Por Juliana Gonçalves.
A herdeira de Solano Trindade, a Rainha Kambinda, anunciou: “O principal é preservar a cultura popular. Meu pai já dizia que pesquisar na fonte de origem e devolver ao povo em forma de arte. E tudo o que eu aprendi com meu pai, com meus avós, com os anciãos, eu passo para os meus filhos e netos e para o elenco do grupo que tem japonesa, negro, tem branco tem gente de todas as cores”.
A frase de Raquel Trindade dita à cineasta Day Rodrigues em agosto de 2017 em um vídeo ainda inédito, dá o tom da grandiosidade de Dona Raquel. Conhecida também como Rainha Kambinda, em uma referência a nação africana Cabinda, reconhecida por ser matrilinear, Raquel foi uma multiplicadora da cultura popular, ícone da resiliência e liderança feminina.
Nascida em Recife, Pernambuco, em 10 de agosto de 1936, foi criada no Rio de Janeiro e passou grande parte da sua vida na cidade de Embu das Artes, em São Paulo.
Foi filha do poeta do povo, Solano Trindade, e Maria Margarida da Trindade, coreógrafa e terapeuta ocupacional, de quem herdou o amor às danças populares e aprendeu sobre o maracatu, o jongo, o maculelê, entre outras expressões regionais.
Manoel Trindade, o neto, conta como ela gostava de se descrever. “Ela se descrevia sempre dessa forma: era ialorixá, artista plástica, coreógrafa, bailarina e assistente social. A avó ela esculpia, pintava, ensinava todas as danças, não era musicista, mas cantava”, conta.
A oralidade era uma das suas marcas registradas. De cabeça, sabia diversos contos africanos e cantigas de roda.
Dançarina, professora, escritora, rainha do maracatu, artista plástica, folclorista e coreógrafa, são muitas facetas que colocam o nome de Raquel Trindade na história da cultura e arte produzida pelo povo negro aqui no Brasil. Porém, Renata Felinto dos Santos, artista visual, ressalta outra vertente de Kambinda.
“Eu gostaria de destacar o papel da Raquel como mulher negra. Insubordinada as regras do seu tempo, porque muito jovem ela decide que ela vai dançar, vai ser artista e se casa. Mas essa postura isurbordinada, essa mulher que não pode ser dominada, acho que é o mais fascinante quando observo Raquel”, acrescenta.
Felinto, que também é professora adjunta de teoria da Arte da Universidade Regional do Cariri, no Ceará, destaca outros papéis de Raquel. “Essas três vertentes da Raquel Trindade como pintora, coreógrafa, e gestora cultural e pesquisadora, eu leria também como professora, essas atuações muito importantes, não se excluem, mas sim se complementam, uma fortalece a outra”, considera.
A professora relembra trajetória de Raquel em Embu das Artes como algo que solidificou o status do lugar como “cidade das artes”, muito pelo seu trabalho de Raquel como gestora cultural dentro do Teatro Popular Solano Trindade. Ela também foi responsável pela fundação da Nação Kambinda de Maracatu.
“O que eu penso do legado da minha avó, do que ela deixa de toda a história dela. Toda história difundida da cultura popular nordestina, se deve a esse trabalho da minha avó super insistente de pesquisar danças e aprender danças com a bisavó Margarida, de buscar os próprios conhecimento, da leitura dela, o quanto ela lia o tempo todo para conhecer um pouco mais sobre África e cultura popular”, relembra o neto.
Raquel se colocava, segundo ele, como ponte e, independente de ter titulações, é respeitada como uma grande pensadora. Prova disso é que lecionou em desde lugares periféricos do Brasil até universidades como a Unicamp e a Unifesp.
Assim, foi responsável por levar a cultura popular à academia, enquanto educava filhos e auxiliava na educação de netos e netas. “Eu acho que o legado é esse: mulheres negras não nos cabem em nenhum dos rótulo que nos deram, nenhum dos lugares que nos reservaram, é preciso criar novos lugares e acho que Raquel conseguiu criar um novo lugar”, ressalta.
No dia 16 de abril, um cortejo formado por amigos e familiares marcou a passagem da rainha Kambinda. Tudo ao som do jongo e maracatu, sentido de uma vida combativa e insubordinada.
Edição: Katarine Flor