Da origem ao craque que virou presidente: curiosidades da Copa Africana de Nações

Mohamed Salah em dividida com Elia Mescha, do Congo; egípcio recebeu 5% dos votos nas eleições presidenciais de seu país / Foto: Javier Soriano / AFP

Por Rute Pina.

A cada dois anos, desde 1957, seleções africanas de futebol disputam a Copa Africana de Nações. Com menos visibilidade, os jogos torneio, que começou no dia 21 de junho no Egito, não estão sendo transmitidos no Brasil. A final será disputada em Cairo, no dia 19 de julho.

Conhecida como CAN, o campeonato continental, que está na 32 ª edição, é organizado pela Confederação Africana de Futebol (CAF).

A entidade foi fundada em 1957, o primeiro ano da Copa. Jean Gustavo Oliveira, pesquisador das relações Brasil-África no Instituto de Estudos Brasileiro da Universidade de São Paulo (USP), lembra que o surgimento do campeonato tem relação com os movimentos independentistas da África.

“Os fundadores da CAF foram apenas quatro países: Egito, Sudão, Etiópia e África do Sul — que vivia em regime de apartheid desde 1948, ainda não era um país oficialmente independente, mas foi uma das seleções fundadoras.”

Mesmo sendo um dos países fundadores da confederação, a África do Sul foi excluída do primeiro campeonato. Vivendo em o período de segregação da população negra, a lista que o time queria inscrever só incluía jogadores brancos. “Eles ficaram suspensos das competições até os anos 1990”, conta o pesquisador.

Naquele ano, a Etiópia foi direto para final, mas perdeu a decisão para o Egito. A seleção sul-africana só foi voltar a disputar o campeonato em 1996, ano em que foram campeões jogando em casa.

Ao longo do tempo, o número de seleções participantes foi crescendo. Em 1962, ocorreu a primeira edição com fase eliminatória. “O crescimento do número de seleções obviamente vai ter muita relação com o número de independências africanas. Principalmente, no ano de 1960, ano das maiores explosões de independências”, relaciona Oliveira.

Em 2019, o número de equipes que disputam o título aumentou de 16 para 24.  São 54 seleções filiadas à CAF,  48 participaram das eliminatórias para a CAN. Nesta edição, três países entraram no campeonato pela primeira vez: Mauritânia, Madagascar e Burundi.

A partir da edição de 2013, a Copa Africana de Nações passou a ser em ano ímpar para não coincidir com a Copa do Mundo. A mudança foi resultado de pressões, a partir de 2008, dos clubes europeus e da Fifa. Outra pressão para a mudança no calendário foi para que CAN ocorresse em junho.

A confederação africana era contrária, conta o pesquisador, porque a alteração não permitiria que países da África Ocidental e Central sediassem o torneio, por causa do período de chuvas e cheias. “Mas o futebol gira gravitacionalmente em torno da Europa, então cada vez mais os países têm adequado seus calendários.”

Dificuldades no continente

O jornalista esportivo Matheus Beck explica que jogadores de destaque da CAN jogam em outros países, como o egípcio Mohamed Salah e o senegalês Sadio Mané, que atuam no clube inglês Liverpool.

“Da mesma maneira que é uma maneira de ascenção social jogar na Europa, também é para um africano deixar o seu país e ir para o grande centro. Mas também tem casos de grande sucesso, como o [Samuel] Eto’o em Camarões ou o [Didier] Drogba, na Costa do Marfim, que voltaram para seus países e desenvolvem projetos que ajudam a desenvolver o futebol lá”, analisa Beck.

O pesquisador Jean Oliveira, em 2010, morava em Moçambique e chegou treinar em alguns times profissionais de futebol do país.

“Deu para entender um pouco como funciona a realidade dos jogadores. Aqui no Brasil, mesmo que o jogador nunca chegue a jogar na Europa, que é o grande sonho, se ele assina um contrato com a primeira ou até mesmo a segunda divisão brasileira ele já consegue destaque e condições financeiras melhores”, explica.

“Não é essa realidade no país africano. É menos motivante para o jovem largar tudo para se dedicar ao futebol porque ele sabe que para ele se dar muito bem, só se ele conseguir uma transferência para outro país”, continua o pesquisador.

Oliveira relata que as equipes africanas, de um modo geral, não têm poderio econômico para disputar financeiramente mesmo com times pequenos da Europa. Por conta disso, muitas das seleções do continente são quase totalmente compostas de jogadores que atuam no exterior.

Por esse motivo, a confederação do continente também realiza, em modelo inédito, o Campeonato das Nações Africanas (CHAN). O torneio é também entre seleções, mas só permite participação de jogadores que jogam nas ligas nacionais africanas.

Esporte e política

Como todo campeonato internacional, questões geopolíticas afetam a copa. E o esporte afeta também a política. As últimas quatro edições da competição, por exemplo, tiveram seu país-sede alterado.

Em 2019, por causa de atrasos da organização e conflitos políticos, o evento foi deslocado de Camarões para o Egito. “Existe um motivo oficial, que é a questão de a federação camaronesa não atender às exigências da confederação africana em relação aos estádios e infraestrutura do país”, conta Beck.

“Mas muito se fala, nos bastidores, dos conflitos e da atuação terrorista no norte do país, que é algo que preocupa bastante e como não houve questão de segurança, decidiram transferir de local”, pontua o jornalista.

Situação semelhante aconteceu com a Líbia, que deixou de sediar o evento de última hora em duas ocasiões. Em 2017, a sede foi alterada para o Gabão. Em 2013, ano das manifestações da primavera árabe, o torneio foi transferido para a África do Sul. “Como teve toda a convulsão política e a queda do Kadafi, eles trocaram. No entanto, quando foi chegando o ano de 2017, a Líbia ainda não estava em condições de sediar o campeonato e acabou passando [a sede] para o Gabão”, explica Oliveira.

Em 2015, a competição também foi transferida, migrando do Marrocos por causa da epidemia de ebola no ano anterior. O país, receoso com o aumento do fluxo turístico, desistiu de sediar o torneio — que foi transferido para Guiné Equatorial.

Oliveira pontua que, como em outros campeonatos, o futebol é também utilizado como vitrine e tem influência na política. Alguns jogadores até mesmo se aventuram em trajetórias eleitorais.

O caso mais famoso é na Libéria, onde o atual presidente George Weah, que tomou posse em janeiro de 2018, é um ex-jogador da seleção de futebol. Weah foi eleito melhor jogador do mundo pela Fifa em 1995, enquanto jogava pelo Milan, na Itália. Ele também recebeu a Bola de Ouro e é o único africano, até hoje, a receber ambos os prêmios.

O ex-jogador de futebol e atual presidente da Libéria, George Weah. Foto: Issouf Sanogo / AFP

No Egito, país que sedia a copa este ano, Mohamed Salah foi mencionado em 5% das cédulas das eleições presidenciais em 2018, com mais de 700 mil votos. O jogador que ganhou a Liga dos Campeões da Europa com o Liverpool neste ano teve mais votos do que o outro candidato oficial. Moussa Moustafa Moussa, da oposição, teve apenas 3% das escolhas dos eleitores.

“E ele não era candidato. O que foi, de certa forma, um protesto. Quem acabou ganhando [o atual presidente Abdel Fattah Al-Sisi] teve mais de 90% dos votos. Só teve um candidato de oposição, uma oposição autorizada pelo governo. E aí 5% colocaram o nome de Salah, uma coisa representativa”, analisa o pesquisador da USP.

Em 2010, um ônibus que levava a seleção do Togo ao campeonato na Angola foi metralhado e a equipe teve que se retirar do torneio. O motorista morreu e nove pessoas ficaram feridas, incluindo jogadores, um médico e um jornalista que acompanhava a equipe. O ataque ocorreu na região separatista de Cabinda, e foi reivindicado pelas Forças de Libertação do Estado de Cabinda (Flec)

Outro paralelo político que Oliveira observa é com relação aos principais patrocinadores dos CAN: a transnacional franco-britânica das comunicações Orange; a transnacional de origem francesa Total S.A., do setor do petróleo;  e a inglesa Umbro, fornecedora da bola do campeonato.

“Na África, no CAN, os principais patrocinadores são de origem de grandes potências mundiais. Nenhum grande patrocinador é de um país africano. Isso acaba demonstrando, ainda, uma forte presença das ex-potências coloniais, principalmente a França”, assevera.

Vitrine 

O jornalista esportivo Matheus Beck afirma que o campeonato dá visibilidade para os jogadores do continente. “ A questão é que, para esses jogadores, a competição é muito importante como uma vitrine. Na mesma maneira se a gente fosse pensar em outras competições, como Copa América, ou até a Copa do Mundo Feminina”, diz.

“Muitas vezes, o fato de haver uma seleção — agora eu digo pela questão etimológica da palavra — por eles fazerem esses recortes, muitos olheiros e muito clubes vão buscar nessa competição esse jogadores”, argumenta.

Beck aposta que na seleção do Egito, anfitriã e favorita desta edição. “Mas a gente não pode descartar, claro, Camarões que, mesmo com a crise interna, sempre tem uma seleção de grande destaque, e eu, pessoalmente, gosto muito da seleção argelina – que tem muitos jogadores que atuam no futebol português e inglês”, pondera.

Ele destaca que a Copa Africana é um momento de percepção da diversidade de culturas, futebolística ou não, do continente. “A maneira como Marrocos e a Guiné jogam, por exemplo, é muito diferente”, pontua.

“Deixa de ser só uma questão de ver os países como exóticos e paradisíacos e começar a encarar como uma maneira séria, uma cultura que a gente tem que prestar mais atenção e dar a devida importância”, finaliza o jornalista.

Com sete títulos, o Egito é o maior vencedor da CAN; seguido por Camarões, com cinco taças; Gana, que possui quatro; e Nigéria, que já venceu o torneio três vezes. O prêmio para a seleção campeã é de US$ 4,5 milhões (R$ 18 milhões). Na Copa América, o primeiro recebe US$ 11 milhões (R$ 44 milhões). Na Eurocopa de 2020, o país campeão poderá receber até 34 milhões de euros (R$135 milhões) em premiações.

Edição: Rodrigo Chagas

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