Por Vitor Nuzzi.
Desde 1957 no Rio de Janeiro, o baiano Evandro Teixeira, com 32 anos à época, saiu de manhã da redação do Jornal do Brasil com uma pauta: “grudar” no líder estudantil Vladimir Palmeira. “Havia uma notícia de que ele seria preso”, lembra o veterano fotógrafo, que fez naquela quarta-feira, 26 de junho de 1968, imagens que ficariam para a história do país, que tentava voltar para a democracia e mergulhou no abismo da ditadura, com a edição, em dezembro, do Ato Institucional número 5 (AI-5).
Mas, naquele dia, havia a convicção de que a situação política brasileira poderia mudar. “Foi um dia glorioso para nós, brasileiros”, afirma Evandro Teixeira, que passou o dia inteiro acompanhando a manifestação. “Naquela época não havia microfone ou carro de som, era no gogó. Ele (Palmeira) subia em árvore, caixote…”, lembra o fotógrafo, que 10 anos atrás lançou o livro 1968 destinos 2008 – Passeata dos 100 Mil (editora Textual), resgatando as histórias de 100 participantes. A foto que acompanha este texto ilustra a capa da edição.
A redação do JB ficava na Avenida Rio Branco, centro do Rio. O ato começou na Cinelândia, a algumas quadras de distância. “Eram grupos que iam chegando. Artistas, intelectuais, jornalistas, religiosos, de braços dados. Ia formando aquele agrupamento de gente. Quem você imaginar estava ali”, diz Evandro, lembrando de nomes como Antonio Callado, Otto Lara Lesende, Gilberto Gil, Caetano Veloso, Chico Buarque, Paulo Autran, entre muitos outros.
Os “braços dados” estão na letra de Pra não Dizer que não Falei de Flores (Caminhando), que nasceu naquele dia. A canção de Geraldo Vandré se tornou um hino contra o autoritarismo: “Somos todos iguais, braços dados ou não”.
A multidão seguiu pela Rio Branco. Dobrou à direita na Avenida Presidente Vargas, na direção da Igreja da Candelária. Terminou no Palácio Tiradentes, que até 1960 sediava o Congresso e em 1968 abrigava a Assembleia Legislativa. No final da tarde, Evandro Teixeira viu Vladimir Palmeira entrar em seu Fusca para ir embora. Ele recorda do caráter pacífico da manifestação. “Naquele dia não houve sequer alguém sendo empurrado, não aconteceu nada.”
Bem diferente de apenas cinco dias antes, 21 de junho, data que ficou conhecida como a “sexta-feira sangrenta”, como lembra o fotógrafo. Foram horas de conflito, com a população resistindo à violência policial. Dos prédios, pessoas jogavam objetos, solidárias aos estudantes. No dia seguinte, manifestantes protestaram no Palácio Guanabara, sede do governo estadual, e começou a se articular o ato do dia 26.
Mas os antecedentes remetem para 28 de março, quando soldados invadiram o Calabouço, no centro do Rio, e um deles disparou contra o estudante Edson Luís de Lima Souto, que morreu na hora. “Os estudantes conseguiram resgatar o corpo, senão teria desaparecido”, diz Evandro.
Movimento estudantil
Em texto para o livro, Vladimir Palmeira conta que, em dezembro de 1968, o Conselho da União Nacional dos Estudantes (UNE) optara pela luta contra a política educacional do Rio, enquanto alguns setores defendiam que “o centro tático” do movimento fosse contra a ditadura. “No Rio, isso se traduziu pela decisão de centrar a luta na defesa de mais verbas para as universidades, o que permitiu uma aproximação ainda maior entre os dirigentes e a base. A luta por mais verbas exigia uma relação diferente com autoridades universitárias e o governo, sem prejuízo da luta política contra a ditadura”, analisa.
Algumas situações parecem permanecer até hoje, como o posicionamento de parte da mídia. “Os estudantes saíam às ruas por mais verbas e denunciavam a ditadura. O governo só respondia com repressão. Nesse quadro, depois de mais uma passeata, o jornal O Globo publicou um editorial afirmando que só queríamos agitar, e, não, resolver os problemas do ensino. Começava uma nova campanha para o nosso isolamento”, narra Palmeira, contando ainda que a decisão de realizar a passeata foi tomada ainda na noite de 21 de junho, sob o impacto da “sexta-feira sangrenta”.
O governo do estado permitiu a passeata, mas decretou ponto facultativo, como tentativa de esvaziar o movimento. Não conseguiu.
Evandro Teixeira ressalta a importância da fotografia como registro histórico e de memória. “Trabalhava por obrigação, mas também de coração, contra aquela situação do país. A gente trabalhava pensando na importância de documentar a história”, diz o profissional, citando imagens célebres, como as feitas por Robert Capra na Guerra Civil Espanhola ou a da execução de um prisioneiro vietcongue por um militar em 1968. “Hoje me sinto honrado e feliz de fazer parte da história.”
O livro produzido para celebrar os 40 anos da passeata é resultado de uma intensa busca por personagens daquela manifestação, com ajuda de vários meios de comunicação. Cem deles estão retratados. “As pessoas iam aparecendo, e a gente ia marcando para fazer as fotografias no mesmo lugar”, diz Evandro, que na época dedicou o trabalho às netas Carina e Manoela e a uma terceira, que estava “a caminho, para que vivam sempre à luz da democracia”. Nina completou 10 anos no último sábado (23).
Agora, ele lamenta ver um país “degradado politicamente”. Para Evandro, as pessoas têm de ir às ruas se manifestar, mas com outro comportamento. “Se você prestar atenção naquelas fotos, quando o Vladimir falava as pessoas ficavam sentadas, como se estivesse numa igreja, com o maior respeito, escutando o orador. Naquela época, você estava buscando uma solução para o país. Está todo mundo apático (atualmente). Em muitas coisas, estamos 500 anos atrasados. Tomara que um dia… Sei lá, vamos esperar.”