Por Matias Aires.
Dias Toffoli, presidente do Supremo Tribunal Federal, teve trabalho em convencer o imaginário popular de que o judiciário não teve papel político nas crises dos últimos anos. Em sua carta aberta “por um pacto republicano”, publicada no ElPaís, narra alguns dos acontecimentos políticos nacionais como se tivessem surgido por geração espontânea, diante de cuja consumação nada havia a fazer senão remediar os danos institucionalmente.
Em verdade, o presidente do STF verbalizou a essência do autoritarismo político do judiciário: em sua carta, estabelece quais prioridades políticas devem ser seguidas por Bolsonaro – ultradireitista beneficiado pela manipulação de cada centímetro das eleições, cortesia do Palácio da Justiça – a fim de levar às últimas consequências os efeitos do golpe institucional.
“Temos passado por episódios turbulentos nos últimos anos. Investigações envolvendo a classe política. Impeachment de uma presidente da República, […] condenação e prisão de um ex-presidente da República“. Os “episódios turbulentos” foram encabeçados pelo próprio judiciário de Dias Toffoli. Desde o impeachment de Dilma, passando pela prisão de Lula, o veto arbitrário à sua candidatura (quando liderava as enquetes eleitorais com mais de 40% das intenções de voto), a manipulação de cada centímetro das eleições, com a proibição de entrevistas a Lula (um direito que não é negado nem a criminosos de lesa-humanidade), o cancelamento de 1,5 milhão de votos no Nordeste pela biometria, as diatribes de Sérgio Moro vazando a delação do Palocci na semana do primeiro turno, etc., sempre com o apoio da alta cúpula das Forças Armadas. E isso, apesar de o PT ter fortalecido os instrumentos de repressão judiciária em 13 anos de governo.
Isso tem uma razão de ser. O Judiciário brasileiro, de Sérgio Moro ao STF, atendem aos interesses abertos do imperialismo estrangeiro, em particular dos EUA (quem não se recorda do ilustre treinamento de Moro pelo Departamento de Estado norte-americano?) Com os efeitos persistentes da Grande Recessão de 2008 e a chegada da agressividade nacionalista de Donald Trump à Casa Branca, o capital financeiro internacional tenta a todo custo impor uma subordinação ainda maior às economias dependentes, como na América Latina. Os mecanismos “judiciários” nos países de desenvolvimento capitalistas atrasado, com traços de dependência, são muito úteis a este expediente de intervenção estrangeira na política nacional.
Lançando mão de sua influência sobre o poder judiciário para, por trás de um suposto “combate à corrupção”, as grandes potências buscam aumentar a exploração e destruir os direitos dos trabalhadores e do povo pobre e ganhar com a privatização de estatais e recursos naturais. A Operação Lava Jato, a pressão por privatizar enormes empresas como a Petrobras, o autoritarismo judiciário e a politização das Forças Armadas são expressões dos interesses imperialistas no país.
A maior expressão disso é a batalha que Toffoli encabeça pela aprovação da reforma da previdência, a principal medida econômica exigida pelas Bolsas de Valores, pelo capital financeiro e suas instituições midiáticas, e pelas embaixadas dos EUA e da Europa. Isso passa por esquecer que os bancos e empresas privadas devem à Previdência mais de R$450 bilhões: o perdão da toga aos empresários é apenas mais uma indicação de sua função de defesa irrestrita da exploração capitalista (que paga bem, haja visto o aumento sideral dos salários dos ministros como Toffoli, para quase R$40 mil afora os benefícios).
Não apenas Bolsonaro, como agente no Executivo, mas o próprio autoritarismo judiciário “é a expressão da dependência mais servil ao imperialismo estrangeiro”, para usar a formulação do revolucionário Leon Trotsky
Tendo feito o trabalho sujo, a política deveria “voltar a liderar o desenvolvimento do país”. Confissão sutil do papel político do judiciário, e da politização das Forças Armadas, em prol do golpismo. Em seguida, segundo Toffoli, o “papel do Poder Judiciário será o garantidor da segurança jurídica e da harmonia social […] O Supremo Tribunal Federal exercerá o papel de moderador dos conflitos nacionais e garantidor de direitos“.
Há uma manha nesse discurso. O STF sabe que está ganhando uma vantagem adicional ao seu autoritarismo: usufruir das ilusões institucionais que surgem no amplo setor social que se opôs à eleição de Bolsonaro. Com Bolsonaro no Planalto, o discurso de um “poder judiciário a postos para frear excessos do Executivo” dá legitimidade ao bonapartismo da toga, que vai tentar canalizar o apoio de todos os que se opõem a Bolsonaro para dentro da institucionalidade golpista, na figura do STF.
Há algumas semanas dizíamos que o movimento tático de “contenção” acabava de se iniciar. Contendo e disciplinando Bolsonaro em temas secundários, o STF fica com as mãos livres para disciplinar a população e os trabalhadores a aceitar os ajustes.
Do ponto de vista da “grande política” nos termos de Gramsci, o artifício do Judiciário é reduzir a quase totalidade do debate nacional ao tema da “corrupção”, com o objetivo estratégico de “tirar os holofotes” do debate sobre os enormes ataques sociais e econômicos que recairão sobre a classe trabalhadora e o povo pobre, especialmente na agenda escravista de Bolsonaro.
O papel moderador que o judiciário se atribui tem um duplo gume, 1) disciplinar Bolsonaro a atuar nos marcos da Constituição de 88 e aplicar os ajustes econômicos antioperários, como a reforma da previdência; e 2) conter as explosões da luta de classes que possam surgir em resposta aos ataques de Bolsonaro e do Congresso. O “pacto republicano” inclui como ponto fundamental o combate à organização dos trabalhadores, às greves e manifestações contra os ajustes.
Parafraseando Marx, é preciso “educar estes educadores” judiciários, e impedir que atuem com seu autoritarismo bonapartista. Em primeiro lugar, articular pela base um forte combate contra a reforma da previdência, ligada à exigência do não pagamento da fraudulenta dívida pública (que chegou a quase 80% do PIB em 2018) e que empresários e banqueiros paguem o calote de R$450 bilhões à Previdência.
Contra essa democracia manipulada por juízes politicamente interessados, é preciso defender que os juízes sejam eleitos pelo povo, revogáveis a qualquer momento e recebam o mesmo salário de uma professora, abolindo suas verbas auxiliares (como o grotesco auxílio-moradia). Para acabar com a farra de empresários e políticos corruptos, que atinge todos os partidos dominantes, todos os julgamentos por corrupção devem ser realizados por júris populares, abolindo os tribunais superiores.