A série político-jurídico-policial brasileira, produzida pela empresa Netflix e dirigida por José Padilha (O Mecanismo, Brasil, Netflix, 2018) e equipe já completa uma semana no ar e nos obriga a algumas reflexões. Para isso, parto de uma evidência. Não sou crítico de cinema e menos ainda produtor, realizador audiovisual. Assim, com meu sentido de “audiência vulgar” (comum, mais um dentre os milhões de assinantes) eu gostei de quase tudo da obra, menos do fundamental!
Não se trata de uma série a mais, não é escapismo e menos ainda “só para entretenimento”. Querendo ou não, intencional ou não, os efeitos da obra reforçam alguns elementos:
– a afirmação dos “agentes públicos permanentes”, citando um notório juiz do falido Estado do Rio de Janeiro;
– a criminalização de toda a política, despolitizando os processos e inibindo a crítica por esquerda ao liberalismo político;
– gera apatia social, como uma releitura “brasileira” do Batman e das neuroses de mal estar social permanente “pelos desvios dos homens maus”;
– ainda na apatia social, a falta absoluta de confiança mútua e nos processos sociais, mesmo os criticáveis (como a ascensão pelo consumo sem um câmbio de consciência ou qualquer elemento que possa gerar uma disputa de hegemonia de profundidade);
– por fim, o inferno sombrio de um país tropical, onde os protagonistas estão de cinza e vivem em um mundo dos subtrópicos, onde as carreiras jurídicas são a única virtude ou mazela na correção dos rumos de um governo eleito.
Outro “pecado original” da série
Outro “pecado original” da série de José Padilha e equipe, estrelada por Selton Mello e Cia. é a inverdade histórica. Por um lado, é possível admitir que o “artista” não tem compromisso com a veracidade e sim com a liberdade de criação. Está correto. Mas, se há algo que abunda no país, é a “arte como forma de propaganda”, e mesmo que não tenha essa intencionalidade, o efeito é a interferência indireta no processo político. Para além da fala equivocadamente atribuída de “estancar a sangria” e sendo que tal pérola foi dita pelo “senador da jurisprudência no bacanal” com a súmula vinculante de “Suruba é Suruba, ou entra todo mundo ou não é Suruba”, o problema está no começo.
O caso Banestado não foi em 2003 e por tanto, não pode ser responsabilizado pelo pacto de continuidade e não punição. Já a CPI do Banestado sim, foi em 2003, e resultou em acórdão entre PT e PSDB, tal ilação é constatada no “relatório” do então deputado federal José Mentor (PT SP). Em 2012 o delegado da PF, hoje no exílio e então deputado federal Protógenes Queiroz (PC do B/SP) tentou instaurar a CPI daPrivataria Tucana e a mesma foi engavetada duas vezes, sendo a segunda em abril de 2014.
Se o personagem de Selton Mello tivesse um mínimo de fidelidade com a história contemporânea, teria como referência dois delegados federais. O já citado Protógenesou o injustamente esquecido delegado José Castillho. Caso o MPF fosse devidamente retratado, apareceria o também escanteado procurador Celso Antônio Três, ou no caso da Satiagraha, o juiz Fausto de Sanctis.
Mas, como a data fundamental do Caso Banestado se confunde com a CPI e não retrocede para a Operação Macuco – terminada em 2002 – e, supondo, ter sido esta parte da série “inspirada” na Operação Farol da Colina (em 2004) e que teve Sérgio Moro como juiz, resultando na prisão do mesmo doleiro (Alberto Yousseff, que recebeu 7 anos de pena no semi-aberto).
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Ainda focando no personagem de Selton Mello, se este fosse menos manipulado pelas circunstâncias políticas da Lava-Jato (que obviamente inspira a série, assim como Tropa de Elite 2 tem como base também a CPI das Milícias da Alerj, em 2008), poderia citar passagens antológicas de Castilho ou Protógenes, algo que não foi feito.
Diante do clima interno do país, pela difusão do Netflix através da expansão da internet em alta velocidade, os efeitos políticos de tamanha desinformação são evidentes.
“Republicanismo”, estamento e agentes permanentes
Não caberia aqui ficar repetindo os momentos cruciais onde os dois governos de Lulaperderam a condição de prestígio dentro da PF, ou no governo Dilma, quando José Eduardo Cardozo deixou o órgão correr por conta. Valeria ao menos observar que na década de ’90, a começar pelo período anterior ao do Impeachment de Collor, em outubro de 1992, já havia uma esperança – expectativa positiva eu diria – em cima da PFe do MPF, como se fosse possível “corrigir o capitalismo atrasado” no Brasil com instituições “republicanas”.
Do ponto de vista institucional, é evidente que sim, é possível alguma correção. Desde uma perspectiva ideológica, crer nisso é abdicar de qualquer projeto de poder que subordine os estamentos do Estado – os agentes públicos permanentes – ao interesse da maioria. Em geral, tais estamentos, estão atados aos interesses do andar de cima, seja “nacional” ou transnacional, em geral ambos associados a uma forma de imperialismo. Agora, quando tais estamentos operam por conta, subordinam – ainda que parcialmente o andar de cima – e se associam de forma horizontal ao imperialismo, eis a Lava-Jatoda Era Janot, sendo o PGR tão responsável pelo que fez como Cardozo é responsável por deixar fazer e Dilma também por tabela. Como uma ex-guerrilheira chega nesta condição de sistema de crenças? Por quê? Quais mecanismos bloqueiam um raciocínio estratégico? Não tem mais partido político? Não há uma instância de coordenação? Não? Se não tem, tem partido político para que então?
Seria tão mais fácil afirmar que tais “problemas estão no passado recente”, mas não é correto. Tais “problemas” estão no tempo presente – algo que debateremos em publicações próximas, mas não nesta série. Enfim, o mecanismo de apatia social está também em tomar o Estado como “neutro”, ou ao menos, “domesticável”, sem contar com uma hierarquia e espinha vertebral leal a um projeto de Poder. Isso é um absurdo em termos de teoria política, e infelizmente, de novo comprovado na infeliz história política do Brasil contemporâneo.
Saiu a farda – ou diminuiu sua presença até o desespero de Temer – e entrou a toga; saiu o verde oliva e entraram os coletes operacionais. Não há rigor castrense, mas vaidades das carreiras jurídicas e intercâmbios sem fim com os EUA. Neste ponto até o Zé Padilha acerta: o Mecanismo se reproduz, mas nas relações entre colegas de distintos países, aonde a internalização de interesses externos vai ao encontro do Estamento sob os holofotes e salários recheados de aditivos.
O boi pelo bife e a escolha mais cruel
Nem todo o conteúdo do Netflix é comprometido politicamente, ou ao menos, não comprometido com uma visão de mundo ou alinhamento à política externa da administração de turno na Casa Branca. Mas, há uma incidência, e trata-se do maior provedor de entretenimento online – por assinatura – do planeta. Se isso ocorre em escala mundo, como nos documentários sobre a Ucrânia e Síria, porque o mesmo não ocorreria em termos de conteúdo projetado para o Brasil?
Não estou afirmando que houve ingerência externa, mas a mesma é perfeitamente plausível, ainda mais com o anúncio recente da diplomata Susan Rice – a principal operadora de “mudanças de regime” na Era Obama – sendo incorporada à diretoria mundial do conglomerado. Ainda que não tenha havido nenhuma influência externa, e supondo que não houve, os efeitos existem, porque não expõem para o grande público o papel central da Cooperação Jurídica Internacional e a Divisão Internacional do Trabalho, nesta última incluída o oligopólio das empreiteiras brasileiras, o complexo da construção pesada, óleo e gás e, obviamente, a Petrobras.
Ou seja, o elemento central da concorrência intercapitalista – em escala mundo – e o padrão de acessos e privilégios dentro do Estado Burguês – ainda que tenha setores jacobinos e outros inclinados ao serviço público – são narrados como “aberrações” ou culturalizados na democracia liberal e indireta do Brasil. Dois absurdos teóricos e anticientíficos (porque já foram verificados infinitas vezes) sob quaisquer ângulos, mas que cumprem um efeito retórico impressionante.
Se em Tropa de Elite Padilha colocava seu protagonista para dizer “o sistema é F parceiro”, agora piorou. É “o mecanismo, que se reproduz como câncer”. Não teve Power Point da Propinocracia, a afirmação “científica” não comprovável (“não tenho provas, mas tenho convicções!”), mas organogramas que terminam criminalizando o processo político, todo. Vejam bem, este que escreve é crítico da democracia indireta e do pacto de classes. Entendo que na América Latina – Brasil à frente – quase tudo pode ocorrer e nenhum pacto é perdurável. Ainda assim vejo com perplexidade a série, pois esta incide na mentalidade política já enfraquecida.
Nem tudo é responsabilidade dos grupos de mídia, e menos ainda da internet. Na década de ’80 a Globo batia uma média de 80 pontos todas as noites e nem por isso tínhamos menos lutas e arrancamos na Constituinte, como povo organizado, direitos historicamente negados. Se a aposta reformista e gramsciana perdeu para si mesma, certamente não foi apenas por mérito do inimigo interno. Mas, diante da mobilidade social promovida pelo lulismo atingindo a 44 milhões de forma direta, e chegando a 62 milhões de brasileiras e brasileiros de forma indireta, e estando a pré-disposição ideológica da maioria difusa e inclinada ao individualismo meritocrático, está feito o preparo do caldeirão do demônio com fantasia de pastor togado.
Por fim, para não entrar em situações de “patrulha ideológica”, é preciso superar qualquer falso dilema de “realismo socialista” ou “bandeiras tropicais” na estética. Não é a série de José Padilha que vai influenciar diretamente no processo político, mas indiretamente sim. A série troca o boi pelo bife, técnica básica de manipulação, isto quando troca a Operação Lava-Jato (colocando-a como ápice) e não a Operação Macuco, com a fraude do Banestado no meio do furacão. Quanto às inclinações do diretor consagrado, faço uma pergunta cruel:
– Você aliviaria a responsabilidade de Leni Riefebstahl ou deixaria de reproduzir e elogiar a obra de Costa Gravas ou Glauber Rocha?