Por Maurício Mulinari, para Desacato.info.
Não vivemos uma ascensão do fascismo no Brasil. O que temos é outro fenômeno completamente diferente: a afirmação de um discurso político impotente, localizado na esquerda liberal, que recorre ao fantasma do fascismo para legitimar seu imobilismo. A crise liquidou seu velho mundo, acirrou a guerra de classes e promoveu o total descrédito das instituições democrática-liberais que foram criadas durante a redemocratização dos anos 80. Na morte de tudo aquilo que acreditavam, a esquerda liberal insiste em não viver o luto necessário para poder encarar os novos tempos, de profundo radicalismo político e ingovernabilidade burguesa. Ficam restritos à posição de impotência e imobilismo, que necessariamente precisa de um fantasma todo poderoso para temer e impedir seu avanço.
O discurso hegemônico da esquerda pós anos 80 no Brasil foi o da democracia como valor universal. Não poderia ser diferente, afirmaram-se como negação ao que chamavam de “autoritarismo”, que tinha sua expressão concreta na ditadura militar já em crise. Entretanto, não se tratava de negar apenas a ditadura militar, tratava-se também, e principalmente, de afirmar o liberalismo como único horizonte da política, trazendo toda a herança de negação às experiências revolucionárias do século XX, que após a queda da União Soviética, foram tratadas como autoritárias e colocadas no mesmo balaio do fascismo. O pai da esquerda liberal, neste aspecto, é o próprio antagonismo entre autoritário e democrático, com sua expressão sociológica encontrada no clássico antagonismo entre arcaico e moderno.
No momento em que explode a crise capitalista e a guerra de classes faz ruir a Nova República, fazendo desabar a confiança popular na democracia liberal, o radicalismo político aparece como necessidade histórica. Diante desta necessidade, a esquerda liberal encontra-se impotente. Acostumada ao ambiente institucional de condução da política, onde abundam vulgaridades como o “parlamento como centro da política” e a retórica de “ocupar espaços no Estado”, é impotente para parir um novo radicalismo político capaz de fazer frente à nova conjuntura histórica. Entretanto, o impotente ainda vive, e precisa recorrer a um fantasma, o velho fascismo/autoritarismo, para afirmar sua precária e transitória existência.
A operação necessita do fantasma. Como todo fantasma, é um espectro, não tem rosto. Quando vemos um antigo socialista como Valério Arcary falar em um palanque eleitoral no Rio de Janeiro, junto com Lula, Celso Amorim e Lindberg, que “quem não sabe contra quem luta, não pode vencer”, a contradição é profunda. Em primeiro lugar, porque em nenhum momento de sua fala Valério caracteriza concretamente contra quem luta. Apela para um fantasma sem rosto chamado de neofascismo, onde só lhe resta reivindicar fatos isolados (como o assassinato de Marielle e os tiros à caravana de Lula no Paraná), desarticulados perante a conjuntura material, para legitimar seu diálogo com o fantasma.
Resta a pergunta, se não é fascismo, o que ocorre no Brasil? Em primeiro lugar, uma crise terminal da Nova República e de seu sistema de administração, o consórcio liberal entre petistas e tucanos. Tucanos trabalharam com o mito do controle da inflação e petistas com o mito do crescimento com distribuição de renda. Ambos desenvolveram, essencialmente, a mesma estratégia: garantir a estabilidade econômica burguesa para superar o “autoritarismo” do Estado brasileiro e consolidar “instituições democráticas”, o chamado “sistema de pesos e contrapesos” que impediria saídas de força diante de crises políticas.
Acreditaram que era preciso modernizar nossa burguesia, livrando ela de seus traços coloniais, associados às saídas autoritárias. Para os trabalhadores, a mesma modernização, garantindo a “inclusão cidadã”, que no fundo trata apenas de ampliar o acesso ao mercado de consumo mercantil de setores que até então viviam em modelo de subsistência. Também aqui, acreditavam eliminar as mazelas da pobreza, o que tiraria o povo do “domínio” dos velhos caudilhos e dos “currais eleitorais”, novamente a modernização capitalista como pano de fundo. Por fim, ampliaram a “profissionalização” do Estado, ampliando os concursos públicos e dando independência às instituições (Ministério Público e Polícia Federal, por exemplo), também aqui apostando na crença de que estavam cumprindo uma etapa necessária para superar o “patrimonialismo” do Estado brasileiro, mais uma herança arcaica que deveria ser superada pela modernização capitalista.
Neste ponto, é preciso diferenciar a política tucana no governo e o seu posterior desenvolvimento na oposição e nas sucessivas derrotas eleitorais para o PT. O PT manteve intocado o projeto tucano de modernização, que tem sua expressão intelectual máxima nas próprias teses do sociólogo e depois presidente, Fernando Henrique Cardoso. Além disso, deu faceta de caridade católica ao projeto, reforçando programas sociais ancorados na renda da terra gerada pelo longo período de elevação dos preços dos produtos brasileiros de exportação. Ao perder sua bandeira democrática-liberal, o PSDB sistematicamente vai adotando uma postura mais visceral de oposição diante do petismo, abandona a ponderação do discurso de FHC e assume o moralismo hipócrita de Aécio Neves, demonstrando já aí um sintoma de falência do bipartidarismo liberal do sistema político brasileiro que permaneceu em vigor durante longo período.
O saldo do período de reforço da democracia liberal foi desastroso. Da modernização da classe dominante, restou uma burguesia financeirizada sedenta por lucros – onde se encontram não apenas os banqueiros, mas também os industriais, os comerciantes e os latifundiários. Esta burguesia pressionou pela guerra de classes contra o povo brasileiro, com congelamento dos gastos públicos e o fim das leis trabalhistas. A classe trabalhadora, por sua vez, foi desarmada pela retórica da modernização e da superação dos conflitos de classe, foi lançada em um espiral de empobrecimento e brutalização sem precedentes, com o agravante de uma crise profunda do atendimento do Estado às necessidades mais fundamentais do povo, como saúde, educação e segurança. Tudo isso operado pelo próprio Estado liberal e democrático brasileiro, já que quem conduz a guerra de classes é um presidente que era vice na chapa de Dilma – fruto do presidencialismo de coalisão –, um parlamento legalmente eleito, um STF com quase que a totalidade de seus Ministros indicados por Lula e Dilma, e estruturas autônomas do Estado, como Polícia federal e Ministério Público.
O que cresce nesta dinâmica não é o fascismo, que exigiria uma mudança qualitativa da natureza do Estado, que passaria a centralizar uma grande aliança entre burguesia industrial/financeira imperialista com setores estratégicos da aristocracia operária. O que ocorre é a intensificação da atuação do próprio Estado liberal criado na redemocratização, pautado pela austeridade permanente sobre os trabalhadores para fazer frente às exigências financeiras da classe dominante e pela violência sistemática contra o povo pobre e negro. Os 700 mil encarcerados na política fracassada de guerra às drogas (mais de 40% sem julgamento), o assassinato permanente da nossa juventude nas favelas, a brutalização dos soldados das forças de repressão, submetidos à violência cotidiana sem qualquer tipo de preparo e com salários e condições de trabalho precários e o domínio territorial de milícias e do narcotráfico não são fatos novos, mas sim produtos históricos das próprias relações de classe no Brasil, que teve no Estado liberal pós anos 80, ao contrário da ideologia da modernização, um reforço de natureza profunda da posição do Brasil como um país dependente e subdesenvolvido.
Desta forma, a palavra de ordem “democracia ou barbárie” é totalmente falsa e impotente para enfrentar a guerra de classes. Falsa pela razão de que o caos social que vivemos foi criado pelas mãos da própria democracia burguesa, e que, como efeito colateral brutal vê casos como o do assassinato da vereadora do PSOL, Marielle Franco, e de seu motorista, além dos tiros contra a caravana de Lula no Paraná. Falsa porque todo o aparato do Estado que hoje tenta prender Lula sem provas foi criado pela própria “sabedoria política” de Lula em torno de uma “modernização inevitável”, onde caberia à esquerda apenas se adaptar. Passado todo o desastre, Lula insiste em reforçar que acredita nas instituições, mostrando sua fé inabalável em um passado mítico e, por isso mesmo, idealizado.
Discurso impotente por produzir um afastamento diante das massas, brutalizadas e radicalizadas. Ao defender um abstrato e nada palatável Estado democrático de direito, jogamos o povo, desesperado e angustiado pelo turbilhão da guerra de classes, no colo de saídas canalhas, como o famoso “bandido bom é bandido morto”. É preciso ter claro, não é possível traduzir o sinal dos tempos nessa posição de defesa abstrata da democracia em nome do medo de um fascismo em abstrato. “Democracia ou barbárie” esconde o fato de que ambas são as faces supostamente antagônicas da mesma moeda.
O exemplo claro do desastre produzido pelas palavras de ordem de defesa da democracia foi justamente o período de maior ascensão das lutas populares das últimas décadas: o primeiro semestre de 2017. De início é preciso perguntar: que ascensão do fascismo é esta quando tivemos a maior greve geral das últimas décadas (mais de 40 milhões de trabalhadores parados) em abril de 2017? Como uma ascensão do fascismo se presenciamos uma ocupação grandiosa de Brasília, que envolveu entre 150 e 200 mil pessoas em maio de 2017? E por fim, qual a razão destes atos grandiosos e do posterior esvaziamento e desanimo da classe trabalhadora no segundo semestre do ano?
A razão das vitórias de 2017 é uma só: os aparelhos de luta da classe trabalhadora (sindicatos, movimentos sociais e movimento estudantil) passaram a agitar as massas desde o início do ano contra a reforma da previdência. Os velhos panfletos e assembleias populares inundaram o Brasil de cima a baixo. A mensagem era clara e simples: contra a guerra de classes promovida pelo governo corrupto de Michel Temer, sem dubiedades de caráter democrático e parlamentar, sem defesas de “legados” idealizados de governos passados. As massas captaram a mensagem e chegamos à um grau de mais de 70% de rejeição ao projeto do governo, isso contando com a oposição da Rede Globo que fazia propaganda sistemática a favor da reforma. Temer, por sua vez atingiu desaprovação recorde, mais de 90%, histórica entre os presidentes da redemocratização.
Tal crescimento na dinâmica de massas mudou radicalmente no final de maio, poucas semanas antes da ocupação de Brasília. Saíram as delações de Joesley Batista, capitalista dono da JBS, contra Temer. O espetáculo midiático capturou a pauta, transformando a população novamente em espectadora passiva da trama palaciana. Os aparelhos que antes agitavam contra a reforma trabalhista inseriram uma nova palavra de ordem no meio da agitação: “diretas já!”. A palavra de ordem de defesa da democracia, através da suposta necessidade de eleições para “normalizar” o Brasil foi como um banho de água fria nas lutas. Do lado dos aparelhos da classe trabalhadora, desacostumados a lutar e cansados da intensidade da agitação do primeiro semestre, iniciou um imediato processo de apassivamento e espera pelas eleições. Do lado do povo, emergiu a velha desconfiança em uma democracia que nada lhes deu, pelo contrário, tudo lhes tem tirado.
A energia acumulada na insubordinação da sociedade contra a reforma da previdência e contra o sistema político se dissipou no momento em que foi inserida a impotente palavra de ordem democrática das “diretas já!”. Restou um aprofundamento do sentimento individual de angústia do povo, que não vê saída diante do tamanho da crise social. Angústia que está, obviamente, em disputa. Ingenuidade acreditar que no momento que não acusamos as mazelas sociais produzidas pelo sistema político e não apontamos um caminho revolucionário, outras forças não ocupariam o espaço do radicalismo. Ao não traduzirmos o sinal dos tempos de maneira clara, paralisados nessa posição impotente de defesa abstrata da democracia em nome do medo de um fascismo em abstrato, o povo é afastado da política, paralisado e entregue de bandeja na mão do discurso oportunista do medo da violência ou no bom mocismo paralisante da Rede Globo.
Obviamente desta impotência política da esquerda em ganhar as massas e da degeneração das condições de vida do povo, cresce a violência do Estado e de organizações paramilitares. Este cenário faz ampliar a contagem dos mortos do lado dos militantes sociais. É tragicamente natural que em um acirramento da guerra de classes, lutadores caiam no campo de batalha. Entretanto, honrar estas perdas não significa apelar ao reforço das instituições democráticas como forma de salvar um passado que não existe mais. É preciso superar o falso antagonismo entre democracia e barbárie para encararmos de forma organizada e consciente o tamanho dos desafios que a conjuntura exige. Buscar na angústia e no sofrimento das massas o discurso político radical que seja capaz de enfrentar a guerra de classes é a única saída. Um revolucionário, mesmo nos períodos mais sombrios, busca sua poesia no futuro, essa é a chave de ruptura com a impotência e os fantasmas do passado.
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Maurício Mulinari é economista no Dieese de Santa Catarina.