Quem é dono da indolência e malandragem?

Redenção de Cam. Pintura de Modesto Brocos

Por Nathan Santos, para Desacato.info. 

Antes de mais nada peço paciência – e estômago – para esta nossa conversa, pois teremos muitas viagens ao longo do texto. (Pelas limitações do formato ela se apresenta muito mais como um monólogo).

A primeira coisa que considerei quando decidi abordar esse tema foi o tempo. O título deixa claro que vamos conversar sobre o que disse o candidato a vice-presidente pela chapa do bolsonaro. Assim sendo, eu imaginei que, por fazer aproximadamente um mês que a fala foi feita pelo mourão, o debate já teria perdido o fôlego ou estaria fora de tempo. Logo abandonei essa ideia. O tempo será – praticamente – nosso assunto principal.

Começo me justificando.

Por que, passado um mês do acontecimento, essa conversa não está fora de tempo? Pois bem, o conteúdo da fala do tal candidato traz uma concepção pavorosa, inacabada, imprecisa, preconceituosa e etc (voltaremos a falar disso). Mas, não por isso, menos presente no imaginário brasileiro até os dias de hoje. O curioso é que essa ideia resta de tanto tempo atrás quanto se estenda a investigação. Mais um adjetivo para a ideia “do candidato”: arcaica. Veremos como as concepções contidas no discurso de mourão trazem um intenso paradoxo, sendo tão antigas quanto atuais.

Estenderemos essa investigação numa linha do tempo que irá caminhando para trás. Começamos com o general e sua fala na Câmara de Indústria e Comércio de Caxias do Sul (RS), mês passado.

Na sabedoria que jaz escondida em threads do Twitter, a próxima parada seria roberto campos, apontado por usuários que defenderam a fala do candidato como sendo o “referencial teórico” da afirmação. Segue imagem anexadas a alguns desses tweets.

Sem respectiva data, podemos estimar que tal frase atribuída a roberto campos esteja datada, pelo menos, a partir do fim da década de 1940 em diante, quando o mesmo passou a ocupar um cargo de cônsul no Itamaraty. Muito mais provável que, dado o teor de sua frase e sua preocupação com o desenvolvimento econômico, sua fala tenha tomado lugar após 1964, quando foi ministro do planejamento do governo castelo branco, tendo ficado no cargo até 1967. Nada pode dizer que roberto campos não tenha inspirado o general. No entanto, o que é problemático foi a caracterização dessa frase como tendo um teor científico que justificasse a fala de mourão. Uma fala que, dita pelo ex-ministro, nunca teve tal pretensão, muito menos há qualquer documentação que isso tenha sido defendido por ele dentro dos certames acadêmicos.

Assim sendo, nossa próxima parada é justamente a ciência. A frase do ex-ministro evidentemente ecoa, às avessas, uma clássica interpretação do Brasil. Para gilberto freyre, é justamente essa amálgama cultural que é causa do sucesso da sociedade brasileira frente a outras nações, no que diz respeito ao trato racial. Teoria defendida em Casa-grande & senzala, livro canônico do sociólogo, publicado em 1933, a miscigenação haveria de ter produzido por aqui uma convivência de raças que seria alheia ao preconceito. Por mais inocente que nos pareça hoje, tal interpretação repercutiu mundialmente e se manteve como a imagem retratada mais fiel do Brasil, por pelo menos vinte anos após sua publicação. Enquanto se colocava em contraste a convivência racial no Brasil com as leis de segregação nos Estados Unidos e o apartheid na África do Sul, por um lado, a própria sociedade brasileira internalizou a miragem de inexistência do preconceito racial, por outro. Isso se viu reforçado pelo fato de que tal teoria tenha sido construída para negar outra abordagem científica que se caracterizava como o establishment das teorias raciais desde a virada do século XX. Esta abordagem será nossa próxima parada. Mas antes, vale ressaltar que a teoria de freyre se desenvolveu no que conhecemos hoje como “mito da democracia racial” e, para além, apesar de ter sido questionado já na década de 1950, o autor defendeu suas ideias ao ponto de reiterar o neocolonialismo português na África. Isso significou, senão, que sua proposta de coexistência e contribuição mútua e harmônica dos portugueses e da população indígena e negra escondia uma superioridade civilizatória europeia, além de uma hierarquia desumana que não teria sido questionada em conjunto com uma sútil defesa do branqueamento populacional.

Seguindo, não se pode negar que a teoria de freyre era, até mesmo moralmente, superior ao que ele se colocou como contraponto, a saber: o racialismo ou racismo científico. Esta ideia defendia uma superioridade objetiva e biológica entre as raças. Se as ideias do sociólogo nos parecem inocentes atualmente, estas não escondem e nem se justificam pela sua bizarrice e pretensa qualificação de ciência. Como expressão nacional dessa teoria, temos o médico joão batista de lacerda, que participou do Congresso Universal das Raças, em 1911. Ele defendia, partindo da noção racialista, que a miscigenação no Brasil seria positiva pois sobreporia os traços da raça branca sobre a raça negra e indígena. Na verdade, era a final expressão da tese do branqueamento populacional. A crença era de que dentro de um século os traços do europeu, que estavam sendo introduzidos através do incentivo à imigração desde fins do século XIX, sufocariam os elementos de persistência dos traços do negro. Errado enquanto ciência, mais errado ainda como premonição. O médico e “cientista” não contou com a resistência dos oprimidos frente aos opressores e, hoje, não é esse Brasil europeu que  se vê.

O último elemento de nossa reconstrução temporal se retira da apresentação de joão batista de lacerda e acaba remontando adaptações do cristianismo no fim da Idade Média e passagem para a Era Moderna –fica claro o que havia dito, as ideias apresentadas aqui são tão mais antigas quanto se queira estender essa pesquisa. Mas antes, teremos outros parênteses para falar sobre o cristianismo.

Pouco antes da abolição da escravidão no Brasil, o racialismo ecoava nos cultos cristãos. Um exemplo relevante se encontra em um sermão católico publicado em 1887 n’A Província do Espírito Santo de título Lenda da Criação do Preto. A parábola conta que Satanás haveria criado, ao ter inveja da criação de Adão, um exemplar de homem para si. Seguindo os mesmos passos que Deus, qual não teria sido a surpresa e revolta do Maligno ao ver que tudo que tocava ficava negro, sua criação era um homem preto. Com outras tantas alegorias nojentas, expôs-se também a origem dos traços da criação diabólica, como  o motivo para a brancura das palmas das mão e plantas dos pés, a crespura do cabelo e o formato do nariz e dos lábios. Enfim, essa era a humanidade com qual o cristianismo da época enxergava as raças, relegando o negro a posição de criação que, nem mesmo Deus, em sua infinita bondade e misericórdia, teria se envolvido em tal feita. Guardem em mente que tal interpretação das condições raciais não é raridade até os dias de hoje, senão essa da criação diabólica, com certeza a que veremos na nossa próxima parada (ecoada tempos atrás pelo deputado marco feliciano).

Retornando a apresentação de seu artigo no congresso de 1911, lacerda expôs um quadro de um pintor espanhol radicado no Brasil, modesto brocos. O quadro retrata uma família na qual há uma avó negra, a mãe de pele mais clara com um filho branco no colo, ao lado de um pai branco. Recorri às antropólogas Lilia Schwarcz e Tatiana Lotierzo em Raça, gênero e projeto branqueador: “a redenção de Cam”, de modesto brocos, um artigo de 2013, para remontar essa interpretação. Segundo as autoras, a pintura é uma referência a uma modificação da interpretação bíblica do capítulo 9 do livro de Gênesis, quando da expansão da cristantade para a África, Ásia e, posteriormente, às Ámericas. Cam era um filho amaldiçoado de Noé, o mesmo da arca. Para justificar a escravidão africana, a pele de Cam se tornou negra nas interpretações que surgiram no período, sendo que sua maldição era por toda a vida e descendência ser servo de seus irmãos. Os outros filhos de Noé também ganharam um marcador racial, Sem deu origem aos asiáticos – não eram negros, mas também não eram brancos – e Iafet seria o filho branco. Ainda, as autoras ressaltam a relevância da formação do casal “miscigenador” com uma mulher negra e um homem branco. A ideia que resta aqui é de reiterar a superioridade do homem branco, como o pólo ativo do embranquecimento e a passividade e gratidão das duas mulheres pela “dádiva” que teriam recebido com o filho homem e branco. É a materialização das hierarquias de gênero e raça no paradigma do embranquecimento. É uma ideia que se mantém presente mesmo na obra de gilberto freyre que recorrentemente confunde estupro com miscigenação. É, também, parte constituinte do processo de sexualização da mulher negra em nossa sociedade, além da construção do ideal de masculinidade alheio ao homem negro.

Nosso caminho até aqui se justifica pela quantidade de pontos de partida que reunimos. São começos que se reencontram hoje no nosso dia a dia. Justificam ideias que teimam em se manifestar, latentes ou evidentes, todos os dias. Por vezes, episódios como o do mourão são necessários para trazer à tona esse debate. Entretanto, nossa linha do tempo realçou a origem de aflições muitas vezes naturalizadas ou normalizadas ainda hoje. São ideias que explicam nossa desigualdade econômica ter forte marcador racial, o que naturaliza o binômio preto-pobre. Reforçam a exclusão de uma população indígena que sobrevive no limbo de não ter direito a sobrevivência nos marcos europeus ocidentais, nem mesmo a possibilidade de manter viva sua cultura e sua comunidade em um espaço reservado pra si. É a manutenção da superioridade da branquitude que aparece como dissimulada amante dos privilégios, ao mesmo tempo em que se enfurece ao ver qualquer desses minimamente ameaçados. É a reprodução do patriarcado, essencial ao capitalismo, tomando a forma perversa de adicionar um marcador racial que se aproveita e aprisiona irrestrito do corpo das mulheres negras, acelerando suas mortes.

Por fim, apresento nossa última viagem, que é também uma autocrítica. Essa nossa conversa apresentou dois opostos, personagens X generalizações. De um lado, mourão, roberto campos, gilberto freyre, joão batista de lacerda, o cristianismo e outros tantos – é bem verdade que tentei esconder nas iniciais minúsculas o quanto tais personagens representam  um substantivo comum, mais do que próprio, em nossa sociedade. De outro, Indígenas e Negros – como vimos, a herança ibérica só carrega uma carga superficialmente negativa e com nenhum reflexo estruturalmente discriminativo a esse grupo aos dias de hoje. A sutileza que isso traz está no fato de serem pessoas, personagens, personalidades que ao reproduzirem ou introduzirem suas ideias reduzem outras tantas pessoas e histórias à generalizações mentirosas e imprecisas, quando não montam teorias míopes, absurdas ou desumanas. A ironia se apresenta quando, ao conversarmos sobre isso, os personagens principais ainda sejam esses substantivos próprios, como se representassem ideias estranhas ao restante da sociedade. Não se engane, não digo isso para que estes tenham qualquer carga de responsabilidade aliviada ou permaneçam no anonimato. Mas, o sentido total e final dessa conversa é dizer que se permaneça a luta para que Indígenas e Negros, verdadeiros substantivos próprios de si e entre si, sejam os interlocutores da própria cultura. É de reafirmar que temos, entre nós, a capacidade de combater, nos espaços que conquistamos, tais ideias pavorosas, inacabadas, imprecisas, preconceituosas, arcaicas e racistas, reescrevendo e redefinindo nossa própria identidade longe da branquitude e do racismo. É, por fim, de retomarmos o protagonismo de nossa própria história, conhecendo bem o modo como nos foi tirado.

Fontes:

Verbete           Biográfico           de           Roberto           Campos.           Disponível            em: http://www.fgv.br/CPDOC/BUSCA/dicionarios/verbete-biografico/roberto-de-oliveira- campos. Acesso em set. 2018.

FREYRE, G. Casa-grande & Senzala. 48ª ed. São Paulo: Global, 2003.

DA SILVA, J. M. Raízes do Conservadorismo Brasileiro: a abolição na imprensa e no imaginário social. 2ª Edição. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2017.

LOTIERZO, T. H. P.; SCHWARCZ, L. K. M. Raça, gênero e projeto branqueador : “a redenção de Cam”, de modesto brocos. Recherches sur les arts, le patrimoine et la littérature de l’Amerique Latine. Art e Logie, Numéro 5, 2013

MISKOLCI, R. A Teoria Queer e a Questão das Diferenças: por uma analítica da normalização. Dísponível em: http://alb.com.br/arquivo- morto/edicoes_anteriores/anais16/prog_pdf/prog03_01.pdf

Nathan Santos, 26, negro, integrante do Movimento Economia Pró-gente, mestrando em Economia do Desenvolvimento no Programa de Pós-Graduação de Economia na Universidade Federal do Rio Grande do Sul.

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