Por Jonattan Rodriguez Castelli, para Desacato.info.
A indústria nacional passa por momentos difíceis. Desde os anos 1990 sua participação na composição do PIB tem se reduzido, fenômeno conhecido como desindustrialização. Em 1985, após décadas de crescimento baseado na industrialização e na substituição de importações, a indústria de transformação atingira uma participação de 21,6% do produto nacional. Sem embargo, em 2014 esse percentual se reduziu para 10, 9 do PIB[i].
Além disso, a produtividade do trabalho da indústria manufatureira está estagnada. Em meados dos anos 1960 ela representava 30% da produtividade dos EUA, enquanto em 2010 esse valor girava em torno de apenas 20%[ii]. E entre 2006 e 2016 a produtividade do trabalho caiu mais de 7%. Neste cenário desalentador, um desafio – e quiçá uma esperança – emerge no horizonte: o irrompimento de um novo paradigma produtivo, a indústria 4.0.
A terminologia indústria 4.0 foi utilizada pela primeira vez pelo engenheiro Henning Kagerman e pelo físico Siegfried Dais na feira de tecnologia de Hannover Messe, em outubro de 2012, onde eles apresentaram um conjunto de recomendações ao governo alemão para a sua implementação. A indústria 4.0 seria a convergência das tecnologias físicas, digitais e biológicas, a partir dos sistemas digitais.
Nesse espectro as fábricas atuariam como estruturas modulares, baseadas em sistemas ciberfísicos que monitorariam os processos produtivos físicos, e criariam uma cópia virtual do mundo real a fim de tomar decisões descentralizadas. Para tanto, a indústria 4.0 se assenta no uso da internet das coisas (internet of things, ou IoT, em inglês), cuja lógica é os objetos se comunicarem e cooperarem entre si e com os humanos via computação em nuvem. Algumas tecnologias específicas ligadas a essa indústria são: inteligência artificial, manufatura aditiva (impressões 3D), biologia sintética e as já referidas internet das coisas e computação em nuvem (chips acoplados a produtos).
Neste sentido, com o intuito de aproveitar as vantagens produtivas ensejadas por essa nova tecnologia, e talvez enfrentar o processo de desindustrialização, no dia 14 de março o governo federal apresentou durante a edição latino-americana do Fórum Econômico Mundial um conjunto de iniciativas para estimular a chamada indústria 4.0. O denominado programa Rumo à Indústria 4.0, foi desenvolvido conjuntamente pela Agência Brasileira de Desenvolvimento Industrial (ABDI) e pela Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp). Ele prevê uma linha de crédito de R$ 7 bilhões que serão disponibilizados até 2020, com o objetivo de difundir o conceito e as tecnologias da Indústria 4.0 junto às indústrias locais. Outra medida definida para esse programa é a isenção de tarifa para a importação de robôs[iii]. Inicialmente pelo menos cinco setores deverão ser contemplados pelo programa: agronegócios, automotivo, têxtil, defesa e saúde (medicamentos)[iv].
De acordo com o presidente da ABDI, Guto Ferreira, “Aplicar o conceito da indústria 4.0 é condição inegociável para a competitividade do setor produtivo brasileiro. Por isso, são urgentes a disseminação desses novos conceitos e a capacitação das indústrias que representam setores transversais e estratégicos, indutores de produtividade e de inovação”[v]. Ademais, conforme o Valor Econômico, estudos preliminares conduzidos pelo governo apontam que a adoção dos conceitos da indústria 4.0 possibilitaria uma economia de R$ 73 bilhões ao ano no setor industrial (34 bi por ganhos de eficiência, 31 bi por redução de custos de manutenção das máquinas e 7 bi por economia de energia).
Desta maneira, a priori, os esforços para o estabelecimento de um programa com o objetivo de instalar os fatores-chave dessa indústria no Brasil são louváveis. Contudo, o que se pretende destacar neste texto é que tal programa pode incorrer em uma estratégia equivocada, afora de poder complicar a dura condição dos trabalhadores e trabalhadoras do Brasil. Cabe salientar, no entanto, que estou me adiantando ao andar da carruagem, e sempre é arriscado debater políticas públicas antes de sua aplicação. Por essa razão, o objetivo desse texto é simplesmente fomentar a reflexão e debate sobre tal tema.
O primeiro aspecto que se deve ponderar é a seleção dos setores inicialmente contemplados pelo programa. Chama atenção que a maioria seja de setores tradicionais e que tenham baixa capacidade de transbordamento tecnológico. Evidente que há avanço tecnológico em atividades como o agronegócio, porém, no período recente o que se tem mostrado é que esse setor, por exemplo, tem passado por um processo de reprimarização, especializando-se cada vez mais em bens in natura, o que reduz sua capacidade de encadeamento industrial (i.e. de estimular a existência e produtividade de outras etapas de sua cadeia produtiva, por exemplo, no caso da soja, poderíamos pensar na produção de máquinas e sementes para seu plantio como etapas anteriores e a produção de farinha e óleo de soja como etapas posteriores) e transbordamento tecnológico (efeito de transferência tecnológica de uma indústria para as demais, seja incorporada em produtos e equipamentos comercializados ou via estímulo concorrencial ou de parceria entre empresas).
O setor automotivo, por sua vez, é dominado por empresas transnacionais (o que implica que muitas das inovações realizadas por elas são feitas em seus países de origem e nem sempre serão transferido para suas filiais), enquanto o têxtil é caracterizado por ser de baixa intensidade tecnológica.
A justificativa para essa seleção inicial é priorizar aqueles setores que o Brasil demonstra liderança global. Porém, acredito que esse não deva ser o norteador para tais escolhas. Dever-se-ia selecionar aquelas atividades que tem um vínculo mais forte com a indústria 4.0, caso da Tecnologia da Informação (especialmente na produção de softwares), ou as biotecnologias, as quais o Brasil tem expertise e serão fundamentais para a inserção no paradigma tecnológico que vem se estabelecendo, assim como poderão incrementar a pauta exportadora nacional, tornando-a mais competitiva, e gerar emprego à medida que se desenvolverem.
Parece-me que tal escolha tem uma lógica muito mais política, de apoiar aquelas indústrias ligadas ao governo – e que tem mais poder de lobby – do que criar uma estratégia de desenvolvimento tecnológico real. O risco que se corre, portanto, é se reprisar as políticas adotadas no passado que permitiram a instalação do fordismo e da TI aqui no Brasil, mas de maneira dependente tecnologicamente.
Um programa desse tipo só poderá ter sucesso, como modernizador da estrutura produtiva nacional, à medida que incluir a biotecnologia e as TI na jogada, além de se combinar à importação de novas tecnologias com o avanço científico e tecnológico nacional, tanto a partir dos esforços da academia quanto das empresas – públicas e privadas. Nesse ponto, surge outros dois possíveis entraves: a EC 95 e o Marco Legal da Ciência (lei de n. 13.243).
Primeiramente a EC 95, originalmente PEC 55 ou “a PEC do teto dos gastos”, por limitar ao longo de vinte anos o crescimento dos gastos primários do governo federal à correção da inflação. Essa medida é em si um obstáculo devido à redução dos gastos com pesquisa e desenvolvimento que ela implica. De acordo com a campanha Conhecimento sem Cortes[vi], o orçamento das universidades federais já foi reduzido em mais de R$ 14,3 bilhões, desde 01 de janeiro de 2015, quando se inicia o segundo mandato de Dilma Roussef e se adota um ajuste fiscal capitaneado por Joaquim Levy, até aqui 22 de março de 2018.
Já o Marco Legal da Ciência[vii], sancionado pela ex-presidenta Dilma Rousseff em 2016 e regulamentado pelo atual governo em fevereiro deste ano, seria uma possível solução para essa redução de verba para o investimento público em ciência, tecnologia e inovação, pois permitiria uma maior aproximação das universidades e empresas, de forma menos burocratizada – entre outras coisas, autorizando que as empresas privadas adquiram a propriedade intelectual dos resultados de pesquisas realizadas em parceria com as Universidades públicas – aprimorando a Lei da Inovação (lei n. 10.973/2004). Todavia, esse marco não soluciona o grande entrave ao sucesso da Lei de Inovação como fomentador do desenvolvimento tecnológico, a incompatibilidade entre a lógica empresarial e a acadêmica nos moldes do sistema educacional construído no Brasil.
O fato é que historicamente as empresas brasileiras investem muito pouco em atividades inovativas – e isso se dá por muitas razões, dentre elas o ambiente macroeconômico desestimulante – e menos ainda em P&D. Conforme dados da PINTEC, entre 2000 e 2014, o dispêndio médio das empresas brasileiras com atividades inovativas tem sido em torno de 3,0% das receitas líquidas de vendas (RLV). Enquanto o dispêndio com atividades internas de P&D ficou ao redor de 0,6% das RLV.
Por essa razão, acaba-se estabelecendo uma relação ofertista entre as empresas e as universidades. Onde as segundas atuam como fornecedoras de tecnologias para as grandes empresas. Isso por sua vez é um limitante da medida, pois a função das universidades não é apenas a pesquisa aplicada e desenvolvimento de mercadorias e técnicas produtivas que permitam as empresas terem lucro. A educação ainda é seu principal objeto de atuação, assim como a realização de pesquisa básica, algo que o setor privado, em geral, não faz.
Dessa forma, à medida que os esforços inovadores recaem, de fato, nas universidades, torna-se fundamental que essas tenham condições de seguir suas pesquisas. No entanto, com a EC/95 reduzindo os orçamentos das universidades, impõe-se uma contradição dentro dessas políticas. O que, provavelmente, prejudicará o Marco Legal da Inovação e o programa Rumo à Indústria 4.0, se essa trajetória não for corrigida.
Outro aspecto que gostaria de destacar são os possíveis efeitos desse programa no mercado de trabalho. A isenção tarifária para a importação de robôs, provavelmente, possibilitará ganhos de produtividade na indústria de transformação, além de reduzir seus custos de produção. Porém, ela também poderá provocar uma redução dos postos de trabalho formais. A despeito de aqui não se estar apregoando uma espécie de discurso neo-luddista, esse é um desafio social que se estabelece.
As revoluções tecnológicas anteriores alteraram o padrão de vida das pessoas e o modo de produção, extinguindo certos postos de trabalho, que passaram a ser exercidos pelas máquinas, mas criaram outros tipos de emprego. A revolução da indústria 4.0, sem embargo, possui peculiaridades próprias que necessitarão de uma atenção maior para que o resultado social não seja o desemprego tecnológico e um aumento na concentração de renda.
Isso se dá por, como observou o historiador israelense Yuval Harari (autor dos best-sellers Sapiens e Homo Deus)[viii], ser a primeira vez na história que as máquinas estão adquirindo capacidade cognitiva tipicamente humanas. De modo que não se pode ter certeza de que vão surgir novos empregos para repor aqueles substituídos pelo processo de automação. Não tanto porque não se criarão novas formas de emprego, mas sim por talvez não surgirem empregos em que os humanos apresentem um desempenho melhor do que os algoritmos.
Agora, mesmo assim, os robôs não são em si um problema, o desafio são os possíveis efeitos distributivos que eles podem trazer em um país altamente desigual, e que vem passando por uma profunda reforma trabalhista de caráter precarizador, como o nosso. Neste ponto, vale lembrar as palavras do já saudoso cientista inglês Stephen Hawking: “Devemos temer o capitalismo, não os robôs. Se, no futuro, as máquinas produzirem tudo o que precisamos, o resultado vai depender de como as coisas são distribuídas. Todos podem desfrutar de uma vida de luxuoso lazer se a riqueza produzida for compartilhada. Ou a maioria das pessoas pode acabar miseravelmente pobre se os donos das máquinas continuarem se posicionando contra a distribuição de riqueza. Até agora, a tendência parece apontar para esta segunda opção, com a tecnologia conduzindo uma desigualdade cada vez maior[ix]”.
Desta maneira, a adoção dos conceitos da indústria 4.0 e, principalmente, da robotização do processo produtivo, necessitarão de políticas específicas e muito mais abrangentes do que o governo está propondo no momento. Não se pode deixar de se elevar os investimentos em educação se quisermos evitar a marginalização de parte da classe trabalhadora no processo de mudança estrutural da indústria brasileira que pode estar prestes a acontecer.
Do mesmo modo, não bastará apenas se criar linhas de financiamento sem determinar os setores mais propensos a se desenvolver sob a égide dessa nova tecnologia, assim como os gargalos estruturais que devem ser solucionados a fim de potencializar os ganhos produtivos trazidos pela mudança tecnológica. Estabelecer uma política que abranja muitas atividades ao mesmo tempo, com recursos financeiros exíguos, significará pulverizar tais recursos e reduzir sua capacidade de financiamento. Afora isso, torna-se fundamental repensar as políticas de desenvolvimento industrial e tecnológico de modo a torna-las inclusivas socialmente. Eis uma preocupação que, talvez, este governo não tenha.
[i] DEPARTAMENTO DE PESQUISAS E ESTUDOS ECONÔMICOS – DEPECON. Perda de Participação da Indústria de Transformação no PIB. São Paulo, 2016. Disponível em: www.fiesp.com.br/arquivo-download/?id=191508
[ii] PALMA, G. Why has Productivity Growth Stagnated in most Latin America Countries since the Neo-liberal Reforms? Cambridge: Cambridge University, 2011. (Working Papers in Economic, n. 1030). Disponível em: http//www.econ.cam.ac.uk/dae/repec/ cam/pdf/cwpe1030pdf
[iii] https://exame.abril.com.br/economia/governo-quer-apoiar-industria-4-0-com-credito-de-r-7-bilhoes/
[iv] Rittner, D. Pacote para indústria 4.0 vai ser lançada em março. São Paulo: Valor Econômico, 07/02/2018.
[v]http://www.abdi.com.br/saladeimprensa/releases/Bruna/17.09.26%20ABDI%20e%20Fiesp%20lan%C3%A7am%20programa%20Rumo%20%C3%A0%20Ind%C3%BAstria%204.pdf
[vi] https://conhecimentosemcortes.org.br/
[vii] https://www.nexojornal.com.br/expresso/2018/02/28/O-que-%C3%A9-o-marco-legal-da-ci%C3%AAncia.-E-qual-o-debate-sobre-as-medidas
[viii][viii] VAZ, V.; Quarta Revolução Industrial: os robôs cairão no samba com a gente? Revista da Cultura. Edição 119, dezembro de 2017.
[ix] http://g1.globo.com/rio-de-janeiro/blog/dodo-azevedo/post/pensamentos-livres-de-stephen-hawking.html
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Jonattan Rodriguez Castelli é economista, com mestrado e doutorado em economia pela UFRGS, e faz parte do Movimento Economia Pró-Gente.
Imagem: Aldakin.com