Faltavam poucos minutos para o enforcamento. Eram 15 h e o sino da igreja da vila repicava sem parar, emitindo sons que chegavam como soco no nariz, dedo nos olhos e picada de marimbondo. Todos acotovelavam-se na praça para ouvir as acusações contra o condenado . Dali alguns instantes seria enfocado um homem com cerca de 74 anos. O carrasco observava de maneira enigmática a série de sete janelas trancadas no céu. Ele iria proferir antes do enforcamento um discurso incriminador perante a população composta essencialmente de operários, trabalhadores de aplicativos, professores, faxineiros, caixas de super mercado e atendentes de telemarketing . Ao fundo uma orquestra tocava pela quinta e última vez o hino nacional.
O homem estava com a corda com pele de sucuri em volta do pescoço. A longa corda foi amarrada no galho de uma árvore centenária. O condenado com as mãos atadas, os pés amarrados e a boca tampada, mal conseguia se equilibrar no banquinho, que seria chutado dentro de instantes. O carrasco iniciou seu discurso:
Me perdoem, mas mal consigo voltar meus olhos para o condenado. Vejam o que as forças do mal podem lançar sobre a terra! Estamos diante daquilo que no século XX chamavam de “ intelectual “. Um homem que passou décadas da sua vida, da vida que é concedida por Deus!, doutrinando jovens. Ele possui uma ideologia, sim uma ideologia… Em suas aulas e em seus artigos falava sobre a miséria no Brasil e portanto falava mal do nosso país. Ele usou a palavra “ cultura “ mas para pronunciar na verdade o idioma de Satã! Em escolas, universidades e centros culturais, locais aonde os jovens inocentes deveriam aprender os conhecimentos necessários para servir ao mercado, esse homem promovia debates, discussões sobre as diferenças entre ricos e pobres.
Duas mulheres que estavam junto ao público gritaram :
Comunista!
Terrorista!
O carrasco continuava:
Mas tem mais senhoras e senhores, muito mais! Este homem possui objetos que comprovam a sua falta de patriotismo, o seu ódio contra a família e a propriedade.
Uma senhora sorridente caminhou em direção ao carrasco com uma caixa contendo variados itens que pertenciam ao condenado. O carrasco retirou da caixa um exemplar do livro A origem das Espécies, de Charles Darwin.
Temos aqui um exemplar demoníaco que nega o fato do homem ser criação divina.
A evolução das espécies é uma teoria que nega a Deus.
Um homem gritou:
Ateu!
O carrasco retirou outro livro: A Interpretação dos Sonhos, de Sigmund Freud. Nem foi preciso que ele comentasse a obra, sendo interrompido por três pessoas que gritavam:
Pornográfico!
Devasso!
Tarado!
O carrasco colocava as mãos sobre o rosto e em seguida as elevava em direção ao céu, como se pedisse auxílio divino. Ele prosseguiu e retirou da caixa uma pilha de revistas de histórias em quadrinhos e um antigo single dos Beatles:
O que dizer destes itens? Gibi: sabemos quantas pessoas se entregaram aos pecados da carne e aos mais hediondos comportamentos após a leitura de histórias em quadrinhos. Essas revistas são desenhadas com o intuito de destruir as nossas tradições e corromper os nossos jovens!
Pessoas gritavam:
Ideologia de gênero!
Multiculturalismo!
Apologia da Revolução!
O carrasco prosseguiu tendo em mãos agora o velho single do quarteto de
Liverpool:
Beatles! Temos aqui a canção I Want To Hold Your Hand. Parece uma música inocente mas não é! Se colocarmos este disco de trás pra frente numa vitrola, será possível ouvir “ Proletários de todos os países, uni-vos! “. Os Beatles eram agentes secretos que trabalhavam para a União Soviética. Este homem que está diante de nós participa de um culto de drogados e pervertidos, cujo líder espiritual John Lennon se dizia mais popular do que Jesus Cristo!
Mais gritos vinham do público:
Maconheiro!
Comunista!
O carrasco pediu calma e prosseguiu:
Até agora nos deparamos com objetos que apenas sugerem o caráter maligno deste homem. Passo agora a comprovar que estamos, de fato, diante de um comunista.
O carrasco retirou da caixa livros assinados por autores como Marx, Engels, Lenin, Trotski, Rosa Luxemburgo, Gramsci, Marcuse e outros. Ele atirava os livros pelo ar. Transtornado, descabelado, ele vociferou em meio aos gritos da multidão suas palavras finais:
Basta! Basta de imundices! Homens como esse falam em cultura mas participam junto aos marcianos de uma grande conspiração, de um conjuração contra a civilização! Ele é um inconfidente! Mostremos com o exemplo da sua morte que o capitalismo é eterno! Que é o sol que gira em torno da terra e não a terra que gira em torno do sol! Mostremos que quem deseja mudanças na sociedade não aceita na verdade os desígnios de Deus! Não existe Paraíso sem acumulação de capital! As multinacionais nos dão o pão de cada dia! Quem não trabalha desobedece as leis de Deus! Quem não trabalhar hoje irá para o inferno amanhã!
Todos gritavam:
Enforquem o maldito!
O homem foi enforcado. No final da tarde, a caixa contento os itens do morto deveria ser levada para longe da vila e enterrada em local desconhecido. Um jovem, que passa os dias fazendo entregas de bicicleta foi escalado junto a outros dois jovens que trabalham como atendentes de telemarketing, para enterrar a caixa. Os três enterraram a caixa tomados por uma grande curiosidade pelos itens que esta continha. Estes jovens não tinham as mesmas opiniões dos outros habitantes da vila. A caixa foi enterrada naquela noite. Porém, passados dois dias, a caixa foi desenterrada e seu conteúdo desapareceu.
Naquela vila, por volta das 2 h da madrugada, quando os homens e mulheres tementes a Deus dormem, aqueles três jovens estudam documentos históricos, leem aquelas obras que pertenceram a um condenado.
Observação: esta é uma pequena obra de ficção. Apesar do seu pano de fundo ser inevitavelmente histórico, personagens e lugares foram inventados.