Estratégias de desmobilização na contramão de leis e políticas públicas socioambientais
Os jornais Estadão e Estado de Minas vêm divulgando quase que diariamente o monitoramento do talude da mina de Gongo Soco. São dados da Agência Nacional de Mineração (ANM) que mostram a velocidade de deformação numa dessas porções da estrutura. Além desses dados, são apresentadas também informações que têm como uma das fontes principais os geotécnicos da própria empresa Vale S.A. O que chama atenção, para além de criar uma situação de suspense sobre se ocorrerá mais um rastro de mortes humanas e ambientais em Barão de Cocais, é que a mineradora, o Estado, a mídia comercial e os próprios órgãos públicos de defesa dos cidadãos tornam informações de interesse privado como se fossem informações oficiais e de interesse público.
Há uma projeção repetida da prática de crimes ambientais que não são investigados com a transparência que a situação demanda, garantindo que haja responsabilização, acesso à informação e à justiça. No último dia 16 de maio, por exemplo, o Ministério Público de Minas (MPMG) divulgou documento direcionado à Vale com a recomendação para que a mineradora adote imediatamente uma série de medidas para deixar claro à população local [Barão de Cocais] os riscos a que ela está sujeita”. Tal recomendação explicita que nem mesmo os órgãos públicos locais estão apropriados das informações básicas sobre os casos envolvendo a mineradora.
Os porta-vozes de órgãos públicos têm, por diversas vezes, referendado os canais de comunicação da Vale e da Fundação Renova, criada pela mineradora Samarco para atendimento aos atingidos e atingidas de Mariana, dando respaldo aos canais de comunicação das empresas como fonte de informações sensíveis para os familiares de vítimas e para a população em geral.
Neste contexto, os atingidos e atingidas dos crimes já ocasionados pelas mineradoras que fazem parte do grupo Vale (Samarco), estão à mercê de informações segregadas e confusas sobre indenizações e vivem uma situação de atrasos nos reassentamentos e de total indefinição, como no caso de garimpeiros e pescadores, que perderam seu meio de trabalho e ainda não tiveram reconhecido o direito ao auxílio emergencial, nos episódios dos rompimentos da mina de Fundão, em Mariana (2015), e do rompimento da barragem Córrego do Feijão, em 2019, no município de Brumadinho. A ausência de informações aponta para uma estratégia coordenada que resulta no enfraquecimento da resistência e da luta coletiva.
É inadmissível que escolhas de gestão de barragens continuem sendo realizadas sem diálogo e sem participação da população atingida – não só porque esse é o fundamento de processos democráticos e faz parte dos acordos dos quais o Brasil é signatário no que tange a empresas e direitos humanos, mas porque a informação e participação dos atingidos e atingidas são determinantes para que, por exemplo, um plano de emergência seja efetivo.
Neste sentido, a Articulação Internacional dos Atingidos e Atingidas pela Vale, rede que congrega diversos grupos da sociedade civil no Brasil e no mundo, realizou uma missão de observação e apoio, logo após o rompimento em Brumadinho, em janeiro de 2019. Como resultado foi produzido um relatório apontando direitos básicos, incluindo de acesso à informação e liberdade de expressão: 1) “O papel atribuído à Vale como o ator responsável por gerir e divulgar dados de interesse público, hoje sob investigação criminal, o papel de articuladora e principal informante sobre o estado e condição das vítimas do crime configura uma perversa e descabida inversão de papéis”; 2) “(…) a Vale passou a gerir o espaço da Associação Comunitária local, controlando o fluxo de informações e a distribuição de atendimento a partir de sua própria equipe, mantendo sob o seu perímetro de observação a atuação de órgãos públicos, de movimentos sociais, da imprensa, de organizações da sociedade civil”.
A mineradora Vale detém uma estrutura profissional e técnica com condições de informar a população afetada e até mesmo competir com a própria estrutura da mídia privada, do Estado e dos órgãos públicos de proteção, vide matéria publicada pelo jornal Estado de Minas, no dia 29 de janeiro de 2019, que relata a contratação de 60 profissionais de comunicação pela empresa para dar conta “das demandas que surgiram após rompimento da barragem em Brumadinho”. Na contramão do discurso da empresa (ou a ausência total de informações) está a sociedade civil e os defensores de direito humanos, que através do Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB) e ou pela publicação A Sirene, produzida por organizações sociais, buscam produzir e difundir informações sistemáticas com foco nos direitos das populações atingidas.
Estas vozes dissonantes, porém, ao invés de valorizados enfrentam um cenário de ameaças, violências e inclusive de assassinatos que permanecem impunes. Cumpre lembrar que o Brasil é o país que mais mata ativistas e defensores da terra e do meio ambiente, segundo ranking lançado em 2017 pela ONG britânica Global Witness. Somente no ano de 2018 ao menos quatro jornalistas foram assassinados no país em decorrência da sua atividade. Tal confluência de dados, leva os comunicadores populares envolvidos na denúncia dos crimes da Vale a uma situação de vulnerabilidade e risco constante.
A comunicação do governo de Minas, por sua vez, se assenta em uma ideologia desenvolvimentista, que propagandeia a mineração como positiva, a despeito de seus impactos locais: naturaliza e dissolve as perdas socioambientais provocadas pela mineradora Vale em nome do desenvolvimento nacional e das compensações e ganhos econômicos regionais. A falta de preocupação do ente público em fornecer informações de interesse das populações está ligada a um modelo de desenvolvimento que, em geral, não prioriza a transparência, o diálogo com os territórios impactados, nem a proteção do meio ambiente e das comunidades atingidas por grandes empreendimentos.
Nessa lógica, se torna mais importante flexibilizar a legislação ambiental do que combater a destruição do meio ambiente. O empenho em retornar a mineração ganhou mais dedicação do governador de Minas Gerais, Romeu Zema (Partido Novo), do que a apuração e punição exemplar dos criminosos que mataram centenas de pessoas em Brumadinho e que hoje seguem com o rastro de mortes anunciadas em Barão de Cocais. Em vez de debater políticas públicas, o governo tem se esmerado em propor cortes, privatizações e anunciar restrições aos programas sociais.
A cobertura dos meios de comunicação comerciais também adere à comunicação da assessoria da Vale e tende a silenciar outras vozes. A mídia acaba por funcionar como caixa de ressonância de releases produzidos pelo grupo de comunicação da mineradora.
Tal situação, contraria o direito à informação e à comunicação essenciais aos cidadãos como destaca a Constituição Federal em dispositivos como o Artigo 5 (direitos individuais), Artigo 37 (princípios de administração pública) e os artigos 220 a 224 (que tratam da comunicação social) que contemplam o direito ao cidadão de informar, de se informar e de ser informado.
É importante lembrar ainda que o Brasil firmou compromissos internacionais nesse sentido, incluindo a assinatura do Acordo de Escazú em setembro de 2018 – tratado que estabelece os parâmetros para a participação social, acesso à informação e à Justiça em questões ambientais em países da América Latina e no Caribe. A assinatura representa uma importante conquista para a sociedade civil na defesa dos objetivos que o acordo abrange: “garantir a implementação plena e efetiva, na América Latina e no Caribe, dos direitos de acesso à informação ambiental, participação pública nos processos de tomada de decisões ambientais e acesso à justiça em questões ambientais (…)”.
Infelizmente, casos como o da Vale em Brumadinho, da Samarco em Mariana e de Barão de Cocais demonstram que a realidade é outra.
A comunicação se torna elemento central e constitutivo das negociações sobre o espaço a ser ocupado pelas barragens e fator estratégico nas relações entre atingidos/a e não atingidos/a e as organizações do Estado, do mercado e da sociedade civil. É nos espaços criados pela comunicação que estão as opções de acesso à informação e participação na esfera pública e midiática, por meio das quais operam narrativas de representação ou a reprodução de silenciamentos e desinformação.