Nem na ditadura presidentes elogiavam tortura publicamente

Regime militar atribuía denúncias de tortura a uma “campanha para denegrir” a imagem do Brasil no exterior. “Não há tortura em nossas prisões. Também não há presos políticos.

Garrastzu Médici, que usou a seleção de futebol para melhorar imagem, chegou a cancelar compromisso externo para não ser cobrado sobre tortura sob seu governo. Foto: Agência Nacional.

Por Antonio Alonso, da Fundação Perseu Abramo.

Os elogios públicos velados e diretos que o presidente Jair Bolsonaro faz a tortura e torturadores contrariam a postura que os próprios generais-presidentes tiveram durante a ditadura. A existência de tortura nas prisões foi oficialmente negada durante todo o regime militar. O tema incomodava até mesmo o general Emílio Garrastazu Médici, considerado o mais “linha-dura” de todo o período.

Na viagem de três dias que fez aos Estados Unidos, em 1971, o general-presidente cancelou o tradicional encontro de chefes de Estado estrangeiros com o Clube de Imprensa de Washington. O general não queria enfrentar as inevitáveis perguntas sobre tortura e repressão no Brasil, denunciadas pelo senador democrata norte-americano Edward Kennedy, entre outros.

Jair Bolsonaro afirmou nesta segunda-feira, 29 de julho, que “se o presidente da OAB quiser saber como o pai desapareceu no período militar, eu conto para ele”. Felipe Santa Cruz, presidente da Organização dos Advogados do Brasil (OAB), é filho de Fernando Augusto de Santa Cruz Oliveira, que desapareceu na ditadura. O presidente acrescentou ainda que o advogado não terá interesse em saber a “verdade”.

Embaraço internacional

Há 49 anos, em julho de 1970, a Comissão Internacional de Juristas, em Genebra, fez uma denúncia junto à Organização dos Estados Americanos (OEA) sobre a prática de torturas pela ditadura brasileira. Em um documento preparado a partir de relatos de vítimas de violações de direitos humanos, a organização registrou a existência de esquadrões da morte e classificou a situação no Brasil como de “guerra civil”.

O governo militar proibira a entrada da entidade nas prisões do país. As denúncias de torturas constituíam o maior problema da diplomacia brasileira sob a ditadura. Autoridades em viagem ao exterior eram alvo frequente de manifestações, como ocorreu com o presidente da Câmara, Flávio Marcílio (Arena), no Congresso da União Parlamentar Internacional, na Holanda. No jantar oficial do encontro, Marcílio e comitiva foram confrontados por uma jovem que denunciou torturas no país. “Não há presos políticos no Brasil, apenas criminosos comuns”, disse o deputado, repetindo o discurso oficial.

O governo atribuía as denúncias a uma “campanha para denegrir a imagem do Brasil no exterior”. Em 9 de maio, a Presidência da República divulgou nota, afirmando: “Não há tortura em nossas prisões. Também não há presos políticos. (…) Essa intriga, na sua desfaçatez, busca gerar discórdia entre nações democráticas, amigas e aliadas (…) Provêm, inequivocamente, de grupos esquerdistas”.

A ditadura assassinou mais de 400 cidadãos brasileiros entre 1964 e 1985. Muitos deles continuam desaparecidos até hoje, como é o caso de Fernando Augusto de Santa Cruz Oliveira, pai do atual presidente da OAB. Fernando desapareceu no Rio de Janeiro, em 1974. Segundo o livro Direito à Memória e à Verdade, produzido pelo governo federal, Fernando foi preso junto com um colega em Copacabana por agentes do DOI-Codi-RJ em 23 de fevereiro daquele ano.


Este texto é um trabalho do Memorial da Democracia, o museu virtual das lutas democráticas do povo brasileiro, que é mantido pela Fundação Perseu Abramo e pelo Instituto Lula. O Memorial tem um capítulo inteiramente dedicado à tortura durante a ditadura militar, para acessá-lo, visite nosso especial sobre A Longa Noite do Terror

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