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Deus vai ao teatro em Madrid

Imagem: Reprodução.

Acontecimentos extraordinários nascem de dias sem graça, podem reparar. Não existe previsão ou aviso, é sempre no susto. Pois bem, essa também era uma tarde comum, uma típica tarde de domingo que passou em branco, exceto no Paseo de La Chopera, em Madrid, endereço do Centro Artístico Matadero. Ali, no Legazpi, junto do rio Manzanares, um rosário ecoava no ar e se estraçalhava contra corpos nus. A cena, tão poética quanto incomum, era um protesto “espontâneo” de um grupo de religiosos contra uma peça de teatro, obra do Coletivo Vértebro, que desde a sexta-feira anterior ao ato provocou a ira dos ultra-católicos e gerou debates a respeito da liberdade artística.

Dios tiene vagina. O trabalho, segundo o coletivo, explora tradições da sociedade através do amor e do pensamento crítico. A peça estreou em 2017 no Festival de Terra Noves e passou tranquilamente por cidades como Barcelona, Valência, Reims e Cidade do México, até chegar em Madrid e causar alvoroço antes mesmo de ser apresentada ao público. Segundo a Associação dos Advogados Cristãos da cidade, na sexta-feira, data da primeira apresentação do espetáculo, diversas pessoas telefonaram por sentirem-se ofendidas pelos vídeos promocionais da peça que, segundo a associação, “ofende sentimentos religiosos” pelo tratamento dado à Semana Santa na obra.

Uma campanha imediata coletou assinaturas, mais de 60 mil segundo os organizadores, exigindo a suspensão da apresentação. A ação foi prontamente corroborada pelo grupo ultra-católico Hazte Oir, que além do apoio programou protestos e um boicote à apresentação, que mesmo diante de tamanho barulho foi mantida pelo Departamento de Cultura da Câmara Municipal de Madrid, em defesa da “liberdade de criação artística”.

Crenças à parte, o fato é que o caso espanhol é mais uma entre tantas demonstrações de ataque à cultura promovida por diversos grupos extremistas mundo afora. Muito já foi escrito por aqui em defesa da arte, de natureza livre e contestadora, de modo que o fazer novamente soaria como uma ladainha perene, apesar da necessidade de resistência. O que assombra, e o que mais se faz necessário comentar, é a régua absurda que vive no bolso e no entendimento estreito e desonesto dessa gente que sempre diz não.

Em tempos de bombardeios obscenos, de assassinatos em massa promovidos por Estados, ocorram eles nas periferias brasileiras ou nos confins do Oriente Médio, é absurdo que o corpo humano cause mais choque desnudo do que crivado de balas.

É evidente, antes que seja acusado de algo, que tolerância e respeito são sempre vias de mão dupla, no entanto, é possível enxergar um padrão de opressão claro. Proibi-se em nome de um respeito dado sempre aos mesmos, e só a eles, que a arte toque em temas tabus. É como se certas instituições fossem preservadas feito fóssil e corressem o risco de virar poeira a primeiro toque, ou à primeira crítica.

Condenam-se socialmente artistas a esmo, sem dar-lhes ao menos o direito de defesa ou explicação, buscam-se, ao que parece, culpados para jogar no ardor de uma fogueira pública a fim de acalmar os ânimos e os espíritos maltratados pela culpa, acorrentados pela impossibilidade e comercializados pelas grandes corporações. Em tempos de bombardeios obscenos, de assassinatos em massa promovidos por Estados, ocorram eles nas periferias brasileiras ou nos confins do Oriente Médio, é absurdo que o corpo humano cause mais choque desnudo do que crivado de balas.

Deus, força misteriosa e onipresente, apesar de estar em todos os lados ao mesmo tempo, resolveu, num destempero, tirar um tempo para ir ao teatro. Ao som contínuo de um rosário declamado com a força da intolerância, entre corpos nus e gritos de liberdade, numa das grandes metrópoles do mundo, a peripécia divina serviu apenas para nos mostrar que sua maior criação, o bicho homem, ainda vai penar muito para alcançar o reino dos céus; reino esse que poderia estar logo ali em frente, se não teimássemos em sempre tomar o atalho do horror, do medo e da violência para chegar até o colo Deus.

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