Tarifa Zero: objeções e argumentos

Por jg.

No dia 15 de fevereiro de 2012, a Frente de Luta pelo Transporte Público de Florianópolis se encontrou para realizar uma Oficina sobre a Tarifa Zero. Essa atividade tinha por objetivo informar sobre o projeto e rediscuti-lo, buscando aproximar os novos militantes da discussão e construir conjuntamente uma argumentação embasada e forte, que possa incentivar a participação de todos na Campanha pela Tarifa Zero. Decidimos partir das principais objeções levantadas à proposta e relacionar os estudos e argumentações favoráveis a ela. Este material busca sistematizar a discussão e contribuir para seu avanço e disseminação.
Não existe almoço grátis
Essa talvez seja a primeira objeção, com suas variantes “ninguém trabalha de graça” ou “alguém tem que pagar a conta”. Porém, ela parte do desconhecimento da proposta da Tarifa Zero, já que não se trata de abolir os custos do sistema, o que seria impossível – é necessário pagar os trabalhadores, renovar a frota de ônibus, pagar o combustível, pneus, etc. Os sistemas de educação e saúde públicas também possuem seus custos, mas eles são pagos indiretamente através dos impostos para garantir a toda população esses direitos sociais básicos. O transporte público é necessário para acessar esses direitos, mas a cobrança da tarifa impede seu usufruto. No Brasil, segundo o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA) em 2006, eram estimados 37 milhões de pessoas sem dinheiro para pegar o ônibus diariamente. O Projeto Tarifa Zero visa proporcionar a todos o direito ao transporte, que não seria pago pelo usuário, normalmente quem tem menos dinheiro, mas por impostos progressivos.
A carga tributária no Brasil já é muito alta
A cobrança de impostos no país equivale a cerca de 35% do PIB, a soma das riquezes produzidas em um ano. O valor está acima da maioria dos outros países, mas ainda é inferior a diversas nações, incluindo muitas das que possuem os melhores Índices de Desenvolvimento Humano. Independente disso, o que é importa é saber quem está pagando essa conta. Mais da metade da carga tributária brasileira incide sobre bens e serviços e apenas 25% sobre a renda. Quando a tributação se dá sobre os serviços, ela tende a ganhar um caráter regressivo, isto é, onerar mais aqueles que têm menos, já que esses custos representam uma parcela maior do que possuem as pessoas das classes desfavorecidas. Impostos sobre renda e propriedades podem atender a ambições mais justas: quem tem mais paga mais, quem tem menos paga menos ou não paga. O serviço de transporte deve ser financiado pelos setores mais ricos da sociedade e também por quem mais se beneficiará com a livre locomoção das pessoas, seja para consumir ou trabalhar: shopping centers, comércios, empresas, indústrias, etc.
O preço da tarifa zero seria exorbitante
A catraca gira mais de 4 milhões de vezes por mês no sistema de transporte público de Florianópolis, garantindo a mobilidade de parte expressiva da população. Segundo as planilhas apresentadas pelas empresas em 2010, e aplicando a inflação do período, os custos anuais do sistema são pouco superiores a 150 milhões de reais por ano. Há boas razões para acreditar que esse valor é superfaturado, já que a planilha é utilizada para justificar os aumentos anuais e ela alega um prejuízo de mais de dois milhões às empresas todo mês.
Para bancar o serviço de transporte é necessário uma mudança nas prioridades dos gastos da Prefeitura, mas essa mudança valeria a pena. O incentivo ao transporte público diminuiria o uso dos carros, o número de acidentes, a poluição na cidade e parte dos gastos com recapamento de vias, construção de novas ruas e elevados – que surgem cada vez mais em Florianópolis, sem que isso melhore o trânsito, cada vez mais parado. Os trabalhadores perderiam menos tempo em engarrafamentos, chegariam mais dispostos ao trabalho e as mercadorias circulariam com mais facilidade pela cidade. Sem os custos mensais da tarifa e com a locomoção assegurada, cresceria o poder de compra das pessoas e se aqueceria a economia. Mas de onde viria o dinheiro, já que esses benefícios estariam espalhados e não queremos tirar o dinheiro economizado em outros setores fundamentais como a saúde?
Uma interessante fonte para financiar o transporte é o IPTU, por ser um imposto municipal sobre a propriedade, que pode ter sua cobrança ditada pelo valor, localização ou uso da propriedade. Segundo estudo publicado ano passado, um aumento de pouco mais de 70% na arrecadação do IPTU pagaria todos os custos alegados do transporte público. Esse aumento deve ser alcançado onerando mais fortemente as maiores propriedades, tributando os imóveis da especulação imobiliária, que não cumprem função social conforme prevê o Estatuto das Cidades (Lei Federal 10.257/2001), e os entes privados beneficiados pela livre locomoção das pessoas. Assim, os custos não recairiam sobre os usuários e o sistema funcionaria como um mecanismo de redistribuição de renda. Outras possibilidades para esse financiamento existem, como a cobrança de estacionamento, de espaços de publicidade nos ônibus e terminais, repasses estaduais e federais, uma taxa-transporte aos empregadores, multas de trânsito, etc.
A demanda cresceria muito e haveria abuso, depredação, etc.
O principal motivo a favor da tarifa zero é que ela vai permitir a mobilidade daqueles que hoje não podem pagar a tarifa ou gastam grande parte de sua renda com ela. Outro fator importante é que ela cria um estímulo ao transporte coletivo, fazendo com que aqueles que possuem carros e motos também usem o ônibus. Isso indica que a demanda realmente aumentaria, o que é bom para a cidade e seus habitantes. Porém, esse aumento é visto como problema por dois argumentos, um de que os custos do serviço aumentariam muito e outro de que o serviço não seria valorizado e haveria abuso e depredações.
Alguns dos custos atuais seriam mitigados pela nova organização do sistema. Segundo Lucio Gregori, ex-secretário de transporte de São Paulo e idealizador do projeto Tarifa Zero na década de 90, os gastos com o sistema de cobrança, incluindo catracas, cartões de ônibus, venda, logística, etc., eram 28% da tarifa – a parcela pode variar em Florianópolis, mas ainda é expressiva. O lucro dos empresários também compõe a tarifa hoje, característica obrigatória do sistema de transporte enquanto ele for tratado como uma mercadoria. Ainda assim, os custos tendem a subir no longo prazo, à medida que as pessoas forem buscando cada vez mais o transporte coletivo, e o serviço vai precisar de novas fontes de renda como as que listamos. No entanto, o aumento no uso dos ônibus levará à diminuição dos gastos na saúde, com obras de infraestrutura e aquecerá a economia, garantindo a viabilidade econômica da tarifa zero.
O suposto mau uso que se faria dos ônibus também tem pouco fundamento. O usufruto dos ônibus deve ser garantido a todos quando quiserem – a boa medida do uso é tanto quanto as pessoas precisarem. Em Cidade Tiradentes, bairro de baixa renda de São Paulo onde houve ônibus com tarifa zero durante vários anos, não houve problemas específicos de uso dos ônibus nem depredações. O que esses argumentos revelam muitas vezes é o preconceito de determinadas pessoas em aceitar que toda a população, inclusive os mais pobres, possam se locomover por toda a cidade.

Os cobradores perderiam o emprego
Devido ao interesse dos donos das empresas de ônibus em lucrar cada vez mais, o emprego dos cobradores já é constantemente ameaçado. Algumas cidades não possuem cobradores nos ônibus, mas essa economia ao sistema nunca é repassada à tarifa – em Joinville/SC, onde não há cobradores, a tarifa é R$ 2,75 (antecipada) e R$ 3,10 (embarcada). Sem a presença de outro trabalhador, o motorista fica sobrecarregado cobrando as passagens e o ônibus fica mais demorado. Mesmo em um sistema funcionando com tarifa zero, ainda será importante a posição de outro profissional dentro do ônibus, que possa dar informações, ajudar os usuários com malas, gestantes, idosos, etc., além de oferecer mais segurança. O incentivo ao transporte público também criará a necessidade de mais motoristas, fiscais e outros trabalhadores no sistema, para onde os cobradores poderiam ser alocados caso não houvesse mais o segundo trabalhador no ônibus.
Quem iria gerir o sistema?
Segundo o artigo 30, V, da Constituição, é competência dos municípios garantir transporte público para a população, e entregar a gestão do serviço para as mãos da iniciativa privada é tratar o transporte como mercadoria, e não como o direito que deveria ser. No sistema de transporte que queremos, é preciso haver o controle público sobre todas as questões que envolvem o funcionamento do transporte, como número de ônibus, linhas, horários, etc. A Prefeitura pode alugar os ônibus das empresas, o que é mais viável, ou possuir uma empresa pública, porém o essencial é enxergar o transporte público como um direito e que ele seja gerido visando o bem-estar dos usuários.
Para isso, também é necessário que haja espaços democráticos e abertos para a população participar, já que são os usuários que conhecem melhor suas demandas e necessidades. O Conselho Municipal de Transportes possui hoje maior influência das empresas e da prefeitura que da população, motivo pelo qual aceita os pedidos anuais de aumento na tarifa. É necessário abrir maior espaço para as reivindicações da população no CMT, seja através de entidades comunitárias, associações de usuários, sindicatos, etc.

Tudo isso é utópico
A tarifa zero já existe em muitas cidades do mundo, incluindo algumas no Brasil. Um dos casos mais famosos é da cidade de Hasselt, na Bélgica, com tarifa zero desde 1997. Nesta cidade, em dez anos o uso do transporte público aumentou mais de 1300%. Aqui no Brasil, a ideia surgiu em São Paulo no início da década de 90, mas só chegou a ser implantada em um bairro-piloto, Cidade Tiradentes. Outras dezenas de cidades pelo Brasil e pelo mundo que possuem os ônibus gratuitos estão listadas na seção “Boas experiências” do site tarifazero.org e na página sobre a tarifa zero na wikipédia em inglês. Isso demonstra que não existem grandes dificuldades de ordem técnica e que a mudança no sistema de transporte é sobretudo uma questão política.
A cidade de Florianópolis já possui um histórico de mobilizações pela questão do transporte, como as duas Revoltas da Catraca em 2004 e 2005, que levaram milhares de pessoas às ruas e barraram aumentos na tarifa. Há mais de dez anos a população já se organiza para resistir aos aumentos anuais e transformar o sistema de transportes da cidade. Esse ano, organiza-se na cidade a criação de uma Campanha pela Tarifa Zero, assim como já está sendo feito em São Paulo e Joinville. Com a iniciativa de um projeto de lei popular, que precisa da assinatura de 5% dos eleitores de Florianópolis, podemos levar a proposta à votação. Porém, mais do que assinaturas, precisaremos mobilizar diversos setores da população a participar da Campanha, para que possamos tomar as ruas e pressionar a classe política a nosso favor. Sabemos que os empresários do transporte garantem seus interesses com dinheiro e influência nos políticos da cidade. O que vai garantir o nosso interesse é nossa organização e participação, reivindicando um transporte público de qualidade e com tarifa zero! Vamos à luta!

Visite:
http://lataofloripa.libertar.org
http://mplfloripa.wordpress.com
http://tarifazero.org

Desenho: Laura

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