Por Luciane Recieri, para Desacato.info.
Tenho tido poucos momentos de ternura, salvo quando um ou outro passarinho pousa no alambrado miúdo da janela que me confunde as vistas astigmáticas-hipermertróficas, nem sei se isso cabe na minha ternura rala ou dentro do grosso dicionário mudo-surdo-e-virgem que cochila na estante empoeirada da sala dos professores. Digo “sala dos professores” como se não fizesse parte disso, infelizmente faço, porque salvo um ou outro, não tenho muito a falar com os mestres que discutem o buraco negro de suas próprias barrigas e têm olhares que nunca se cruzam, o que me faz evitar o trânsito por ali, evito para não pegar mais asco da classe ou para não perder o fio de esperança que me mantém. É. A ternura parece não fazer pouso em mim desde 16, desde lá me pego a fazer inimizades pelos tons jocosos que tratam os rumos do país, como se fosse brincadeira e pudéssemos dar a volta na próxima rotunda e reiniciarmos donde deu errado. Sei que não deveria, mas sou uma sujeita mole de coração e que, como boa brasileira, ajo com paixão, cousa criticada por um amigo hondurenho – “você tem que agir com a razão” -, qual o quê! A ternura, esse enjoo nas vistas, esse turbilhão de sentimentos me põe a perder e ando catando cavacos do que vai restando. Voltando ao corpo docente, a maioria não passa dos 40 anos e acredita que hastear a bandeira na quarta-feira faria diferença na vida da moçada, faria dos “morenos” menos bandidos e “que bons tempos eram os da Educação Moral e Cívica!”, o que me faz lembrar de Quintana em Cocktail Party, poema que fico rezando no lugar do terço que abandonei depois de perdida a fé. Não se trata mais disso, os tempos são outros, caros professores, a questão agora parece fugir da tal escola com ou sem partido, da doutrinação pela direita que sempre deu tão certo e sem esforço (vide a imbecilidade dessa geração de professores que conheci e daquela que me educou também), o que me faz crer que na escola só sobrevivem os fortes e só saem ilesos aqueles que estudam fora do sistema educacional, penso eu, uma vez que o aparelho ideológico foi pensado pelo poder dominante para atender exclusivamente às suas demandas, como concluiu Gramsci, Florestan Fernandes, Paulo Freire e outros grandes. A preocupação com o tipo de educação agora parece ser secundária nas lutas que virão pela educação, o que está em jogo são nossos empregos, esses mesmos empregos que, há uns meses se discutia de modo zombeteiro no café dos docentes, afinal, o que poderia abater um professor efetivo? E nenhuma preocupação acerca de seu candidato a presidente ou a governador, “o meu está lá na conta no quinto dia útil.”
A preocupação maior agora é o acesso à escola pública por esses meninos, filhos da classe trabalhadora, essas gerações que não terão outra via de aprendizagem sistemática, formal, senão a escola. As privatizações e o desemprego batem à porta e tanto faz, logo, se um ministro é ou não a favor da lei que põe mordaça, cabresto ou nos coloca nas mãos ou câmeras dos alunos doutrinados, pelo modo sinistro que a educação vem sendo modelada é de menos. O que parece que não sabiam é que iria sobrar chumbo pra todos, pois independente do nome, o que prevalece são as prioridades do mercado. A escola pública como a conhecemos, poderá desaparecer em pouco tempo, pois a questão vai muito além de calar os professores em sala de aula, isso parece metáfora para algo muito maior que parece se levantar no lodo. Não seria o momento de articular ao menos uma greve nacional da educação em todos os níveis e setores? Desabaremos, a escola enquanto estrutura física e enquanto humanidade.
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Luciane Recieri é cientista social e escritora, em Jacareí /SP