Economia solidária, democracia e igualdade: possibilidades e desafios

Foto: Economipedia

Por Oz Iazdi, para Desacato.info.

Em um artigo postado anteriormente [1] utilizei uma anedota para descrever como construímos nossas percepções de justiça em três dimensões diferentes: distributiva, procedimental e interacional. Argumentei que não nos importamos apenas com a distribuição final dos bens em uma situação em que algo de valor deve ser dividido entre diversas pessoas, mas também nos importamos com o próprio processo pelo qual se dá essa divisão e com a forma com que somos tratados pelos outros durante esse processo. Ou seja, tendemos a perceber uma interação social como justa quando somos tratados com dignidade, respeito e reconhecimento pelas outras pessoas, bem como quando nos envolvemos em decisões tomadas a partir de processos participativos e democráticos, nos quais nossa voz tenha alguma relevância. Dito isso, defendi que entender o modo pelo qual as pessoas formam suas percepções de justiça é fundamental tanto para a compreensão de seus anseios e aspirações como para o desenvolvimento de políticas públicas mais assertivas e socialmente benéficas, ainda que um movimento de mudanças institucionais possa ser dificultado pela legitimidade e naturalidade das crenças, convenções, normas e valores que são socialmente compartilhados. Em todo caso, se há a possibilidade de se pensar em uma Outra Economia, há também espaço para que essas mudanças ocorram, seja a nível de políticas públicas, seja a um nível mais sistêmico e estrutural.

É nesse sentido que é possível pensar de que forma uma estrutura ideal de economia solidária (ES) poderia prover maiores incentivos do que uma estrutura ideal de economia capitalista (EC) para a amplificação do senso de igualdade, democracia e solidariedade entre as pessoas. Assim, levantemos algumas das principais diferenças entre esses dois modos de produção e distribuição.

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Primeiramente, enquanto a EC se baseia na propriedade privada e possui um foco elevado na equidade, isso é, em uma concepção de mérito onde cada um recebe em proporção direta ao que contribui para a produção (ao menos em tese!), a ES se assenta sobre a propriedade coletiva ou associada e ressalta um foco maior na igualdade distributiva e na necessidade de seus membros. Portanto, já de partida, a economia capitalista pressupõe um aspecto distributivo funcional da renda, ou seja, uma distinção entre aqueles que possuem e aqueles que não possuem algum capital ou propriedade. Por sua vez, na economia solidária esse capital é coletivo. Adicionalmente, enquanto na EC há um entendimento da educação como uma decisão de investimento individual visando um retorno monetário, a ES propõe, em sua estrutura ideal, o investimento constante em aprendizado técnico e educacional de todos os seus membros, promovendo uma democratização do conhecimento e negando a compreensão da educação como um elemento meramente voltado aos ganhos no mercado, ressaltando, também, sua importância na formação cidadã. Essa estrutura distributiva da ES provê condições para diminuir as desigualdades de oportunidades ao coletivizar os custos educacionais, promovendo capacitação e educação a trabalhadores e pessoas que estão à margem das políticas públicas ou que não recebem oportunidades de capacitação e ascensão na hierarquia de uma empresa capitalista típica.

No que diz respeito à justiça procedimental, a principal diferença entre uma empresa capitalista e um empreendimento econômico solidário se dá através de suas formas de gestão. Enquanto a empresa capitalista se baseia em uma heterogestão calcada em procedimentos realizados de forma hierárquica em que as dúvidas e informações são requisitadas de baixo para cima e as ordens fluem de cima para baixo, os empreendimentos solidários devem se caracterizar por uma autogestão onde todos os membros possuem o mesmo poder de voto e uma possibilidade clara de expressar suas opiniões nos processos de produção e distribuição mediante a realização de reuniões, assembleias e comitês. Dessa forma, a ES possibilita que todos os membros tenham um poder de voz nos processos decisórios mais relevantes.

Por fim, no que diz respeito à dimensão da justiça interacional, nota-se que a EC está estruturada em interações sociais que se fundamentam na busca pelo interesse próprio e no incentivo à competição, enquanto a ES provê incentivos à cooperação solidária e à presença de maior confiança entre seus membros, dado que é através desses laços estreitos que se estabelece uma coesão comunitária e que se permite uma união por objetivos coletivos. Adicionalmente, os domínios de provisão na ES vão para além da ótica do mercado, tendo relevância também as trocas não-monetárias e a própria economia doméstica. Assim, espera-se que a economia solidária proveja um ambiente que incentive tratamentos mais dignos e respeitosos entre as pessoas, gerando menos conflitos e uma maior percepção de justiça interacional em comparação ao que ocorre a partir de uma estrutura capitalista.

Esse exercício de comparação entre essas duas formas de economia nos permite inferir, de modo abstrato, as capacidades e os incentivos que elas promovem a partir de suas concepções ideias. No entanto, é preciso ressaltar este último termo: ideais. Até este momento, estamos falando dos potenciais de justiça que essas economias seriam capazes de proporcionar aos seres humanos caso funcionassem exatamente da forma em que são pensadas em suas características fundamentais. Resta, então, saber se, em termos práticos, a economia solidária de fato se aproxima de um modelo de economia mais igualitário, democrático e solidário.

Antes de pontuar qualquer constatação, não é possível ignorar o fato de que os próprios empreendimentos econômicos solidários existentes estão inseridos em um contexto de uma economia capitalista nacional e internacional. Dessa forma, deve-se relativizar as experiências práticas da economia solidária como estruturas em um constante processo de maturação, aprendizado e desenvolvimento, embora seja possível identificar empreendimentos solidários de diversos tamanhos, áreas de atuação e capacidade de autossustentação ao longo do território brasileiro. Embora algumas experiências solidárias já tenham se estabelecido como grandes empreendimentos protagonistas em seus setores, é possível afirmar que a maioria ainda permanece como iniciativas pequenas e marginais.

Dito isso, o que se nota através dos resultados de diversas pesquisas e observações qualitativas [2], [3], [4] levadas a cabo em empreendimentos econômicos solidários é que, ao menos no que diz respeito às percepções de justiça procedimental e interacional, há ainda um longo caminho a ser percorrido. Por um lado, observa-se que há uma dificuldade na implementação dos procedimentos democráticos e participativos através da autogestão, sendo que, em muitos casos, costuma-se notar uma polarização das decisões de cooperativas e associações em núcleos bem definidos de membros dirigentes desses empreendimentos. Contudo, essa polarização se dá muito por conta da não percepção da importância ou do desinteresse por parte dos membros em participar ativamente das assembleias e comitês que definem o direcionamento de gestão dos empreendimentos solidários. Também se nota que muitas pessoas se sentem incapazes de opinar e votar em questões relevantes para o futuro dos empreendimentos. No quesito interacional, há uma dificuldade em romper com valores individualistas e instituições tipicamente capitalistas, muito por conta das experiências passadas de diversos membros em empresas que promovem a intensa competição entre seus trabalhadores. Assim, o senso de solidariedade acaba muitas vezes por ficar comprometido a uma visão compartilhada mais conflitiva e individualista. Em termos distributivos, no geral há uma percepção geral de justiça entre os membros dos empreendimentos solidários, embora os pagamentos pelo trabalho também acabem por seguir uma ótica mais equitativa, isso é, cada um recebe proporcionalmente ao quanto consegue produzir ou vender.

Em geral, nota-se que, apesar das dificuldades que a economia solidária tem de prover incentivos reais ao compartilhamento de uma percepção de justiça mais democrática, solidária e igualitária, há quase sempre um consenso de que há espaço para a participação democrática e o voto nos empreendimentos solidários. Também há diversos exemplos de ajuda mútua e cooperação, nos quais a solidariedade entre os participantes acaba por suplantar objetivos individuais, levando a um reconhecimento do outro de forma mais digna e humana do que o tratamento tipicamente observado em empresas que visam apenas ao lucro e incentivam a competição interna. Seja como for, a dificuldade maior parece ser mesmo a superação das normas, convenções, hábitos e valores ensejados pelo capitalismo, que muitas vezes conferem uma naturalidade e legitimidade ao modo de pensar e de agir das pessoas, o que acaba por retardar mudanças no sentido de uma economia mais justa. Consequentemente, há ainda um caminho a ser percorrido pelos empreendimentos que se sustentam nas concepções da economia solidária. Esse caminho é tortuoso e possui algumas pedras, mas toda forma de se buscar uma economia mais democrática, igualitária e solidária é digna de louvor, devendo se pautar no constante aprendizado, na determinação em se buscar mudanças para o bem-estar coletivo e na criatividade, que nada mais é do que a capacidade de se pensar um futuro que ainda está por ser construído.

[1] http://desacato.info/percepcoes-de-justica-instituicoes-e-um-copo-de-vodca/

[2] CHIARELLO, Caio; EID, Farid. Singularidades na Gestão de Cooperativas Tradicionais e Populares: Estudo de Caso em Cooperativas Rurais do Paraná. Organizações Rurais e Agroindustriais, v.12(1), p.98-112, 2010.

[3] LUZIO DOS SANTOS, Luís; BORINELLI, Benilson; PITAGUÁRI, Sinival. Economia Solidária Numa Pluralidade de Perspectivas. Londrina, UEL: 2011.

[4] OLIVEIRA, Julimari; TAKANO, Jessica; SANTOS, Luís; DUTRA, Ivan. Princípios de Economia Solidária em Cooperativas de Catadores de Resíduos Sólidos de Maringá PR: Avanços, Desafios e Limitações. Revista Perspectivas Contemporâneas, v.11(3), p.70-96, 2016.

Oz Iazdi é doutor em economia pela Unicamp e atualmente estuda instituições, justiça e economia comportamental.

A opinião do autor/a não necessariamente representa a opinião de Desacato.info.

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