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Por Elissandro Santana, para Desacato.info.
O racismo é uma construção secular no Brasil e possui tentáculos que são assustadores em pleno século XXI. O racismo ambiental é um deles e, por ser um monstro que nos aterroriza e nos assombra, precisa ser dissecado, estudado, pois é necessário vencer esse demônio cristalizado na arquitetura mental-social brasileira, institucionalizado sem que muitos tomem consciência.
Feito o introito, é oportuno externar que retomarei o debate que elaborei em parceria com a Doutora Joceneide Cunha e com o Professor do Complexo Integrado de Educação de Porto Seguro, Denys Câmara, no artigo “Racismo ambiental no Brasil”, mas agora em uma vertente mais conceitual em torno da forma como se construiu todo esse design social-cultural-geográfico-econômico-político de segregação e de expropriação.
Após a publicação do artigo mencionado, recebi diversos e-mails nos quais algumas pessoas criticavam o uso do termo, outras desconheciam absolutamente a temática e algumas agradeceram pela oportunidade de refletirem acerca da discussão elaborada no Portal Desacato e difundida em outros meios de comunicação e em periódicos científicos e de notícias ambientais como a Revista Ecodebate.
É importante destacar que o debate em torno do racismo ambiental não é algo recente e que não sou o responsável por iniciar a discussão. Ao contrário, bem antes de mim e de meus colegas que elaboraram comigo o artigo citado, outros teóricos e pensadores já discutiam a questão. No momento, uma das pensadoras que mais me instiga a discutir este problema, que é grave e precisa ser resolvido em perspectivas amplas, é Tânia Pacheco, pois através desta pesquisadora dá para compreender o racismo ambiental por meio da expropriação dos territórios e da negação da cidadania, dois elementos cruciais para que se compreenda conceitualmente e concreto-simbolicamente o que é e como se construiu o racismo ambiental.
O entendimento desse mal que nos domina, exige do leitor reflexões sobre pontos como: para os homens negros e para as mulheres negras as elites político-empresariais brancas sempre reservaram os rincões mais inóspitos do Brasil, que esta parcela da população foi trazida à força, maltratada, humilhada, pisoteada, expropriada das condições de vida na terra de origem através do Oceano Atlântico. Também é profícuo pontuar que o povo negro teve origem em várias partes do imenso Continente Africano e jogado nas senzalas da maldição em terras brasileiras, de toda a América e no Velho Mundo Europeu. Mas é sabido que os negros sempre foram revolucionários, portanto, inconformados, por isso, uma vasta literatura historiográfica atesta que muitos deles fugiram e formaram os Quilombos.
Com relação a estes espaços, podem ser conceituados como embriões de luta pela liberdade até meados do século XIX, construídos em lugares de difícil acesso com o objetivo de isolamento e de distanciamento dos senhores escravizadores. Como bem salientei, com meus parceiros de pesquisa, no artigo “Racismo ambiental no Brasil”, no século XIX, com o aumento dos libertos, bem como com o processo de urbanização, alguns quilombos se estenderam por espaços urbanos, pelos centros citadinos e em outros lócus pelos quais a população branca transitava com limitações.
Atualmente, não é muito diferente, pois a práxis da opressão segue a mesma lógica histórica, pois os ritos da política exclusiva, escusa, continuam conformando, forçadamente, a criação dos guetos, dos espaços distantes e inviabilizando a oxigenação das ideias das sociedades fascistas que, na atualidade, mesmo depois da libertação dos irmãos negros repudiam as quotas, inconformadas por conviverem, nos mesmos espaços universitários, aeroportos, shoppings e em outros ambientes do Brasil ainda que temporariamente, já que o poder aquisitivo dos negros, todavia, não se equipara ao dos brancos da elite capital.
E como salientou a Doutora Joceneide Cunha no momento de nossa escrita em torno do artigo “Racismo ambiental no Brasil”, é inegável que ainda que alguns tenham conseguido transitar por espaços antes dominados somente pelos brancos, nem todos conseguem se deslocar pelos espaços mencionados, pois muitos ainda não conseguiram ascender nem o mínimo possível e desejado socialmente, por isso, seguem marginalizados pela política, pela sociedade elitista, subjugados às piores geografias da exclusão, àquelas mais degradadas, às favelas, aos morros, às palafitas, à periferia dos espaços geopolíticos de poder e de decisão. Nos espaços de vida da maior parte da população brasileira necessitada socialmente, em especial, os negros, o Estado continua ausente no que concerne à garantia dos direitos, mas presente através do efetivo militar truculento com seus soldados do eterno vigiar e punir os milhões de Amarildos.
Para seguir o debate, é oportuno colocar que a discussão é complexa e, por isso, de forma profunda, exige diálogos em torno de campos conceituais como raça, racismo e meio ambiente. Diante disso, argumentos devem ser elaborados a partir de noções e de saberes que orbitam por pontos como conflitos ambientais, justiça social, justiça ambiental e garantias constitucionais ambientais.
Acerca das garantias constitucionais para todos e não somente para as elites como elas teimam em nos mostrar através de um discurso determinista que as coisas são como são, é contextual e imprescindível que se mencione que a Constituição Federal de 1988, no artigo 225, assegura a todos, independente das diferenças que nos fazem tão plural, o direito à dignidade socioambiental, mas que esse direito continua sendo negado a todos os segmentos étnico-sociais.
Para entender essa premissa constitucional e todo o tema em baila, algumas reflexões em torno do termo raça são necessárias para se elucide como nossos imaginários de preconceitos foram construídos a partir dos espaços históricos e sociais, e como fomos néscios enxergando superioridade entre um ser humano e outro, quando, na verdade, já está mais do que provado que isso não existe no terreno da cor, aliás, não existe em nenhum aspecto e que é possível a unidade na diferença.
Na tese “Entre o “encardido”, o “branco” e o “branquíssimo”: raça, hierarquia e poder na construção da branquitude paulista”, Lia Vainer Schucman, valendo-se de Munanga, apresenta-nos o seguinte: a ideia de raça e de racialização do mundo é, desde então, uma das explicações encontradas pela humanidade para classificar e hierarquizar os grupos humanos. No século XVIII, a cor da pele foi considerada um dos critérios dentro desse processo de classificação pela racialização e, dessa forma, a espécie humana ficou dividida em três raças, que permanecem até hoje no imaginário coletivo: branca, amarela e negra. No século XIX, acrescentaram ao critério de cor outros critérios morfológicos, como forma do nariz, lábios, queixos, ângulo facial etc.
Para enriquecer ainda mais a questão discutida, é oportuno recorrer a Carlos Moore, pois este teórico traz uma contribuição que é bastante útil para uma reflexão no que diz respeito à construção do conceito de raça. A partir desse pensador, há a concepção de que Raça é um conceito, uma construção, que tem sido, às vezes, definida segundo critérios biológicos, mas que avanços da ciência nos últimos cinquenta anos do século XX clarificaram um grave equívoco oriundo do século XIX, que fundamentava o conceito de “raça” na biologia. Para ele, porém, raça existe e ela é uma construção sociopolítica.
Partindo-se desse pressuposto, pode-se dizer que, mesmo que se parta da ótica de que raça não existe isso não anula a existência do racismo, pois, infelizmente, esse mal ainda está presente na conformação da arquitetura mental brasileira e em muitos lugares do planeta, como resultado das construções de poder que subjazem no imaginário coletivo equivocado em torno do negro e de outras minorias, como inferiores.
À guisa de considerações finais, retomo o que já fora explicitado no artigo “Racismo ambiental no Brasil”, a partir do que afirma Selene Herculano: o clamor contra o Racismo Ambiental levanta questões sobre a ocorrência de racismo entre nós e, segundo Tânia Pacheco, embora totalmente diferente da forma como historicamente se manifestou e se manifesta ainda nos Estados Unidos, o racismo está indubitavelmente presente em nossa sociedade. Por mais que a herança negra esteja presente na maioria de nós, biológica e culturalmente, o racismo se configura, aqui, de formas diferenciadas e muitas vezes inconscientes. Deve, portanto, ser combatido em todas as suas expressões. Isso não significa, entretanto, negar que a questão seja bem mais ampla.
Ainda a partir de Selene Herculano, é possível refletir que racismo é a forma pela qual desqualificamos o outro e o anulamos como não semelhantes, imputando-lhe uma raça. Colocando o outro como inerentemente inferior, culpado biologicamente pela própria situação, nos eximimos de culpas, de efetivar políticas de resgate, porque o desumanizamos: “ô raça!” Nesse sentido, no caso brasileiro, tornamos como “raça”, e inferior – ô raça!! – também o retirante, o migrante nordestino, que passará a ser percebido como o “homem-gabiru”, o “cabeça-chata”, o “paraíba”, o invasor da “modernidade metropolitana”. Assim, nosso racismo nos faz aceitar a pobreza e a vulnerabilidade de enorme parcela da população brasileira, sua pouca escolaridade, simplesmente porque naturalizamos tais diferenças, imputando-as a “raças”. Nesse sentido, pontuamos que a discussão sobre racismo ambiental poderia ser de grande relevância exatamente para grande parte dessas categorias, quilombolas, ribeirinhos, comunidades indígenas dentre outros.
Depois de tudo o que foi apresentado, se ainda resta dúvida acerca da existência de racismo ambiental no Brasil, faça o seguinte, disponha-se a um tour pela cidade na qual reside e tente mapear onde vivem a maior parte das populações negras e camadas socialmente desfavorecidas social e economicamente, em geral, em seguida, observe quais são os espaços reservados e habitados pela elite branca. Se for honesto intelectualmente, verá que há espaços de expropriação e de exclusão de forma evidente.
Referências para a construção do texto
HERCULANO, Selene. O clamor por justiça ambiental e contra o racismo ambiental. Revista de Gestão Integrada em Saúde do Trabalho e Meio Ambiente – InterfacEHS. Acesso em 24 de agosto de 2016. http://www.professores.uff.br/seleneherculano/images/Oclamor_por_justi%C3%A7a_ambiental_e_contra__racismo_ambiental__9-282-1-PB.pdf
HERCULANO, Selene. Racismo ambiental, o que é isso? Acesso em 24 de agosto de 2016 no http://www.professores.uff.br/seleneherculano/images/Racismo_3_ambiental.pdf
MUNANGA, Kabengele. Uma abordagem conceitual das noções de raça, racismo, identidade e etnia. Acesso em 24 de agosto de 2016. http://www.geledes.org.br/wp-content/uploads/2014/04/Uma-abordagem-conceitual-das-nocoes-de-raca-racismo-dentidade-e-etnia.pdf
WEDDERBURN, Carlos Moore. O racismo através da história: da antiguidade à modernidade. Acesso em 24 de agosto de 2016. http://www.abruc.org.br/sites/500/516/00000672.pdf
SCHUCMAN, Lia Vainer. Entre o “encardido”, o “branco” e o “branquíssimo”: raça, hierarquia e poder na construção da branquitude paulista. São Paulo, 2012.
BRASIL. Constituição Federal de 1988. Acesso em 24 de agosto de 2016. http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicaocompilado.htm
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Elissandro Santana é professor da Faculdade Nossa Senhora de Lourdes, membro do Grupo de Estudos da Teoria da Dependência – GETD, coordenado pela Professora Doutora Luisa Maria Nunes de Moura e Silva, revisor da Revista Latinoamérica, membro do Conselho Editorial da Revista Letrando, colunista da área socioambiental, latino-americanicista e tradutor do Portal Desacato.