Por Almir Felitte.
Democracia, muitas vezes, é um termo controverso. Em nome dela, por exemplo, e usando-a como uma falsa justificativa, guerras são travadas por países que, na base da força, conquistaram o direito de dizer quem é e quem não é democrático mundo afora. É também em nome de uma “democracia liberal” que uma elite minúscula em tamanho conseguiu criar uma verdadeira ditadura dos interesses burgueses na ordem mundial. Por essas e outras, confesso ter dificuldades em definir o que é Democracia. Mas se ela realmente foi pensada como contraponto a regimes autoritários, uma coisa é certa: o Brasil ficou bem mais distante dela nos últimos tempos.
É bem verdade que as “benfeitorias democráticas” nunca atingiram igualmente a todos os brasileiros na longa história do nosso país, onde a desigualdade sempre relegou as camadas mais pobres e vulneráveis a um grande déficit de democracia. Nos últimos cinco anos, porém, esse déficit começou a se tornar um verdadeiro abismo. É o que acontece quando a elite de um país, talvez por interesses das elites de outros países, resolve simplesmente rasgar o “livro de regras” da sociedade para tomar o poder.
Desde que os resultados eleitorais foram contestados em 2014 por uma direita mais uma vez derrotada, já ficara claro o tom de vale-tudo que essa mesma direita implantaria na política brasileira, mesmo que a esquerda vencedora, ironicamente, estivesse disposta a fazer uma série de concessões à agenda liberal na economia. Mas quem achava que o fundo do poço de autoritarismo no país seria um impeachment sem base legal se enganou redondamente.
Em uma eleição que, ao que tudo indica, foi inundada de fraudes e crimes eleitorais, foi fazendo caricatura de ditador que a direita brasileira, já desavergonhada, ganhou sua cara nas urnas. Jair Bolsonaro, cujo patético histórico como parlamentar já denunciava a falta de apego democrático, não teve um só segundo de campanha que pudesse dar esperanças de que não descambaria para um autoritarismo que nosso couro latino já se acostumou a viver. E, para o azar da nossa triste e latina história brasileira, sempre fadada a ver homens de farda cometendo atrocidades tomados por uma “síndrome de salvação nacional”, Jair vai cumprindo exatamente tudo aquilo a que ele sempre se propôs.
Poderia dizer que uma tragédia anunciada não é tão assustadora assim, pois já é esperada. Ainda mais quando a tragédia se trata de um Presidente que, logo após vencer as eleições, confirmou publicamente, em rede nacional, o seu desejo de pulverizar a oposição através de prisões, exílios e execuções. Mas a velocidade que a ruptura democrática atingiu nos últimos meses é aterrorizante. Impressiona como um país pode ser submetido a tantos fatos autoritários em tão curto espaço de tempo e de forma cada vez mais desavergonhada.
Aliás, vergonha tem sido item ausente em um Governo cujo Presidente admite nepotismo em tom de deboche a cada vez que vê um microfone da grande mídia. Se a ascensão meteórica do filho de Mourão no Banco do Brasil já parecia ruim, talvez nem mesmo os mais pessimistas esperassem a indicação de um “Baby Doc” à embaixada brasileira nos EUA, anunciada por um “Papa Doc” risonho e orgulhoso, em meio a piadas, para a imprensa.
Na imprensa, aliás, já se notam os primeiros indícios de censura. Não a autocensura que já nos acostumamos a ver, quando as grandes mídias evitam tocar em assuntos que não são de seus interesses. Mas a censura clássica mesmo, daquelas que parecem a um passo de descambar para a violência contra jornalistas. As ameaças à segurança de Glenn Greenwald por revelar os escândalos da Vaza Jato são emblemáticas, mas até gente como Miriam Leitão, que aplaude boa parte das medidas do Governo, já vem sofrendo um forte cerco dessas “milícias bolsonaristas”, grupos cada vez mais próximos de tornarem-se uma versão brasileira do Patria y Libertad, milícia fascista que surgiu no Chile pouco antes do golpe de Pinochet.
Mas enquanto na mídia a censura ainda não chega a ser tão direta, nos órgãos oficiais de Governo já não se pode mais dizer o mesmo. O caso do INPE, onde o diretor do instituto foi exonerado por revelar dados de desmatamento que Bolsonaro não gostaria que se tornassem públicos, foi um dos últimos, mas a lista dos indícios de aparelhamento autoritário do Estado brasileiro pelo Presidente é extensa.
As trocas de membros na Comissão de Mortos e Desaparecidos Políticos e a transferência de um oceanógrafo que dificultava a expansão hoteleira em Noronha para o Sertão Nordestino também são casos recentes que se somam à exoneração de uma diretora do INEP que criticou o Presidente quando este disse que gostaria de ver a prova do ENEM antes de sua aplicação e à exoneração de um chefe do IBAMA que havia multado Jair em 2012, entre tantos outros casos.
Com todos esses acontecimentos autoritários em um tão curto espaço de tempo, é impossível não se questionar se ainda estaríamos vivendo em tempos democráticos, mesmo que se considere o conceito capenga de Democracia que sempre vivemos no Brasil. Aliás, importante dizer: nossas falhas democráticas costumeiras, que sempre atingiram os mais pobres, também estão piorando. Segundo o Fórum Brasileiro de Segurança Pública, o número de vítimas letais da violência policial no país, por exemplo, saltou de 3.330 em 2015 para 4.240 em 2016, chegando a 5.159 em 2017. Tudo indica que a situação será ainda pior este ano.
Essa rápida escalada autoritária vista no Brasil nos leva a pensar que Bolsonaro vai se tornando uma espécie de “Ditador de Schrödinger”. Sem ainda ter sido testado por amplas manifestações populares mais enérgicas, como a que incendiou Ministérios em 2017, não podemos afirmar com todas as letras qual será a reação de Bolsonaro a revoltas que possam nascer da já existente insatisfação popular com o seu Governo. Até lá, Bolsonaro, ao mesmo tempo, é e não é um déspota escancarado. Suas atitudes até agora, porém, já mostram bem o que veremos quando “abrirmos essa caixa”.
No último sábado, um encontro de mulheres organizado pelo PSOL foi intimidado pela Polícia Militar, que queria identificar as mulheres ali presentes. No dia seguinte, domingo, um torcedor do Corinthians foi agredido pela polícia, retirado do estádio e detido por criticar o Presidente. Em pouco mais de seis meses, já não resta muito “verniz democrático” no Governo Bolsonaro. Esperaremos não poder escrever mais textos como este que agora escrevo para pararmos essa tragédia?