Justiça, terra e paz para os povos indígenas

 

A Semana dos Povos Indígenas deste ano traz a discussão da interligação entre justiça, terra e paz. A proposta do Bem Viver se apresenta como o utópico paradigma. Sem justiça, terra e paz um abismo entre as pessoas foi cavado pela ganância do Capital. Conforme o Relatório de Desenvolvimento Humano das Nações Unidas (ONU, 2017), o Brasil é o décimo país mais desigual do mundo – ficando na frente de Guiné-Bissau e Ruanda. Por outro lado, o país é a sétima maior economia do planeta. Tal modelo de vida tem imposto aos seres vivos e cosmológicos um ambiente opressor, poluído e de morte.  

Os recursos naturais seguem sendo privatizados e exauridos, em muitos casos levados à escassez. Biomas como o Cerrado, e toda a forma plural de vida que neles habitam, estão hoje se acabando sob a areia do tempo que já conta o prazo de suas extinções. “A violência vislumbra-se nos sintomas de doença que notamos no solo, na água, no ar e nos seres vivos. Por isso, entre os pobres mais abandonados e maltratados, conta-se a nossa terra oprimida e devastada, que « geme e sofre as dores do parto» (Rm 8, 22)”, escreve o Papa Francisco na encíclica Laudato Si’ Sobre o Cuidado com a Casa Comum.

Os povos originários são mestres na resistência, na luta pela justiça, igualdade e no cuidado da casa comum. São estas nações que doam suas vidas em defesa da Mãe Terra e defendem dia a dia o paradigma do Bem Viver. Levam à reflexão a sociedade que os envolve sobre a “necessidade de cada um se arrepender do próprio modo de maltratar o planeta” (Laudato Si’).  É urgente proteger a nossa casa comum/grande maloca, onde a vida segue seu curso intrépido, bem como a paz e a justiça. “Poderemos assim propor uma ecologia que, nas suas várias dimensões, integre o lugar específico que o ser humano ocupa neste mundo e as suas relações com a realidade que o rodeia” (Laudato Si’).

Temos diante de nós o desafio de nos unirmos em defesa de “raízes éticas e espirituais dos problemas ambientais, que nos convidam a encontrar soluções não só na técnica, mas também numa mudança do ser humano” (Laudato Si’). Precisamos viver solidariamente na defesa da vida do planeta e dos mais pobres, em defesa de uma ecologia integral. Para isso, como bem pontua o Papa Francisco na encíclica Laudato Si’, se “requer abertura para categorias que transcendem a linguagem das ciências exactas ou da biologia e nos põem em contacto com a essência do ser humano”. A justiça é construída quando os direitos são respeitados e as terras demarcadas. Assim os povos indígenas poderão viver sem interrupção seus projetos de vida, pautado pelo Bem Viver e por uma essência que poderá significar o futuro de nosso planeta.

Terra: nossa vida e nossa casa comum

A Terra é a “casa mãe”, casa de todos e fonte de uma magnífica biodiversidade. Ela na sua integralidade providencia todas as condições essenciais para a vida plena em todos os seus aspectos, desde que respeitada em sua natureza de ser “ventre fecundo da vida”. A terra para os povos indígenas é o eixo norteador. Determinante para os processos de relação e pertença sobre um determinado espaço. Para eles, a terra é o lugar onde se é, como diz o significado da palavra tekoha ao Grande Povo Guarani. Esta relação de pertença ocorre em constante diálogo com as forças cósmicas, espirituais e do mundo físico. Neste espaço sagrado são tecidas todas as relações cotidianas, entre os indivíduos e com todo o universo numa interconexão de sentimentos, ações e cuidado.

É preciso “cuidar” da terra, ela é herança sagrada do Criador e manifestação por excelência da Mãe, da grande maloca, ela é a única casa que temos para morar: “cuidar da terra, é cuidar das filhas/os da terra”. Tudo o que fizermos a ela estaremos fazendo a nós mesmos e às gerações futuras. Sendo assim, a terra é mais do que um bem material, ela representa para os povos indígenas uma dimensão simbólica e afetiva; ela é fundamental na construção das identidades individuais e coletivas, encerrando neste conjunto as formas de ser, de pensar, sentir, conviver e de construir experiências de vida, que se traduzem em espaços vitais e significativos de reprodução física, cultural e espiritual.

Os Karitiana concebem o universo, constituído por seis espaços que se comunicam entre si, em uma cadeia invisível de relações entre os seres vivos, animais e o mundo dos espíritos, que dão harmonia a esta grande teia de encontros. Assim, ordenam o universo Karitiana – o mundo de ejepi (terra), onde os seres humanos nascem, vivem, crescem e se preparam para a grande jornada rumo à ambi otadna, a grande maloca, a fim de chegar ao mundo de Botjyj, onde acontece o grande banquete. O pajé Cizino Karitiana expressa essa relação dizendo: “a terra é vida, sem ela não podemos existir; sem passar por ela, não podemos chegar à grande maloca”.

Maltratar e explorar de forma exaustiva os recursos que a Mãe Terra nos oferece, significa comprometer seriamente a vida das gerações presentes e futuras. O Papa Francisco, na encíclica Laudato Si’, sustenta que “pelo fato de que tudo está intimamente relacionado e que os problemas atuais requerem um olhar que leve em conta todos os aspectos da crise mundial, é urgente uma reflexão sobre a ecologia integral”. Não basta, portanto, apenas defender a natureza, mas também projetos de envolvimento a ela. O desenvolvimento tornou-se um conceito parcial, apropriado pelo Capital, porque trata-se de uma falsa ideia de que é possível a todo o conjunto da sociedade uma vida na embriaguez do consumo, sem consequências perturbadoras. Vê-se que tal desenvolvimento amplia e piora a desigualdade, gera dívidas às classes mais pobres com o sistema bancário, um lucro desmedido é gerado para a elite e a destruição da Casa Comum se faz avançar gerando desequilíbrios socioambientais graves.

É urgente uma ação integral em defesa da Terra/Casa Comum que considere todos os seres. No lugar da embriaguez do desenvolvimento, a sobriedade alegre da vida partilhada e em equilíbrio com os seres que a compõem. O envolvimento com o cosmo, do ser humano para com a Terra. A utilização dos bens e serviços naturais de forma responsável, equânime e sustentável; o fim da sociedade dividida em classes, onde a propriedade privada impede a vida de progredir associada às transformações no mundo do trabalho com a flexibilização das leis e do que se entende por trabalho escravo. “Os objetivos desta mudança rápida e constante não estão necessariamente orientados para o bem comum” (Laudato Si’). Somente assim, baseada em uma opção radical pelos mais pobres, podemos sustentar as condições físicas, químicas e biológicas da vida e garantir um futuro para que o planeta seja um lugar de paz e de justiça.

A Casa Comum deve acolher toda a pluralidade de sociedades e modos de vida que nela habitam. É preciso entender que esta ecologia integral se trata também de eliminar toda forma de preconceito e racismo. Mesmo sendo um espaço sagrado, a Mãe Terra não escapou da ambição e da cobiça de muitos dos seus filhos/as. A destruição e o poder da ganância contribuem, constantemente, para a dessacralização da Terra, ventre sagrado da vida.

A paz é fruto da justa distribuição da terra

Quando os primeiros colonizadores pisaram nestas terras, chamada de Brasil, os povos originários viviam livremente. As florestas mais inóspitas eram domesticadas trazendo vantagens nutricionais até os dias de hoje. Estima-se a existência de mais de 10 milhões de indivíduos. Recentes descobertas arqueológicas apontam que a Amazônia era densamente habitada por um complexo e plural conjunto de sociedades com características e habilidades diferenciadas. Não existia propriedade privada: cerca, bois e soja. A partir desta visão de mundo, a terra pertence a todos e todas; dela se extrai o sustento, por isso é chamada de Mãe. Os produtos são repartidos entre todos os membros da Casa Comum de acordo com a necessidade.

Trabalha-se o mínimo, visto que não há interesse em acumular ou a expectativa de enriquecer. As relações de poder existem, mas se dão numa esfera que não envolve a miséria de grupos destas sociedades. O tempo livre é empregado ao cultivo das relações, da manutenção da cultura: danças, jogos, banho, artes. Não se trata de preguiça, como acusam os invasores, e sim de um modo de vida completamente diferente. A pluralidade é a base do engendramento político. As crianças são tratadas com muito cuidado, pois representam o futuro. Os idosos também são respeitados e valorizados por sua experiência: são fontes de memória e sabedoria. A paz é a construção cotidiana, fundamentada num estilo de vida fluído, e baseada na justa distribuição dos bens, da terra e do respeito à Natureza Sagrada – nela vivem os espíritos encantados em cidades invisíveis e fundamentais à existência da Casa Comum.

O Estado brasileiro reconhece aos povos indígenas o direito à terra como originário. A Constituição Federal de 1988 garante, nos artigos 231 e 232, o direito dos usos, costumes, línguas, tradições e o direito sobre os territórios tradicionalmente ocupados. No Brasil, existem atualmente 305 povos indígenas falantes de 274 línguas distintas e com uma população aproximada de 1 milhão de habitantes (IBGE, 2010). Existem ainda cerca de 112 grupos indígenas em situação de isolamento voluntários, cuja condição de livres é constantemente atacada. Infelizmente estes povos estão seriamente ameaçados pelos inúmeros ataques dos setores econômicos e políticos antiindígenas que buscam tomar os territórios indígenas fazendo uso dos Três Poderes do Estado. Integrantes do Executivo, Legislativo e Judiciário tentam, a todo custo, integrá-los à sociedade para submetê-los a condições de extrema pobreza e subalternidade ao modo de produção capitalista.

Mas como falar em paz com as inúmeras violações de direitos dos povos indígenas e demais comunidades tradicionais, caso dos quilombolas e pescadores? Onde está a justiça se mais de 360 territórios não estão sendo demarcados para garantir a integridade física e cultural das gerações presentes e futuras? São muitas as vidas tombadas: lideranças, crianças, idosos, jovens e mulheres. Todos e todas em defesa da terra. A situação de genocídio passada por estes povos ampara-se em dados alarmantes: os registros da Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai) apontam 735 casos de óbito de crianças indígenas menores de 5 anos em 2016. No ano anterior, haviam sido registradas 599 mortes. Em 2016 foram ainda 118 assassinatos de indígenas e 106 casos de suicídios – entre os povos indígenas está a maior taxa de suicídios no país afetando majoritariamente os jovens.

Enquanto houver uma economia de exploração e de acumulação, não haverá justiça tampouco paz. Tal perspectiva retira o horizonte utópico da vida cotidiana e na aridez da sobrevivência não são poucos os indígenas que se entregam ao desespero e desalento. No entanto, a fricção se dá através da resiliência: apesar de tanto sofrimento, os povos resistem de forma tenaz e criativa; enfrentam os inimigos (pistoleiros, fome, fazendeiros, madeireiros, grileiros) sem titubear. Insistem na defesa da economia de reciprocidade e a serviço da vida. Reivindicam dignidade, respeito à alteridade e o direito à terra, mas também acesso à educação, à saúde, às manifestações culturais e ao território. A paz e a justiça são frutos da justa distribuição da terra e dos bens para a integridade física e cultural dos povos. Esta economia não é apenas desejável e necessária, mas também possível. Não se trata de uma fantasia, mas do paradigma utópico do Bem Viver. Como escreveu o escritor Eduardo Galeano, a utopia serve para nos manter em movimento, pois é como estar sempre atrás do horizonte sem jamais alcançá-lo. É uma meta a ser seguida pelos povos, que resistem incansavelmente no cuidado dos/as filhos/as da Mãe Terra. Se trata do giro descolonial, da roda grande entrando na pequena, conforme a cosmologia de vários povos do Nordeste.

O Bem Viver: um futuro com justiça, paz, terra e respeito à alteridade

O Bem Viver não é meramente um conceito, é uma proposta de vida dos povos indígenas para toda a humanidade. A proposta exige integralidade, reciprocidade, autonomia e interdependência de todos os seres vivos. Cada vez mais esta ideia vem ganhando adeptos no Brasil: desde movimentos sociais, teóricos acadêmicos, comunidades periféricas dos grandes centros urbanos, comunidades quilombolas e tradicionais. O Bem Viver aponta para a vivência da justiça, da paz e da alteridade num diálogo de forças e ações, em defesa da Mãe Terra. Toda a terra clama por justiça: a Grande Maloca se torna uma expressão de vida plena. O Bem Viver pode ser considerado uma utopia pós-capitalista, mas seu caráter antissistêmico e rebelde aponta para a necessidade de ações imediatas. Não se trata da construção de uma comunidade alternativa a fugir dos problemas da humanidade e viver restrita a si mesmo num recanto preservado da Mãe Natureza. “Não pode ser autêntico um sentimento de união íntima com os outros seres da natureza se ao mesmo tempo não houver no coração ternura, compaixão e preocupação pelos seres humanos. É evidente a incoerência de quem luta contra o tráfico de animais, mas fica completamente indiferente perante o tráfico de pessoas, desinteressa-se dos pobres ou procura destruir outro ser humano de que não gosta” (Laudato Si’). O Bem Viver é, acima de tudo, ruptura e anúncio. É um projeto político integral construído pela experiência plural e peculiar dos povos.

Yvy katu (terra sagrada) para o povo Guarani-Kaiowá é a grande morada dos seres vivos e dos espíritos. Na terra boa bonita, tekoha porã, há três espaços distintos: a mata, a roça e a aldeia. A mata (grossa ou rala) é o espaço da caça, da pesca e da coleta; a roça, o lugar do cultivo; a aldeia, o local das moradias, das festas e das reuniões. A partir desta compreensão, a Terra, yvy, e todos os seres têm uma meta: eles nascem com um impulso inicial e desejam desenvolver-se até realizar completamente o projeto de vida inscrito neles. Aspiram, pois, sua plenificação, sua maturidade – aguyje. Itymby/embrião, broto, semente: o termo original que indica esse projeto. São projetadas as esperanças e o Bem Viver desses grupos indígenas, que hoje vivem em espaços exíguos e em condições subumanas de sobrevivência, ameaçados em sua integridade física diariamente. Inúmeras são as violências que sofrem.

A definição do Bem Viver, o Sumak Kawsay (Buen Vivir), requer de nós uma ampliação deste conceito e a abertura da mente para acolher este paradigma. “Complexo, vivo, não linear, porém historicamente construído e que está em constante ressignificação”, como afirma o teólogo Paulo Suess. O Bem Viver é um modo de ser, existir, viver e se relacionar que foge do parâmetro capitalista. Este visa o crescimento econômico, gerando no meio da comunidade/sociedade o individualismo, a relação utilitarista entre os seres humanos e a natureza, a mercantilização de todas as esferas da vida. O Bem Viver expressa uma relação diferente entre os seres humanos e propõe a incorporação da natureza na história, não como fator produtivo, tampouco como força produtiva, mas como parte inerente ao ser social. Os seres humanos fazem parte da natureza “nós somos parte da terra, a terra é parte de nós” (Laudato Si’).

A comunidade, a alteridade e o respeito à pluralidade são eixos fundamentais para a vivência milenar do Bem Viver, onde todos se preocupam com todos e o mais importante é a vida, sendo todos os seres vivos e a Mãe Terra portadores de direitos. O Bem Viver, como tal, não é uma experiência plenamente vivida atualmente pelos povos indígenas. No contexto brasileiro é muito mais uma bandeira de luta que, por um lado, denuncia o fato de que eles não são contemplados nos projetos históricos do Estado, que os ameaça com as inúmeras violações de direito. Porém, aponta o sonho dos povos indígenas de viver de maneira plena, em seus territórios, na harmonia com os espíritos e os outros seres da criação.

Enquanto houver desrespeito aos direitos dos povos indígenas e persistir o descompasso entre justiça, terra e paz, o Bem Viver será ainda uma perspectiva utópica para nos fazer caminhar. É preciso a permanente resistência e mobilização para construir na história espaços de liberdade, fartura de bebida, comida, danças e sonhos de esperança. O Bem Viver é a construção no chão da história e formado pelos esforços das muitas vidas que fecundam a terra para não deixar morrer os caminhos que nos aproximam de um lugar originário e desvirtuado pela sociedade da acumulação e do desenvolvimento capitalista. Os povos indígenas, com suas cosmovisões e culturas de reciprocidade, têm sido, há milênios, os guardiões da floresta e da utopia do Bem Viver.

O que estão fazendo à mãe terra e aos filhos da terra?

A desconstrução e redução dos direitos está em curso no Brasil e em outros países, mundo afora. Tudo acaba por ter um valor monetário e a vida é colocada em segundo plano. Na perspectiva dos detentores do capital, direitos trabalhistas ou a demarcação de terras indígenas reduzem lucros, portanto não podem existir. Este é o critério da verdade estabelecido pelo sistema político e econômico.

 São inúmeros os projetos econômicos que violam os direitos dos povos indígenas. São muitos também os instrumentos político/administrativos, judiciais, jurídicos e legislativos que tentam modificar os procedimentos de demarcação dos territórios indígenas. No Congresso Nacional, são mais de 100 projetos contra os direitos dos povos indígenas. A Casa Civil, Advocacia-Geral da União (AGU), Legislativo e Judiciário constituem-se num amplo espectro de articulação, em plena atividade, para atender a pressão e interesses dos inimigos históricos dos povos indígenas.

Apesar da exploração irracional da Mãe Terra, da perseguição implacável, da escravidão, das guerras, das doenças criminosamente introduzidas e da imposição de um sistema que se orienta por parâmetros completamente diversos dos praticados pelos povos indígenas, ELES não foram vencidos. São muitas e constantes as mobilizações para defender a vida, os direitos e os territórios. Mesmo que isso custe a própria vida, caso de Clodiodi Aquileu Guarani-Kaiowá, Kirixi Munduruku, Oziel Terena e do massacre sofrido pelo povo Akroá-Gamella, onde 22 indígenas ficaram feridos. Os filhos/as defendem a Mãe Natureza com garra, sangue e a própria vida. Lutam pela terra onde repousam seus antepassados e à garantia de vida para as gerações futuras.

Na Amazônia, os muitos projetos e empreendimentos comprometem a biodiversidade e a sobrevivência das futuras gerações, em consequência da escassez de recursos vitais à manutenção da vida na terra. “Já cortaram o Rio Madeira, também o Rio Xingu e agora querem cortar o nosso Rio Tapajós”, denunciaram os indígenas Munduruku do Médio Tapajós durante a assembleia na Aldeia Watupu, em setembro de 2015.

A resistência e a luta permanente em defesa dos territórios

Os povos indígenas resistem com todas as forças e espírito guerreiro à implantação dos gigantescos e impactantes projetos de infraestrutura, que atingem e ameaçam seus modos de vida ancestrais, e até mesmo suas sobrevivências.

A resistência milenar dos povos indígenas mostra que é possível viver com o necessário para todos e todas, sem que uns acumulem demasiadamente e outros vivam sem que tenham o suficiente para atender necessidades básicas. É possível viver sem mercantilizar a vida, a natureza e o ser. Podemos recriar referenciais de justiça e solidariedade.

Os territórios demarcados, e com políticas públicas que garantam a sua integridade ambiental, social e territorial, possibilitam aos povos indígenas construir e viver seus projetos de futuro, suas espiritualidades e culturas. É preciso observar o que isso significa para a humanidade. A ignorância obscurantista de parcela das pessoas de cultura ocidental prefere taxar estes povos de selvagens, preguiçosos e fazem uma leitura deturpada de que tudo o que os indígenas construíram de grandioso e complexo é fruto de seres extraterrenos – como vemos em programas televisivos e lemos nos livros. Sem dúvida alguma, a experiência milenar destes povos e a sua pluralidade servem para trazer abundância de vida ao planeta, pois “tudo está interligado, como se fôssemos um”.

Tudo está interligado: justiça, terra e paz

A paz é fruto da justiça. A terra é o espaço em que se vive em paz e acontece a justiça. Tudo está intimamente interligado, como o sangue que corre nas veias, sendo fonte de vida para os seres vivos. Como o ar que respiramos traz o sopro da vida, justiça, terra e paz estão interligadas e são fontes do Bem Viver para os povos indígenas. A clarividência adquirida no trato com a natureza faz com que os povos indígenas saibam das ameaças e de como garantir um futuro. Observar o fluxo das formigas os alerta para mudanças anormais no meio ambiente, o que influenciará o plantio, a colheita, a pesca, o ir e vir dos animais.

O que estamos deixando para as gerações futuras? O Papa Francisco, profeticamente na Encíclica Laudato Si’, faz a todos nós sérios questionamentos: “O que está acontecendo na nossa casa? Que tipo de mundo queremos deixar a quem vai suceder-nos, às crianças que estão a crescer? Que necessidade tem de nós esta terra?” (Laudato Si’). Estas questões nos convocam a agir em defesa da terra, dos filhos da terra e de todas as formas de vida. Estamos vivendo um momento crucial da história. É urgente construir um novo paradigma civilizatório, para que a “justiça possa correr como fonte pelo deserto”.

Existe uma íntima relação entre justiça, terra e paz. O que desafina essa harmoniosa orquestra? O aumento da pobreza, das relações desiguais, da injustiça e a fragilidade da vida no planeta: tudo está estreitamente interligado no mundo. É urgente fazer uma crítica ao novo paradigma que o “pós-liberalismo” apresenta: a versão renovada do capitalismo, que se reinventa de forma cada vez mais desumana e que exclui todos os que se colocam na contramão da sociedade individualista, consumista e hedonista.

A “cultura do descarte” (Laudato Si’) deve ser combatida pela proposta de um novo estilo de vida construído pela justiça, sobre a terra, em paz e mirando o horizonte utópico do Bem Viver.

 

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