Por Carmen Susana Tornquist, Casa da América Latina – SC.
Quem assistiu “Diários de Motocicleta” deve lembrar da cena em que Ernesto Guevara e Alberto Granado chegam em Lima e buscam hospedagem na casa de um médico, através de contatos argentinos. O anfitrião acolhe os rapazes e lhes dá de presente um livro, recomendando fortemente sua leitura. O livro era “Sete ensaios de interpretação sobre a realidade peruana”, o anfitrião, Hugo Pesce, companheiro de Mariátegui que defendeu as teses enviadas pelo já combalido “Amauta” à I Conferência Comunista de 1929, em Buenos Aires. Enquanto Alberto dedicou-se a conhecer os arredores do Rio Rímac, o jovem Che dedicou suas noites limeñas devorando a obra de Mariátegui, leitura que teve evidentes efeitos em sua trajetória revolucionária, Não por acaso, o advento da revolução cubana trouxe consigo uma onda de releituras desta obra, expressando a retomada do que Michael Löwy chama de marxismo romântico, e outros autores, de vitalista, heterodoxo, ou da práxis.
Os “Sete ensaios” foram publicados, pela primeira vez como livro, na primavera de 1928, pela Editorial Minerva, responsável também pela revista Amauta e por Labor – jornal destinado à classe operária peruana e aos filiados a CGTP, a central dos trabalhadores criada em 1929. Estes periódicos estiveram fortemente associados ao trabalho do periodista peruano, não por acaso alcunhado de “Amauta”, algo como “mestre” ou líder, em quéchua. As publicações expressavam não apenas uma ampla rede de debates, alimentados por Mariátegui via contatos em sua maioria epistolares com militantes, artistas e intelectuais de todo o mundo, como também a intensa e “agônica” interlocução ao vivo, estabelecida pelo Amauta, em sua própria casa, com lideranças operárias, indígenas, campesinas, estudantis e socialistas, apesar das fortes limitações de saúde que lhe acometiam desde 1925.
A publicação dos “Sete Ensaios “ como livro foi posterior a sua edição em partes, editados pela própria revista Amauta alguns meses antes, e por revistas como La vida Literaria, na Argentina, Era comum no periodismo ainda nesta época a publicação do que posteriormente conhecemos como livros, terem sido editado originalmente em partes, como foi o caso de O Capital, Inicialmente o livro não teve impacto nos meios literários, ao contrário dos meios socialistas nos quais ficou rapidamente conhecido – inclusive pelo esforço de seu autor na sua divulgação.
Muitos autores aproximam Mariátegui de Gramsci, não apenas do ponto de vista teórico, mas prático: ambos teriam sido “organizadores da cultura – socialista – dada a importância que ambos os militantes deram a socialização da cultura, além do bom uso do método marxista para análise de suas realidades sociais situadas “fora” do centro do capitalismo. Mariátegui teria, ainda, rompido tanto com eurocentrismo, que atravessa o pensamento latino americano, quanto com as tentativas de ultrapassá-lo a partir de um isolamento irreal do sistema mundo(o excepcionalismo). Sete Ensaios é, também, a primeira análise marxista sobre a realidade latino-americana. Apesar de solidamente ancorado na realidade americana, seus primeiros leitores perceberam o alcance do trabalho, para além da região andina. Mesmo assim, ainda hoje, o Brasil conhece pouco Mariátegui, Desconhecimento certamente relacionado com o histórico “dar de costas” do país à América de fala hispânica, mas que parece estar cedendo a uma nova mirada nova, seja sob o signo dos estudos de coloniais, seja no campo do marxismo, renovado pelas lutas do tempo presente. Aliás, foi a Expressão Popular que se responsabilizou pela segunda edição da obra em português, depois de que foi encabeçada por Florestan Fernandes, ainda em 1975. O papel de Florestan no processo de divulgação de Mariátegui em português não é casual: o pensamento dos dois revolucionários tem vários pontos em comum, desde a análise dos limites das chamadas burguesias nacionais até a importância das dimensões étnicas na sociedade de classes, passando pela crítica dos regimes ditos republicanos que não lograram desfazer-se da herança colonial. Como coloca Deni Alfaro Rubo, Florestan considerava Mariátegui “ nosso irmão mais velho”, ou seja, uma inspiração fundamental par que sua forma de pensar a realidade fosse uma espécie de “bússola” que orientasse a ação política, que, para ambos, nos países dependentes, seria, a um só tempo, nacionalista e socialista.
Estes foram alguns dos argumentos apresentados na I Conferencia Comunista da América latina, em 1929, pela delegação peruana e renderam algumas décadas de ostracismo propositado, a partir das teses “El problema de las razas” e “Punto de vista anti-imperialista”. As teses eram proposições diretamente políticas, visando a consolidação do socialismo em solo americano, mas resultavam do esforço analítico-interpretativo levado a cabo em “Sete Ensaios”, Nesta movida, a questão indígena terá um papel preponderante, resultando na proposta de “socialismo indo-americano”, uma utopia comunista calcada na tradição e na resistência indígena.
Ao longo de 2018, foram realizados alguns eventos sobre os 90 anos desta “obra magna” em Cuba, no Chile, e no Peru. Em Santa Catarina, o NeHal, ligado ao IELA (Instituto de Estudos Latino Americanos), dedicou um ciclo de estudos para estudar os Sete Ensaios, além de uma mesa redonda sobre o tema. Foram iniciativas importantes – todavia, pequenas, diante da impressionante atualidade das reflexões deste autor. O livro, hoje, foi traduzido para mais de onze idiomas, em cerca de vinte países, em mais de dois milhões de exemplares.[1]
Agora bem, como sabemos , a melhor forma de comemorar o nascimento de ideias revolucionarias, é vivifica-las na luta. Miguel Mazzeo,en Rebelión, diz: “ Los Siete Ensayos expressa una utopia socialista en su dimensión raizal, existen síntomas de que se abre en Nuestra América,un tiempo de reiteración de esa utopia,pero también percibimos señales de que esta reiteración assume inéditos perfiles de autoctonia, de creación heroica, y no de calco ni copia”. Neste momento de reorganização da classe trabalhadora – e de ascensão da luta de classes, nelas contidas as lutas indígenas – retomar este clássico é uma das nossas “tarefas americanas”,
Referencias
BEIGEL,Fernanda. El itinerário y la brújula. Buenos Aires: Editorial Biblios, 2003.
LÖWY, Michael. O marxismo na América latina. São Paulo, Fundação Perseu Abramo, 2001.
_____e SAYRE, Robert. Romantismo e Política.Rio de Janeiro: Paz eTerra,1993.
MARIÁTEGUI, José Carlos. Sete ensaios de interpretação da realidade peruana. São Paulo, Expressão Popular, 2009.
MAZZEO, Miguel. A 90 Años de Los Siete Ensayos de interpretación de la realidad peruana. Rebelión, 18. 10.2018.
RUBO, Deni Alfaro. Nosso irmão mais velho: Florestan, leitor de Mariátegui. Lua Nova, n 99, 2016.
QUIJANO, Aníbal. Prólogo. Siete Ensayos de interpretación de la realidad peruana. Caracas, Biblioteca Ayacucho, 2007.
[1] Para os que não leram, ainda, os Sete ensaios, recomenda-se a edição em português do MST e, em espanhol, a da Biblioteca Ayacucho, com uma belíssima introdução de Aníbal Quijano, um de seus “irmãos mais novos”.
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