Por Luciane Recieri, para Desacato.info.
Havia prometido um conto, me esqueci. Ela veio me lembrar ontem, depois de tantos anos nos falando quase todos os dias. É. Ontem ficou umas horas na minha frente com aqueles olhões de musa dos anos 20 e eu debruçada no livrão dos anos 30. Ficou achando maçante o meu trabalho e perguntando com ansiedade própria helenística como aguentava e eu dizia tenho-paciência-de-Jó.
É Helena. Tenho. Tenho tido todas as coisas em poucas horas, em poucos anos. Queria que me perdoasse pelas ausências palavrísticas. Pelas ausências de abraço e até de sentares aos lados. Uma coisa que sempre me pôs louca é não ter tempo. Ah, mas o Weber explicou. A gente vai se rendendo e sendo ou não sendo. Hoje cedo era escuro ainda. Um frio dos diabos e eu olhei a cara do tempo e quase desisti de levantar e tomar banho e me encher de roupa e sair na rua. Mas, sabe? Ando imitando o otimista. A gente sofre menos. Sempre fiz papel de. Então, ando fazendo.
E acho pouco qualquer sacrifício. Vou te explicar a vida com reticências, Helena… Se a gente tiver a sorte de envelhecer juntas, vou te contando, mas tenho pena de vocês porque sacam muito do mundo. Eu, quando era você, acreditava em revoluções triunfantes, em grandes amores, em coisas pra sempre. Você foi picada por um realismo absurdo! Ah… queria fazer um conto bonito pra você, mas não vejo cor. É a menina monocromática. Tudo que disser vai ficar lugar comum e lugar comum é apertado pra você. Daí imagino uma caixa com hibiscos e aquele plástico na frente te protegendo. Você lá dentro com um vestidinho estampado.
Ah, Helena! Não ia convencer. Ia ficar na prateleira até os cantos da caixa ficarem esfolados e um funcionário besta e metódico pegar uma fita Durex e consertar os cantos. Não ia convencer. E se botasse um vestidinho gris com golinha de guipure, ninguém ia comprar também porque acharia uma boneca esquisita. Logo a gente se alcança Helena. Seremos quase iguais e não importará se não viveu o que vivi. Vai pegar, como eu peguei todas as doenças que vêm vindo desde o 1900. Vai entender de amor como um poeta de 80 entendeu.
Não vou arriscar Helena, tecer um conto pra você. Se gostasse de história infantil, podia botar uns absurdos no meio, daí ficaria mais atraente, não sei. Tenho um conto que não acaba nunca e conto pra Anna desde sempre. O nome? Ah, não ria. É Menino Rato. O Menino Rato é ruivo e anda faz tanto tempo com a gente que até se materializou e engordou. Está quase como eu já, digo, velho. Começou menino e agora é um moço ralado e gordo.
Esses dias fui mais longe na história do Menino Rato porque a Anna cresceu. Se contar todos os segredos dele, vai deixar de ser herói, Helena, então, nunca termino. Você sabe não? Se sabemos muito, todo mundo vira sucata. Não. O Menino Rato será segredo e se deixar, vou criar um continho da Menina Monocromática, mas com vistas de criança. Deixa a gente envelhecer por fora e que guardem a matéria nas caixas. A alma não cabe não Helena. Vou deixar ela solta. Presta não. Presta não. Não presta atenção no tempo, Helena. Deixa ele te comer em silêncio de traça, mas faz que não “tá” vendo.