Por Fernando Calheiros, para Desacato.info.
Viver nos centros urbanos sempre foi uma tarefa árdua para uma grande parcela da população brasileira. Aos trabalhadores e trabalhadoras de baixa renda que não possuem casa própria, a tarefa se apresenta ainda mais difícil. A partir da crescente especulação e valorização do solo urbano, os preços dos aluguéis dispararam, comprometendo de maneira considerável grande parte da renda familiar das camadas mais empobrecidas das cidades. Diante de uma conjuntura de cortes nas políticas sociais e precarização das relações de trabalho o cenário se torna ainda mais dramático, sinalizando para uma tendência acelerada de crescimento da pobreza urbana e expansão das populações de sem-teto nas regiões metropolitanas do país.
É o que nos mostra a mais recente pesquisa divulgada em abril de 2018 pela Fundação João Pinheiro, órgão responsável pelo cálculo oficial do déficit habitacional brasileiro. De acordo com os novos dados divulgados, o déficit habitacional (número de famílias que vivem em condições precárias de moradia) aumentou em 20 dos 27 estados brasileiros, passando de 9% [6 milhões e 68 mil domicílios] no ano de 2014 para 9,3% [6 milhões e 355 mil] em 2015. O cálculo leva em consideração qualquer domicílio que se enquadre em um dos quatro componentes integrantes do déficit habitacional: domicílios precários coabitação familiar, ônus excessivo com aluguel e adensamento excessivo de moradores em imóveis alugados.
Contudo, um novo dado apresentado pela pesquisa realizada pela fundação ganha destaque. Diz respeito ao ônus excessivo com aluguel, que em 2015 obteve uma alta de 80% em relação à série histórica iniciada em 2007. Conforme apontam os números, o gasto excessivo com o aluguel passou a representar 50% do déficit habitacional do país. Ou seja, em 2015 mais de 3,177 milhões de famílias urbanas com renda de até 3 salários mínimos acabaram comprometendo 30% ou mais da renda familiar mensal somente com o custeio do aluguel.
O dado é alarmante e chama mais a atenção quando levada em consideração a série temporal elaborada pela fundação. O levantamento mostra que em 2007 o ônus excessivo com aluguel atingia 1,74 milhões de domicílios brasileiros, aumentando para 2,12 milhões em 2010. Já em 2013, esse número aumentou para 2,55 milhões, chegando em 2015 a somatória de 3 milhões de domicílios do total do déficit habitacional brasileiro. No entanto, alguns fatores podem ajudar a entender melhor os principais motivos que levaram a essa crescente do ônus excessivo com aluguel.
O primeiro fator diz respeito ao agravamento das contradições urbanas, impulsionada principalmente pela crescente valorização e concentração da terra nos grandes centros urbanos, que além de contribuir diretamente para a elevação dos preços dos aluguéis, inviabiliza as populações de baixa renda de conseguirem adquirir um imóvel nos localidades próximas aos grandes centros urbanos. São forçadas assim a viverem no aluguel, principalmente do mercado imobiliário informal.
Outra questão que pode contribuir para o entendimento está relacionada diretamente ao fracasso das políticas públicas em suprimir ou ao menos minimizar os altos índices do déficit habitacional brasileiro. O principal programa habitacional do Governo Federal, o Minha Casa Minha Vida, não conseguiu atingir o núcleo do déficit, ou seja, as famílias com renda mensal de até três salários mínimos. Concentrou-se nas camadas médias e na parceria com as grandes construtoras e incorporadoras, a saber, suas financiadoras de campanha.
Um terceiro ponto a ser considerado é mais recente, diz respeito à conjuntura de crise econômica que atualmente assola o país. Com a implementação das políticas de ajuste fiscal (com cortes e congelamentos do orçamento público nas áreas sociais) e da reforma trabalhista (leia-se: flexibilização das leis e aumento da precarização do trabalho), intensificam-se os processos de exploração econômica e de espoliação urbana, agravando ainda mais as precárias condições de vida dos trabalhadores de baixa renda. Rebaixamento salarial, informalidade e desemprego apresentam-se nesse contexto como elementos significativos para levarmos em consideração a possível tendência de crescimento da pobreza urbana e proliferação das populações de sem-teto nas regiões metropolitanas do país.
Entretanto, é preciso ressaltar que essa massa de excluídos não surge apenas das contradições evidenciadas no capitalismo contemporâneo. Trata-se de precisá-los enquanto uma população historicamente explorada e marginalizada no campo e posteriormente nas cidades, herdeira de um passado escravocrata e senhorial, o qual relegou social e territorialmente principalmente os negros e camponeses expropriados a uma condição de exclusão social em sua plenitude, a saber: nos âmbitos econômico, político, cultural e espacial.
É certo que vivenciamos uma conjuntura política extremamente desfavorável aos trabalhadores, porém, uma esperança surge no horizonte a partir da luta protagonizada pelos movimentos de sem-teto nas inúmeras ocupações urbanas que explodem pelo país. Pode ser que venha justamente dessa massa historicamente expropriada, explorada e marginalizada, as possibilidades efetivas para a constituição de uma força social capaz de exercer uma contraposição direta ao projeto neoliberal e às elites oligárquicas e autocráticas que se perpetuam no poder.
Propostas desafiadoras de renovação política alinhadas a uma perspectiva anticapitalista estão surgindo e se desenvolvendo no país. Talvez dessa conjuntura nefasta possa emergir, a partir do movimento dinâmico da luta de classes, as condições necessárias para a construção de uma unidade classista de caráter popular, radicalmente participativa e democrática. Diante dos novos desafios colocados à classe trabalhadora, certamente os sem-teto assumem um protagonismo impar, impondo-se como uma base social e política imprescindível para construção de um projeto de sociedade que se proponha mais justo e igualitário. Sem dúvida, vivemos tempos de muita luta e resistência. Tempos de sem-teto.
Referências
Folha de São Paulo. Gasto excessivo com aluguel pressiona déficit habitacional no Brasil.
Disponível em: <https://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2018/05/gasto-excessivo-com-aluguel-pressiona-deficit-habitacional-no-brasil.shtml>
Fundação João Pinheiro. Déficit Habitacional no Brasil 2015.
Disponível em: <http://www.fjp.mg.gov.br/index.php/noticias-em-destaque/4154-fundacao-joao-pinheiro-divulga-resultados-do-deficit-habitacional-no-brasil>
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Fernando Calheiros é cientista social e professor da rede pública. Atualmente cursa mestrado no Programa de Pós-Graduação em Geografia da Universidade Federal de Santa Catarina.