Por Elaine Tavares.
O Brasil já foi saudado como uma “democracia racial”, conceito que coloca um véu sobre as relações étnicas no país e que foi fortalecido por um clássico da sociologia brasileira, o “Casa Grande e Senzala”, de Gilberto Freyre. O famoso autor criou o mito do “bom senhor” ao caracterizar a escravidão brasileira como sendo composta por senhores maleáveis e escravos conformados. Aquele que é negro sabe muito bem o quanto essa ideia é falsa e ideológica.
A escravidão no Brasil foi selvagem e violenta, como qualquer outra escravidão. E os “senhores” eram canalhas como qualquer senhor. Tiveram a cara de pau de, ao verem se esgotar o tempo da escravidão, lançarem mão da chamada “Leis de Terras”, em 1850, impedindo assim que os negros libertos pudessem garantir um espaço para viver.
Nesse mesmo ano havia sido aprovada uma lei que obrigava ao fim do tráfico de gente e os “bons” senhores trataram de se adiantar , assegurando assim a propriedade. A lei de terras definia que só poderia ter terra quem pagasse por elas. Não se legalizaria posse. E os negros que já começavam a ser libertos saiam das casas-grandes com uma mão na frente e outra atrás. Como poderiam comprar terras? Quando finalmente veio a abolição, em 1888, milhões deles foram jogados nas ruas, para que “se virassem” com sua liberdade.Desde aí o destino dos negros tem sido as periferias e os morros.
A escravidão é uma chaga aberta ainda no Brasil, e o sequestro de milhões de pessoas nunca foi reparado. Passados séculos o povo negro segue marcado por uma realidade que não buscou. Foi o capitalismo dependente que, precisando de braços para dar força ao processo de produção na América dependente, que inventou essa vilania. Mas os negros pagam por isso até hoje.
No Brasil o negro é visto como bandido. Seja onde for. Pode estar vestido de ouro, mas sempre será apontado como marginal, sujo, vagabundo. A cor é desculpa para as mais absurdas violências e para assegurar o sistemático terrorismo de estado contra esse povo. O Rio de Janeiro tem sido a janela mais visível desse drama, hoje inclusive vivendo uma ocupação militar, justamente para “conter” o povo negro das favelas.
As histórias envolvendo o assassinato metódico da juventude negra são intermináveis. Até crianças indo para a escola são abatidas a tiros, porque “poderiam” ter uma arma na bolsa. A mais recente, também no Rio de Janeiro, envolveu o jovem trabalhador Rodrigo Serrano, que foi morto pela PM por estar levando um guarda-chuva, que os policiais pensaram ser um fuzil. Do moço negro, que trabalhava como garçom em um restaurante no bairro de Ipanema, restou apenas a carteira de trabalho ensanguentada, que ele levava consigo, justamente porque o negro tem de provar em cada esquina que é trabalhador.
O caso de Rodrigo não é uma exceção. É a regra. A cada minuto tomba um negro. E falar disso nos coloca na mira dos racistas que já começam a gritar: “leva pra casa”. Para essa gente todo negro é bandido. E todo o bandido negro só é bandido porque é negro. Não se quer saber as causas que levam um guri da favela, negro, ao crime. “É preto, e pronto”. Os brancos, quando são bandidos, aparecem nos jornais e na TV de maneira bem mais suave. E se são da classe alta então, nem seus nomes são escritos. São citados como “jovem estudante”, “motorista do Audi”, “condutor da Ferrari”. Saem ilesos, sequer são presos. Mas se um guri negro roubar um pão, aí é o demônio, o irrecuperável.
Na periferia das grandes cidades os negros morrem como moscas, e o seu sangue derramado incomoda pouca gente. A carteira ensanguentada de Rodrigo pode causar uma comoção momentânea, mas logo passa, superada por outra sensação.
A carne preta é a mais barata no mercado capitalista. É sim. E que não se fale em democracia racial, por favor.
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Elaine Tavares é Jornalista.