Por Tiago Miotto.
Beirando um século de vida, o ancião Tito Vilhalva planeja concluir a construção de uma ogapysy, tradicional casa de reza Guarani e Kaiowá, no tekoha – lugar onde se é – Guyraroka. “Vai ser grande, essa aqui. Essa é a casa de reza legítima, a original”, idealiza ele, que ainda recorda o tempo em que estas construções, que serviam como moradas coletivas e marcavam a disposição das aldeias de seu povo em meio às matas, eram muito comuns na região compreendida hoje pela Terra Indígena (TI) Guyraroka.
À diferença das casas de reza que se esparramavam pelo amplo território Guarani e Kaiowá no tempo “dos antigos”, contudo, a ogapysy arquitetada por seu Tito está sendo erguida numa pequena retomada, estabelecida sobre um porção ínfima da TI Guyraroka e cercada pelos repetitivos tons de verde das monoculturas de soja, milho e cana das fazendas que hoje se sobrepõem à terra tradicional.
Apesar dos planos que seu Tito e a comunidade do Guyraroka fazem para o futuro da terra indígena, sua demarcação, em estágio avançado, foi anulada em 2014 pela Segunda Turma do Supremo Tribunal Federal (STF), numa decisão amplamente contestada por juristas, antropólogos, indigenistas, pelo Ministério Público Federal (MPF) e pelo próprio movimento indígena.
Buscando reverter a anulação, a comunidade do tekoha Guyraroka ingressou com uma ação rescisória, endossada pela Procuradoria-Geral da República (PGR). A ação chegou a ser colocada em pauta no plenário virtual do STF, entre os dias 7 e 10 de setembro, quando o ministro Edson Fachin pediu vista do processo, que agora irá ao plenário físico, ainda sem data definida para julgamento. Essa era uma demanda dos indígenas, pois o plenário virtual, plataforma digital em que os ministros apenas depositam seus votos, não permitiria a discussão da pauta.
“Como podem dizer que o Guyraroka não existe sem nem nos ouvirem? Pedimos que os ministros ouçam a gente, que ouçam a voz da comunidade”
30 anos depois da Constituição, ainda a tutela
Um dos principais questionamentos à decisão é o fato de que os indígenas não foram ouvidos no processo. A comunidade de Guyraroka não só não foi intimada, como teve, duas vezes, sua admissão negada com base no “regime tutelar do índio”, evocado pelo relator Gilmar Mendes com base na lei de criação da Fundação Nacional do Índio (Funai), de 1967. Esta lei, da época da Ditadura Militar, estabelece que uma das funções do órgão era atuar em nome dos indígenas na Justiça, dando seguimento à perspectiva da “tutela”.
Em nome da suposta proteção dos povos indígenas, o “regime tutelar do índio” considerava-os como “relativamente incapazes” – situação comparável a de adolescentes e pessoas com transtornos mentais, por exemplo.
A tutela foi, ao menos no papel, superada pela Constituição de 1988, que no artigo 232 reconheceu que “os índios, suas comunidades e organizações são partes legítimas para ingressar em juízo em defesa de seus direitos e interesses”. Apesar da formulação bastante específica, três décadas não bastaram para colocar o texto constitucional em prática.
“Trinta anos depois da promulgação da Constituição, esse debate do acesso dos povos indígenas à justiça, como sujeitos coletivos de direito, está posto. Embora a tutela tenha caído em 1988, o poder Judiciário ainda não assimilou as inovações da Constituição em relação aos povos indígenas e vem tratando eles como tutelados na maioria das ações”, avalia Adelar Cupsinski, integrante da assessoria jurídica do Conselho Indigenista Missionário (Cimi), que advoga pela comunidade de Guyraroka no processo.
O advogado explica que o direito de acesso à Justiça é assegurado por todo o arcabouço constitucional, porque se trata de um mecanismo para assegurar outros direitos: direito à terra, à moradia, à saúde, à educação. “Se você não tiver a possibilidade de ingressar em juízo para resguardar esses direitos, eles podem acabar não sendo efetivados”, exemplifica.
A manifestação da PGR no processo vai no mesmo sentido, ao defender que é “correta a alegação de nulidade” da decisão pelo fato de a comunidade não ter sido admitida como parte, o que ofende a Constituição.
A ação movida pela comunidade sustenta que a discussão sobre acesso à Justiça envolve também o conceito de dignidade humana, que vem sendo negada aos povos indígenas pelo poder Judiciário.
Na avaliação do coordenador da Sexta Câmara do Ministério Público Federal (MPF), Antônio Carlos Bigonha, trata-se de uma postura que precisa ser abandonada.
“Precisamos encarar o indígena na sua integralidade humana como um cidadão brasileiro, mas como um ator que tem suas próprias demandas, para permitir ao índio essa maioridade no contexto democrático, no contexto jurídico. O índio tem que ser senhor dos seus interesses, de suas terras, e prover da forma que for melhor para ele o seu interesse, o seu destino e o seu futuro”, avalia o procurador.
Para Cupsinski, o absurdo da situação legal dos povos indígenas no Brasil evoca a comparação com a situação da população negra que, até a abolição da escravatura, também foi privada do direito de ingressar em juízo.
“Há mais de um século, todos os setores da sociedade brasileira têm o direito de acessar a Justiça, menos um: os povos indígenas. A legislação só possibilitou aos indígenas acessar a justiça em 1988, um século depois de abolida a escravidão”.
Se no campo do Direito a questão suscita debates profundos, para os Guarani e Kaiowá do Guyraroka o problema é ainda mais evidente:
“Como podem dizer que o Guyraroka não existe sem nem nos ouvirem?”, questiona Erileide Domingues, neta de seu Tito e moradora do tekoha Guyraroka. “Não ouviram a liderança, nem o nhanderu [rezador], nem sequer mesmo a juventude. Então, pedimos que os ministros ouçam a gente, que ouçam a voz da comunidade Guyraroka”.
“Aqui nesse Guyraroka tudo era mato. Não tinha estrada, não tinha ponte, não tinha divisa, não tinha aramado, não tinha nada disso. Só macaco, anta, bichinho que anda no mato – e nós no meio. O índio não passava sofrendo” – Tito Vilhalva
Silenciosa resistência
De forma bastante conveniente para a demanda ruralista, Gilmar Mendes ignorou outras passagens do relatório, bastante elucidativas das estratégias utilizadas pelos indígenas para permanecer no Guyraroka, mesmo que sem poder usufruir da posse exclusiva de seu território.
“Estratégias individuais de aliança com fazendeiros, muitas vezes se oferecendo para executar trabalhos a preços abaixo do mercado, permitiram que algumas famílias se mantivessem na terra até meados da década de 1970”, relata uma dessas passagens.
Mendes também passou ao largo das seções do relatório que citam entrevistas com antigos moradores do Guyraroka, que reclamam das limitações da vida nas reservas e demonstram sua disposição de retornar ao seu tekoha.
“Enquanto a comunidade usurpada existir, os direitos às suas terras perduram”, sustenta o constitucionalista José Afonso da Silva. A afirmação foi feita em um parecer jurídicoproduzido por ele em 2015, no qual aponta a inconstitucionalidade do marco temporal e questiona as decisões da Segunda Turma do STF contra os povos indígenas.
A comunidade de Guyraroka não só continuou existindo como, a partir da década de 1990, buscou retornar para o seu tekoha. Foram alguns anos de acampamento à beira da estrada e duas tentativas frustradas de retorno até que, em 2004, os Guarani Kaiowá estabeleceram-se na retomada da fazenda Lagoa de Ouro – um pedacinho dos 11,4 mil hectares que, naquele mesmo ano, seriam identificados e reconhecidos como parte da TI Guyraroka pela Funai e, cinco anos mais tarde, declarados como terra tradicional pelo ministério da Justiça.
Para Vanessa Araújo, assessora jurídica do Cimi, o relatório de identificação da terra indígenas mostra que os indígenas nunca desistiram do retorno ao Guyraroka. “Mesmo diante da violência, algumas famílias permaneceram trabalhando para fazendeiros ou em acampamentos próximos, numa situação de extrema vulnerabilidade e na expectativa de retornar às suas terras de ocupação originária”, argumenta.
“A história mostra que são múltiplas as formas de resistência indígena diante de situações de expropriação territorial”, afirmou em carta à Segunda Turma do STF a psicanalista Maria Rita Kehl, responsável pela parte do relatório da Comissão Nacional da Verdade (CNV) que tratou das violações dos direitos dos povos indígenas entre 1946 e 1988.
Entre outras coisas, o relatório da Comissão cita casos em que os Guarani e Kaiowá de Mato Grosso do Sul foram “jogados com violência em caminhões e vendo suas casas queimarem”, durante o período em que foram removidos para as reservas criadas pelo extinto Serviço de Proteção ao Índio (SPI), com a finalidade de liberar suas terras para a colonização.
“Entre acampamento na beira da estrada e retomada, já estamos aqui faz vinte anos. Vinte anos não são vinte dias. Tem criança que nasceu e que cresceu aqui, nesse Guyraroka”
“Vinte anos não são vinte dias”
Insegurança alimentar, sobrevivência em precários acampamentos às margens de movimentadas rodovias, um índice de suicídios altíssimo e recorrentes conflitos com fazendeiros, os quais com frequência resultam em assassinatos de indígenas, são alguns dos fatos que compõem a realidade dos Guarani e Kaiowá em Mato Grosso do Sul.
Segundo dados do relatório Violência contra povos indígenas, do Cimi, 44% dos 1.009 assassinatos de indígenas que ocorreram no Brasil entre 2003 e 2016 foram em Mato Grosso do Sul. O estado também lidera no número de suicídios indígenas: entre 2012 e 2016, foram 249 registrados, a grande maioria entre jovens.
Estes números alarmantes relacionam-se com o enorme passivo de demarcações no estado, onde há 28 terras indígenas estagnadas em alguma das etapas do processo demarcatório e ao menos 70 que são reivindicadas e não tiveram ainda nenhuma providência. A maior parte delas pertence aos povos Guarani Nhandeva e Kaiowá, cuja população é estimada, no Mapa Guarani Continental de 2016, em cerca de 64 mil pessoas.
Mesmo em acampamentos e retomadas que conseguem atingir alguma estabilidade, como no caso do tekoha Guyraroka, a proximidade com as lavouras de monocultura tem os seus inevitáveis flagelos.
O intensivo uso de agrotóxicos é um deles, e sua aplicação é percebida imediatamente nos córregos próximos ao Guyraroka, onde os indígenas tomam banho e de cujas nascentes, algumas bem próximas da aldeia, utilizam água para consumo.
“A gente toma mais água das minas do que da caixa d’água, que não é suficiente. Eles passam o veneno, chove e a água que cai na soja lava aquilo lá, penetra no solo e contamina o rio. Tem usinas e empresas aqui perto que passam veneno de avião. E de avião é mais forte ainda”, explica Erileide.
Apesar dos problemas e ainda que num espaço bastante reduzido, a comunidade que vive na retomada de Guyraroka busca superar as adversidades e reproduzir, dentro das possibilidades do dia-a-dia, o modo de vida tradicional. Um acordo firmado em maio deste ano entre o MPF, a prefeitura de Caarapó (MS) e o Ministério Público do Trabalho (MPT) financiará a construção de uma escola no Guyraroka, atendendo a uma demanda antiga da comunidade.
“Entre acampamento na beira da estrada e retomada, já estamos aqui faz vinte anos. Vinte anos não são vinte dias. Tem criança que nasceu e que cresceu aqui, nesse Guyraroka”, reflete Maria Jorge, moradora do Guyraroka.
“Manter a anulação de Guyraroka pode servir de estímulo a novas invasões de terras indígenas. O marco temporal legaliza esbulhos cometidos até 1988, o que demonstra que essa prática é vantajosa também em nossos dias”
Ecos de 2014
“São muitas as contradições deste julgado. Houve uma tentativa da Segunda Turma de mudar a jurisprudência do STF. Foi uma tentativa frustrada, que não se consolidou, porém deixou o caso específico do Guyraroka nessa situação crítica”, explica Adelar.
Essa tentativa de mudança da jurisprudência incluiu, além do julgamento sumário que prejudicou a comunidade Guarani Kaiowá, outras duas decisões que, naqueles mesmos meses de 2014, anularam demarcações de terras indígenas, também sob a liderança do ministro Gilmar Mendes: foi o caso da TI Porquinhos, do povo Apãnjekra Kanela, no Maranhão, e da TI Limão Verde, do povo Terena, também no Mato Grosso do Sul, já registrada e sob posse dos indígenas.
Além das consequências graves para as comunidades diretamente afetadas, essas decisões isoladas acabaram sendo incorporadas ao Parecer 001/2017 da Advocacia-Geral da União (AGU), apresentadas pelo órgão do governo Temer como “jurisprudência consolidada” do STF sobre o tema. O Parecer é considerado inconstitucional pelo MPF e vem sendo denunciado pelo movimento indígena como uma medida pró-ruralista criada para paralisar as demarcações.
No período posterior a essas três decisões, no entanto, o pleno da Suprema Corte vêm adotando uma linha de reafirmação do caráter originário dos direitos indígenas e de negação explícita do marco temporal. Foi o que ocorreu no caso do julgamento das Ações Cíveis Originárias (ACOs) 362 e 366, em que a vitória indígena foi unânime, e da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 3239, em que o rechaço ao marco temporal, na discussão sobre o direito quilombola à terra, foi também marcante.
Para o secretário executivo do Cimi, Cleber Buzatto, manter a anulação de Guyraroka com base no marco temporal pode ser um estímulo a novas ondas de invasões a terras já demarcadas. “O marco temporal legaliza esbulhos cometidos até 1988, o que demonstra que essa prática é vantajosa também em nossos dias”, avalia.
“A decisão de anulação do Território de Guyraroká é um atestado de genocídio e de massacre por parte do Estado não só contra as famílias de Guyararoka mas também contra todo nosso povo. Se suspenderem nossos territórios no papel, nós os defenderemos com nossas vidas na prática”
“Esse Guyraroka aqui é nosso, é aqui o nosso lugar”
Seu Tito Vilhalva não sabe precisar com exatidão quantas vezes foi a Brasília lutar pela demarcação de seu tekoha. Segundo seu cálculo, foram pelo menos oito. Sua neta, Erileide Domingues, já conta cinco idas à capital federal. Maria Jorge fecha a conta em quatro viagens, no mínimo.
As possíveis consequências de uma negação do recurso, confirmando a anulação da terra indígena, parecem para eles difíceis de imaginar. “Se anular e tirar nós daqui, vamos para onde? Esse Guyraroka aqui é nosso, é aqui o nosso lugar. Não tem lugar na reserva mais. Querem que a gente volte pra beira da estrada?”, reflete Maria Jorge.
“Se me expulsarem, eu não tenho pra perder nada. Vou ficar embaixo de uma árvore aí. Melhor fechar o mundo e acabou”, ressente-se seu Tito.
Fechar o mundo, no caso, não é só uma figura de linguagem. Segurando uma folha de papel impressa com a foto de um eclipse em tons sombrios, o ancião recita uma série de catástrofes que as rezas atribuídas a divindades Guarani Kaiowá são capazes de causar.
“Se acontecer o despejo do Guyraroka, com dois, três dias de reza, o escuro já fecha esse sol aí. A reza é para acabar o mundo e os índios também”, avisa. Aos seus olhos, o fim do mundo não é uma medida menos drástica do que a negação de seu tekoha.
Mas se, por um lado, há receio de que a injustiça seja reafirmada pela Corte, por outro, os Guarani e Kaiowá vêm fortalecendo a união em torno do território tradicional e da comunidade afetada. A última reunião da Aty Guasu, a Grande Assembleia Guarani e Kaiowá, por exemplo, foi realizada entre 21 e 24 de agosto no tekoha de seu Tito e dona Miguela.
“A decisão de anulação do Território de Guyraroká é um atestado de genocídio e de massacre por parte do Estado não só contra as famílias de Guyararoka mas também contra todo nosso povo”, afirma a carta final do encontro. “Se suspenderem nossos territórios no papel, nós os defenderemos com nossas vidas na prática”.
As diversas violações que constam na decisão questionada, assim como as recentes decisões da Corte no sentido oposto, ampliam as expectativas de reversão do julgado, avaliam os advogados da comunidade. A possibilidade de reconhecimento dos indígenas como parte do processo, da mesma forma, pode ser um legado importante para o conjunto dos povos indígenas do Brasil.
“Esta é uma ação extraordinária, de certa forma, porque a autora é a comunidade indígena. Isso vai refletir para todas as demais comunidades do país”, avalia Adelar Cupsinski. “Essa decisão vai beneficiar – ou não – 305 povos, um milhão de pessoas e mais de 1200 terras indígenas”.