A rotina solitária de uma haitiana em busca de emprego no Brasil

    Texto e fotos por Fernanda Seavon.

    “Eu sonho com ela e, quando acordo, lembro por que estou aqui”, diz Marceline Lexy ao se referir à filha de quatro anos. Às vezes as recordações são doces, às vezes dolorosas. Sol na laje com o namorado. O andar oscilante de sua mãe. Um buraco no teto que nunca foi consertado.

    Digo que existe uma palavra que ela deveria aprender: saudade. A haitiana de 28 anos anota num pequeno caderno que carrega sempre consigo: “saodadi”. Quase. Ofereço-me para escrever corretamente. Ela recusa; pede para que eu soletre. É teimosa, característica da qual se orgulha. “Você sabia que o Haiti foi o primeiro país latino-americano a se tornar independente?”, pergunta com a astúcia de quem esconde um tesouro.

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    Aulas de história à parte, conversamos sobre coxinha, Neymar e Michel Teló. Porém, assuntos mais urgentes gritam nas entrelinhas. Burocracia, desinformação e barreiras linguísticas são os grandes obstáculos para quem imigra.

    Com a extinção de ministérios e a retirada do Brasil da lista comprometida com o Pacto Global para a Migração proposto pela Organização das Nações Unidas (ONU), efeitos colaterais já se manifestam. E atacam, principalmente, os que estão mais vulneráveis.

    Marceline tentou, por vários dias, emitir o protocolo referente à Carteira de Trabalho para Estrangeiros. Não conseguiu devido a uma falha no sistema online do Ministério do Trabalho (MTE). Contudo, isso não a desmotivou. Encaminhou-se à Delegacia Regional do Trabalho (DRT), localizada no centro de São Paulo, e explicou sua situação.

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    Foi recebida com descaso e, assim que os ânimos começaram a se exaltar, se dirigiu à porta de saída. “Depois tentaremos de novo; agora, vem escutar essa música comigo”, pediu tranquilamente.

    “Quel est cet amour”, algo como “O que é este amor”, da artista gospel Deborah Henristal, ressoou no volume máximo. Harmonias religiosas traçaram o trajeto de volta à casa.

    Marceline está alojada em um centro especializado no acolhimento de imigrantes. Este é o seu terceiro endereço em apenas três meses – e o quinto em solo brasileiro. “Cheguei no começo de 2016, fiquei um ano e pouquinho em Curitiba e precisei voltar porque minha filha ficou muito doente”, conta. Amigos fizeram uma “vaquinha” para que ela pudesse regressar ao Haiti e auxiliaram com algumas despesas médicas.

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    Com a filha fora de perigo, Marceline tentou encontrar trabalho. Fez “bicos” como cabeleireira e manicure, mas disse que a economia de seu país está completamente devastada e poucas pessoas investem em procedimentos estéticos. Por isso, sem perspectivas, decidiu apostar novamente no Brasil.

    “Eu quero trabalhar e aprender português para trazer a minha filha e a minha mãe”, relata com determinação. Quando questionada a respeito de qual atividade pretende exercer, diz que está aberta a qualquer oportunidade. Além disso, tem urgência. Suas economias foram praticamente liquidadas na compra da passagem de avião.

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    Esse foi o momento em que ela percebeu que precisava ser “tudo ou nada”. A haitiana supôs que seria desafiador encontrar um ofício imediatamente, mas preocupa-se com a demora e com a burocracia a ser enfrentada para ingressar no mercado formal – no qual seus compatriotas lideram o ranking de imigrantes com maior inserção.

    Enquanto isso, se vira como pode. A saga por trabalho começou com uma estratégia simples: o bom e velho porta a porta. A haitiana entrou na internet, mapeou diversos salões de beleza espalhados pelo bairro onde morava e foi, com certificados de cursos em mãos, apresentar-se.

    Recebeu vários nãos. Tentou conquistar as pessoas pela simpatia e com piadas feitas, muitas vezes, por meio de uma voz robótica (ela usa um aplicativo que faz tradução simultânea). Conseguiu deixar seus dados em alguns lugares.

    Ninguém retornou.

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    Além de investir em salões, procurou agências de emprego. Imprimiu e distribuiu mais de 20 currículos. Preencheu fichas cadastrais imensas. Ficou incontáveis horas entre filas e deslocamentos.

    Novamente, até agora, nada.

    Resolveu, então, tentar grupos em redes sociais destinados a contratações. Marceline escreveu um anúncio, optou por oferecer faxinas e, 202 likes depois, uma pessoa entrou em contato. Procurava uma diarista que pudesse se ocupar da casa e de sua filha pequena aos fins de semana.

    No dia da entrevista, Marceline chegou uma hora antes para treinar seu português. “Mal dormi à noite, fiquei escutando músicas brasileiras, mas acho que estou tão nervosa que nem fixei nada”, confessou. Apesar disso, tudo correu bem.

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    Após o serviço, comentou que se alegrou ao cuidar de uma menina cuja idade se aproxima à de sua filha e que espera ser chamada novamente. Porém, para não ficar à mercê deste cargo, continua a explorar suas opções.

    Olho para ela.

    Não posso oferecer-lhe garantias. Meu país, tampouco. Mergulhamos num silêncio inquisidor. Até que finalmente: “Relaxa, é como a gente estava conversando, toda escolha implica uma perda e eu escolhi levar essa aventura brasileira até o fim”.

    Talvez aí, nesta garra, constrói-se um país. Melhor, um lar.

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