ofegante pela corrida
ao alvo.
– Não. – respondeu sem mais delongas.
– Encosta ali!
Seguiu a ordem e foi ao encontro do outro policial presente que, neste momento, estava
sentado no banco passageiro da viatura. Diante do outro, a repetição do roteiro inicial:
– Tem passagem? Fuma maconha?
– Não.
Para sequencia no procedimento, os oficiais solicitaram o documento de identificação.
RG em mãos. Anotações. Dados, campos para preencher. Um saco. O domingo que ia
embora rapidamente. Mas manteve o silencio partindo dos ensinamentos do manual de
sobrevivência diante da polícia. Um dos oficiais, possivelmente querendo quebrar o
gelo, quis saber mais do alvo em potencial:
– Você trabalha com o quê?
– Sou músico e educador.
– Que legal. – fechando algum campo de preenchimento.
Procedimentos realizados, documento devolvido, fim da abordagem.
– Obrigado. Bom domingo.
– Obrigado. Mas… me deixa perguntar uma coisa. Qual o motivo da abordagem? Tá
acontecendo algo no bairro? –
O oficial em sorriso.
– Não. É que quando eu tinha sua idade, eu tinha um cabelo grande igual o seu e um
dread aqui atrás. E era onde eu guardava meu baseado.
Então, contrariando o manual de sobrevivência diante da polícia, ousou perguntar:
– Mas isso é um tanto preconceituoso, não?
O oficial riu, disse que não e mostrou sua arma na cintura em um pedido educado de
“cala a porra da boca”. Ligaram o carro e foram embora. Talvez para uma próxima
abordagem motivada por um tipo de cabelo, cor de pele. Vai saber.
O manual de sobrevivência diante da polícia ordena o silêncio. Ordena manter a cabeça
erguida ao passar por eles porque, num descuido de atenção ao chão que se pisa, é
possível que a lei tenha uma interpretação errada, “alguém abaixando a cabeça em
divida, se escondendo”. Os antigos orientam:
– Quando a polícia te parar, não fala nada. Fica quieto e firme o pensamento em Deus.
Ao ver a viatura, não acenda um cigarro porque, se visto de longe, vai saber se eles não
vão acham que é maconha. Ao ver uma viatura, cuidado com movimentos bruscos. Não
use capuz, toca. Responda o necessário e somente o necessário. O desconforto (pânico)
é tanto e tão frequente que é recorrente o uso desesperado do “senhor”:
– Não, senhor!
– Tô indo trabalhar, senhor.
– Tô indo estudar, senhor.
– Eu não fiz nada, senhor.
– Por favor, senhor. Não atira!
Senhor… senhor… senhor… o uso excessivo da educação pela preservação da vida.
Assim manda o manual de sobrevivência diante da polícia.
Isso tudo é de costume. Naturalizado, difundido. Talvez esteja num campo de pouca
consciência e somente se reproduz. Assim se entendeu e assim se faz. Mas…
francamente… é normal?
Guigo Ribeiro é ator, músico e escritor, autor do livro “O Dia e o Dia Que o Mundo Acabou”, disponível em Edfross.
A opinião do/a autor/a não necessariamente representa a opinião de Desacato.info.
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