Por Bruna de Lara.
No sábado, dia de 04 de agosto de 2018, Micaela da Silva* estava proibida de sair de casa das 13h às 18h. Era uma punição imposta pelo Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro: em 2008, ela decidiu interromper uma gravidez. E, passada uma década, continua pagando por isso. Um mês antes do aborto, peritos do Instituto Médico Legal encontraram sete hematomas em seu corpo, ferimentos que não eram estranhos à moça de 25 anos. Seu namorado já a havia atacado com socos e mordidas em 2007. Processado, ele foi obrigado a cumprir medidas mais leves do que as impostas à Micaela pelo aborto e, no começo de 2012, já não tinha mais nenhuma dívida com a justiça. Enquanto ela paga por uma decisão íntima tomada dez anos atrás, o ex-namorado retomou a rotina de agressões e coleciona denúncias de outras três mulheres.
Conheci o caso de Micaela depois de levantar o número de presos por aborto no Brasil e me surpreender com o resultado. Até o final de junho, 89 pessoas estavam presas por aborto nos 14 estados que enviaram dados ao Intercept via assessoria de imprensa. Dessas, 85 eram homens, quase todos encarcerados por provocar abortos contra a vontade das mulheres – a maioria espancou suas companheiras grávidas ou as obrigou a abortar. Outras 924 mulheres, segundo um estudo do Portal Catarinas, foram processadas entre 2015 e 2017 por abortar. Mas, em junho deste ano, só havia uma presa pelo crime. Então veio a dúvida: os juízes já ignoram o aborto enquanto crime?
Não. “O fato de elas não serem presas não quer dizer que não são responsabilizadas”, esclareceu Ana Rita Prata, coordenadora do Núcleo de Promoção e Defesa dos Direitos da Mulher da Defensoria Pública de São Paulo. “Só a entrada dessas mulheres sem histórico criminal no sistema de justiça já é uma penalização muito dura.” Foi o que aprendi com o processo de Micaela.
Em 24 de setembro de 2008, Micaela tomou dois comprimidos de Cytotec. Sem saber se eram o bastante, inseriu outros dois na vagina. A dor e o sangramento provocados pela alta dosagem do medicamento abortivo a fizeram vencer o medo e buscar socorro no Hospital das Clínicas de Teresópolis, no interior do Rio. Lá, ela passou por uma curetagem (espécie de raspagem cirúrgica do útero) e foi intimada a conversar com o serviço social.
Horas depois da alta, o aborto já estava registrado na delegacia. A denúncia, como em 65% das que são feitas no estado do Rio, veio de quem se comprometeu a cuidar da paciente. Nesse caso, da assistente social, que agiu sob orientação da direção do hospital.
A pressa da denúncia não se refletiu na agilidade das investigações. Passaram mais de três anos até que Micaela fosse ouvida pela polícia. Um mês depois, em fevereiro de 2012, ela virou ré. Sob ordens da juíza, que atendia a pedido do Ministério Público, o Hospital das Clínicas de Teresópolis entregou a principal prova da acusação: o prontuário médico da moça. Em São Paulo, já existe o entendimento de que processos baseados em provas obtidas com a quebra ilegal do sigilo médico podem ser anulados. No final daquele ano, um juiz decidiu que ela iria a júri popular pelo crime de aborto. No Brasil, esse tipo de julgamento é raro: só acontece em casos de crimes contra a vida.
“São sete estranhos ouvindo e julgando o que ela fez, com as portas abertas, numa situação totalmente vexatória”, criticou o defensor público Henrique Guelber, que atua no caso de Micaela desde o ano passado. “O aspecto preventivo do direito penal, essa ideia de que a pessoa vai deixar de praticar a conduta por temer a punição, nunca se aplica no caso do aborto. Então, qual o sentido disso? É uma coisa macabra.”
Foi apenas em novembro de 2016, quando Micaela já estava pronta para ser julgada por um grupo de desconhecidos, que ela recebeu do Ministério Público a oferta da suspensão condicional de seu processo – quando a ação fica “congelada” enquanto o réu cumpre algumas medidas. Se cumpridas, o processo é extinto. Caso contrário, a ação volta a correr. Micaela, como muitas mulheres em sua situação, aceitou.
Enquanto Micaela enfrentava o júri, seu ex – mesmo tendo sido denunciado por outras mulheres –, já estava livre de pendências judiciais há quatro anos. O juiz que o condenou em 2007 não pareceu achar a violência contra Micaela grande coisa: ordenou primeiro o cumprimento de serviço comunitário, pena proibida em casos de violência doméstica. No ano seguinte, a pena foi trocada por idas mensais ao tribunal e a necessidade de avisar ao juiz sempre que saísse da cidade. Em janeiro de 2012, ele já estava livre de qualquer compromisso com a Justiça.
O comentário do defensor me fez pensar em um grupo de WhatsApp em que mulheres trocavam informações sobre métodos abortivos. Na reportagem que as expunha, colocando em risco seus destinos em um país repleto de Micaelas, uma coisa me marcou: a solidão de quem encarava sozinha, exceto pelo apoio virtual de desconhecidas, o medo profundo de morrer durante a tentativa de interromper uma gestação indesejada. Não é um temor infundado: a criminalização do aborto leva à morte de pelo menos uma brasileira a cada dois dias.
Não precisa ser assim. Nos Estados Unidos, onde a interrupção da gravidez não é crime, um aborto é duas vezes mais seguro do que a extração de um siso. Se, diante da tortura de uma gravidez forçada, nem o pavor da morte impede as mulheres de abortar, como o receio da lei penal poderia ser capaz de impedi-las? A julgar pelos mais de 500 mil abortos clandestinos feitos a cada ano, não é. “A única consequência dessa lei é a morte de mulheres”, resumiu Guelber.
Ainda que, do ponto de vista legal, as condições impostas para a suspensão do processo não sejam uma pena propriamente dita, na prática, ainda são uma punição. “Já pegamos casos em que o juiz proibiu a mulher de ir a locais considerados ‘maus ambientes’, como bares ou casas noturnas”, contou Ana Rita Prata, coordenadora do Nudem-SP. “Como o aborto é associado a um julgamento religioso e moral, quem mora em cidade pequena fica mal vista pelos vizinhos. Muitas mulheres chegam a perder seus empregos”, ressaltou.
Assim como seu ex, Micaela foi obrigada a comparecer a juízo mensalmente por dois anos. Mas, diferente dele, também foi ordenada a cumprir 64 horas de serviço comunitário e proibida de sair da cidade sem autorização prévia – já ele não precisava pedir permissão, bastava avisar quando saísse da cidade por mais de 15 dias. Uma mulher que decide o destino de seu próprio corpo, ao que parece, oferece mais risco à sociedade e tem mais a provar do que um homem que ameaça, controla e agride mulheres.
Nos primeiros seis meses, Micaela compareceu quatro vezes à CPMA, a Central de Penas e Medidas Alternativas. Na última, em maio de 2017, veio a explicação das duas ausências: ela estava no final de uma gravidez de gêmeas, e o mal-estar constante a impedia de sair de casa.
Em 13 de junho deste ano, enquanto as argentinas faziam uma vigília pela descriminalização do aborto em seu país, Micaela comemorava o primeiro aniversário de suas filhas, nascidas no mesmo hospital em que, uma década antes, ela havia buscado socorro. Já fazia dois meses que seu defensor havia conseguido transformar o comparecimento mensal à CPMA em idas bimestrais, além de substituir o serviço comunitário pela proibição de sair de casa nas tardes de sábado e domingo. Como Micaela não tem ajuda para cuidar das meninas, era impossível cumprir as condições anteriores.
Neste final de semana, que marca o intervalo entre os dois dias de discussões públicas no Supremo Tribunal Federal sobre a ação que pode descriminalizar o aborto no Brasil, ela continuará pagando pelos quatro comprimidos de Cytotec ingeridos em 2008. “Para que serve tudo isso?”, questionou Guelber, o defensor à frente do caso de Micaela. “Para que parar o promotor de justiça, o juiz, sete jurados, vários defensores públicos, tudo às custas do Estado, num caso assim? A não ser que reconheçamos que nosso Estado não é laico, qual a satisfação que esse processo dá à sociedade?”
Se tudo der certo, as condições impostas à Micaela terminarão em novembro, quando, enfim, seu processo será extinto. Terão se passado 122 meses desde o aborto.
*Nome fictício escolhido para preservar a privacidade da mulher.