Por Luciano Martins Costa.
A entrevista da secretária de Justiça do estado de São Paulo, Eloísa de Souza Arruda, publicada pelo Estado de S.Paulo na segunda-feira (6/2), diz bastante a respeito de um determinado olhar sobre as questões sociais do país que vale a pena trazer para o debate. Trata-se do conceito “técnico” sobre carências sociais, composto por uma receita que mistura a interpretação estrita da lei e certo pragmatismo sem compaixão no que se refere à partilha das responsabilidades pelo interesse coletivo.
Importante analisar cada frase da bela e articulada representante do governo paulista porque essa é a tendência que predomina na imprensa brasileira contemporânea.
Talvez pelo fato de o Brasil ter escalado muito rapidamente o ranking das grandes economias do mundo, talvez porque os cargos decisórios, tanto na imprensa quanto nas instituições públicas, venham sendo ocupados por uma nova espécie de burocrata – o executivo cumpridor de metas – certamente estamos diante de um cenário em que veremos se multiplicarem episódios como o do Pinheirinho, em São José dos Campos (SP), da Cracolância, na capital paulista, ou das ações recentes do governo do Distrito Federal, onde foram demolidas no último mês mais de 1.100 casas e barracos construídos irregularmente em terrenos públicos.
Vida digna
O déficit habitacional no Brasil foi reduzido de 8 milhões de unidades em 2006 para 5,5 milhões em 2011, mas ainda assim persistem os problemas de falta de acomodações para famílias que buscam escapar da miséria. E por contingência natural, essas famílias tendem a buscar abrigo nos lugares onde se tem notícias de empregos e qualidade de vida.
Por outro lado, o processo de desenvolvimento brasileiro, puxado pela expansão da renda nas camadas de renda baixa e média, estimula certo protagonismo na busca de um lugar ao sol que eventualmente desconhece algumas regras básicas da legalidade. Assim, se encontra oportunidades em determinada região, é por ali que o trabalhador vai procurar se instalar, mesmo que as condições disponíveis para moradia sejam precárias, no sentido físico e no sentido legal.
Linearmente, objetiva e pragmaticamente, a secretária da Justiça tem razão ao argumentar que as famílias desalojadas do Pinheirinho – e também nas ocupações ao redor de Brasília, diga-se de passagem – sabiam que se encontravam em situação irregular. Sabiam que estavam em propriedade alheia e nunca pagaram impostos pelo imóvel. Também está carregada de razão quando afirma que, algumas vezes, a ilegalidade termina sendo premiada.
Mas há aí uma controvérsia que começa na própria definição de Justiça: na Constituição brasileira de 1988, está claro que a ordem econômica e as ações do Estado devem atender aos predicados da Justiça Social. Mesmo no artigo 170, que define a ordem econômica, está dito explicitamente que a economia não tem por finalidade o crescimento econômico do país, mas a garantia de “vida digna” para todos.
Longe daqui
Na assertividade de suas declarações, a secretária da Justiça de São Paulo observa que, no caso do Pinheirinho, é preciso levar em conta também que “por trás da massa falida (de Naji Nahas) tem funcionários de empresas que esperam há anos seus débitos trabalhistas”.
Ela tem razão. Poderia acrescentar que também as famílias de ex-funcionários da Gazeta Mercantil esperam há muito mais tempo por seu quinhão de direito, sem que o Judiciário se incomode com isso ou a Polícia Militar seja chamada a ocupar uma fazenda do devedor. Alguns, como a artista plástica Conceição Cahu, já morreram sem ver a cor do dinheiro. Ou seja, o olhar tecnicista sobre a lei tem lá suas sutilezas.
Para que não se construam preconceitos sobre a entrevistada, convém destacar, como faz o Estadão, que não se trata de uma burguesa alienada. A secretária da Justiça faz questão de ressaltar que vem de família humilde, que sua avó deixou o Ceará para tentar a sorte em fazendas de café no interior paulista.
Ela não tem experiência político-partidária e não manifesta pretensões que passam pelas urnas. Parece orgulhosa de fazer parte da “cota técnica” da administração estadual. A página inteira que lhe concede o Estadão é quase um aval para suas palavras. Mas ela também se queixa da imprensa, que, na sua opinião, só teve lentes para a ação da polícia na Cracolândia, mas não viu o trabalho de médicos e assistentes sociais.
O título da entrevista é, entre aspas: “Não dá para pedir ‘por gentileza’”. E neste ponto é que se pode bem discutir como esse olhar “técnico e pragmático” sobre questões sociais tem enorme vocação para aumentar os problemas que imagina resolver.
Realmente, existem poucas táticas para tratar com multidões contrariadas e raras são as possibilidades de aplicar alguma gentileza nesses confrontos. Mas há uma distância muito grande entre negociar e irromper, entre desalojar e destruir, entre recompor a legalidade e cometer violências inaceitáveis, como a destruição de móveis eletrodomésticos, fotografias, documentos, brinquedos e lembranças.
Pode-se discutir o despreparo das forças policiais para tratar com questões de desobediência civil coletiva, seja no Pinheirinho, na Cracolândia ou na Universidade de São Paulo. Mas o ponto central é o que foi mencionado pela secretária da Justiça. Por conta dessa mesma visão, um grupo de militantes aloprados quase protagonizou uma batalha durante inaugurações feitas pelo governador Geraldo Alckmin na Zona Leste de São Paulo, no sábado (4/2). O próprio governador, ciente do prejuízo político que tais bravatas poderiam lhe causar se fossem efetivadas, tratou de desautorizar os insanos que convocava as hordas à batalha.
A questão social é delicada demais para ser tratada pela polícia e por tecnocratas, ainda que tecnocratas do Direito. O Brasil ainda tem uma grande dívida social a pagar. O crescimento do mercado interno, alimentado por nordestinos, nortistas e moradores das periferias das grandes cidades do Sudeste, não nos transforma em uma Suécia. É lá que parece viver, simbolicamente, a secretária Eloísa.
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