Por Eva Aing.
Taipei, 16 horas, 24 de maio de 2017. A menos de 2 quilômetros da Suprema Corte, uma tela gigante transmite o veredicto em tempo real. De repente, bandeiras de arco-íris tremulam por cima de uma multidão de adeptos loucos de alegria. Alguns choram. A mais alta autoridade jurídica da República da China (Taiwan) acaba de declarar inconstitucional a lei sobre o casamento que, limitando a união a um homem e uma mulher, não tratava os cidadãos com equidade. No mesmo momento, diante do prédio da Corte, opositores protestam: “Parem de examinar a lei, deixem que o povo decida!”.
Anunciando que o Parlamento terá dois anos para legislar, sem o que os casamentos homossexuais serão automaticamente inscritos no registro civil, a Corte admite que a união de casais do mesmo sexo se tornará legal num futuro próximo. Para Tsai Ing-wen, que dirige o país desde 2016,1 a hora é de união: “O julgamento não é um caso de vitória ou derrota. Pouco importa como vocês se posicionem, chegou o momento em que todos devemos nos considerar irmãos e irmãs”, declarou em sua página do Facebook, pouco depois do anúncio.
Na origem do julgamento, duas petições datando de 2015: a da prefeitura de Taipei, que solicitava uma interpretação da lei no quadro de um processo iniciado após sua recusa de registrar a união de três casais homossexuais; e a de Chi Chia-wei, um dos pioneiros na luta das lésbicas, gays, bissexuais e transexuais (LGBT) em Taiwan. Então com 57 anos, ele acionou a Corte depois que o cartório se recusou a casá-lo com seu companheiro. Vitória de peso para esse militante que tinha sido encarcerado por se declarar publicamente homossexual. Se hoje Taiwan pode se considerar progressista, nem sempre posou de porta-bandeira da militância LGBT na Ásia. Lá, viver abertamente a homossexualidade era impensável há trinta anos.
Em 1986, quando Chi foi preso, o país amargava o jugo da lei marcial. Todavia, começava a tomar corpo o movimento de oposição Dangwai (literalmente, “os que estão fora do partido”), que militava pela democracia, a liberdade de expressão e o reconhecimento das raízes históricas da ilha. Ao contrário do partido único, o Kuomintang (KMT), que sonhava reconquistar a China continental, o Dangwai, do qual surgiria em 1988 o Partido Democrata Progressista (PDP), pretendia inventar uma identidade distinta daquela da República Popular.2 Embora limitada pelo poder vigente, essa oposição permitiu a candidatos de “fora do partido” eleger-se – sobretudo os taiwaneses ditos “da gema”3 – e contornar a censura. Assim, mais e mais escritos questionavam o caráter pretensamente imoral das relações homossexuais à medida que o país se democratizava. O famoso romance Rapazes de cristal (Niezi),4 que contava a trajetória de jovens gays nos anos 1970, foi publicado em 1983 pelo escritor Pai Hsien-yung. Mas, se nenhuma lei reprimia explicitamente a homossexualidade, muitas pessoas eram presas por “atentado ao pudor”. “Em 2003, quando a primeira manifestação do Orgulho Gay ocorreu em Taipei, ainda se viam batidas policiais nas saunas gays”, relata Stéphane Corcuff, que dirige a seção taiwanesa do Centro de Estudos Franceses sobre a China Contemporânea (CEFC).
Os progressos alcançados nessas questões estão intimamente ligados ao longo processo de democratização que se desenvolveu entre a suspensão da lei marcial em 15 de julho de 1987, pelo presidente Chiang Ching-kuo, filho de Chiang Kai-shek, e a eleição presidencial por sufrágio universal em 1996. A arte tongzhi,5 que se tornou florescente e popular, contribuiu para a aceitação dos gays e das lésbicas. O ano de 1990 foi marcado pelo surgimento da primeira revista lésbica, Entre Nós [Women Zhijian], publicada até 1999. Nessa época, as minorias se tornaram mais visíveis que nunca. A atmosfera parecia propícia à luta contra a discriminação e à supressão do tabu.
Em 2010, as grandes cidades do país organizaram, depois de Taipei, uma marcha dos “orgulhosos”. Os primeiros debates sobre casamento apareceram em 2012, quando a deputada Yu Mei-nu propôs um texto de lei. “Achávamos que era o momento oportuno para iniciar a discussão no Parlamento e na sociedade”, lembra-se a antiga defensora dos direitos humanos. Após a primeira leitura, o texto suscitou viva oposição, antes de ser posto de lado. Em 2016, a perspectiva de união para casais do mesmo sexo foi relançada com a vitória do PDP. Desde o começo de sua campanha, a presidenta Tsai se declarou abertamente favorável.
A partir de outubro do mesmo ano, o debate sobre o casamento para todos foi retomado na Assembleia. Quando se passeia pelos bairros animados de Taipei, Taichung e Kaohsiung, é comum cruzar com uma das “pequenas abelhas do casamento para todos” (hunyin pingquan xiao mifeng), jovens voluntários que percorrem as ruas para sensibilizar o público. Jornadas de testes de HIV, ajuda psicológica, organização de eventos… – as atividades de associações como a Taiwan Tongzhi Hotline, a Aliança pela Declaração dos Direitos Humanos LGBT e a Aliança pela Promoção do Direito à União Civil6 ajudam os jovens a se afirmar, além de informar e tentar mudar os costumes da sociedade. Os militantes LGBT integram uma comunidade cada vez mais ativa. Na aparência, tudo leva a crer que a sociedade se dispõe a acolher modelos familiares mais diversificados que antes.
Não falta energia, porém, aos opositores do casamento para todos. Bom número deles se manifesta regularmente, sob a bandeira da União Taiwanesa para a Proteção das Famílias, contra a ampliação da lei. Embora não constitua uma força de oposição tão poderosa quanto os meios católicos tradicionais da Manif pour Tous na França, a União parece em grande parte insuflada por cristãos, uma comunidade que só representa 5% da população taiwanesa, mas se mostra, ainda assim, “bastante ativa por causa dos meios financeiros de que dispõe e do apoio que recebe de alguns lobbies norte-americanos”, afirma Tanguy Lepesant, especialista em juventude e movimentos políticos taiwaneses no CEFC. Ela atrai também muitos budistas e taoistas que, sem considerarem a homossexualidade anormal, se apegam a seus valores tradicionais. “Os homossexuais sempre existiram, mas é forçoso reconhecer que a reprodução da vida humana e a estabilidade da família só são permitidas pelo casamento entre um homem e uma mulher. Cumpre ter uma visão de conjunto objetiva dessas duas realidades”, pondera Zhang Zhaoheng, secretário-geral da Associação Taoista da República da China.7 Essas críticas podem igualmente ser interpretadas como um acúmulo de frustrações e de desconfiança dos grupos religiosos em relação ao governo. Com efeito, as medidas recentes de proteção ambiental limitaram muito, e mesmo proibiram, práticas rituais existentes há milênios, sobretudo as que envolvem queima de objetos.
Como perpetuar a linhagem familiar?
Por trás desse ativismo matizado de religião não vislumbramos as divisões políticas clássicas entre o KMT e o PDP, os dois grandes partidos da ilha, que se opõem em todos os assuntos relacionados de perto ou de longe com a identidade: o primeiro, favorável a uma reaproximação com Pequim, defende uma cultura chinesa única, enquanto o segundo preceitua uma identidade taiwanesa fundada na diversidade e uma diversificação de suas parcerias internacionais. Há um fosso entre a geração que cresceu sob a lei marcial, mais ligada aos valores confucionistas tradicionais da família, e os jovens criados no ambiente pós-lei marcial, defensores dos direitos humanos. Essa juventude, formada e socializada num quadro político diferente, assistiu ao advento das reivindicações, notadamente aborígines, e à valorização de um patrimônio mais diversificado. A causa LGBT caminha lado a lado com esse movimento, sendo disso exemplo um programa educativo de tolerância em matéria de sexualidade, existente desde 2004. “Tudo isso ajuda na normalização da presença social da homossexualidade”, explica Tanguy Lepesant.
Muitos acham difícil conciliar casamento para todos, de um lado, com piedade filial e perpetuação da linhagem familiar, de outro: “O maior obstáculo é a paternidade”, constata Stéphane Corcuff. Não espanta, pois, que temas como a gravidez clinicamente assistida e a barriga de aluguel sejam bem mais discutidos entre os opositores que entre os defensores, ao contrário do que ocorre na França. “Não é nada fácil debater esses temas ao mesmo tempo”, reconhece a deputada Yu Mei-nu, que, embora defenda o direito de adoção por casais homossexuais, não invoca a gravidez assistida nem a barriga de aluguel em suas propostas de emendas ao código civil. Se o casamento para todos não consegue unanimidade, as opiniões são ainda mais divididas nesses assuntos, que ultrapassam o quadro dos direitos à união.
Yu acha que a luta está longe de terminar: “Há ainda muito trabalho pela frente, como combater as discriminações e incentivar a educação em matéria de igualdade de gênero”. Iris, uma militante, pensa que os pontos de vista dos dois campos são irreconciliáveis. Segundo ela, a ênfase deve ser posta na educação: “É preciso dizer à nova geração que existem várias orientações sexuais. Não importa qual seja a sua, a sociedade tem de aceitá-la”.
Logo após a decisão da Corte Suprema, do outro lado do estreito de Taiwan, as mídias oficiais chinesas não opinaram nem criticaram, mas insistiram nas posições mais refratárias: “O acontecimento constitui uma publicidade danosa para Pequim, que não gostaria de parecer excessivamente retrógrada diante de uma ilha que considera parte integrante de seu território”, afirmou Stéphane Corcuff. “Por isso, não parece impossível que o próximo país da Ásia a aceitar o casamento para todos seja a China. O assunto já foi discutido na Assembleia Nacional Popular.”
Todavia, para Yu, “ao legalizar o casamento para casais do mesmo sexo, Taiwan poderia se afirmar como o país mais liberal da Ásia”, uma ideia partilhada por dois militantes pró-casamento, Wei-hsuan e Mu-hsi, que preferiram guardar o anonimato. Em seu entender, a legalização contribuirá para a imagem progressista de Taiwan, o que é também uma maneira de promover os direitos humanos. Iris, ao contrário, julga que o acontecimento não terá consequências diplomáticas, pois os países estrangeiros já veem Taiwan como uma ilha “onde o nível de tolerância é alto”.
Para os dirigentes taiwaneses, despertar a simpatia da “comunidade internacional” mostrando-se um exemplo de respeito aos direitos humanos é inseparável de uma estratégia diplomática que permita combater, bem ou mal, o regime de Pequim, pelo menos no plano ideológico.
1 Cf. Brice Pedroletti, “À Taïwan, la nouvelle présidente veut défendre la démocratie taïwanaise face à Pekin” [Em Taiwan, a nova presidenta quer defender a democracia taiwanesa diante de Pequim], Le Monde, 16 jan. 2016; ler também Tanguy Lepesant, “Taïwan en quête de souveraineté économique” [Taiwan em busca de soberania econômica], Le Monde Diplomatique, maio 2016.
2 Jens Damm, “Same-sex desire and society in Taiwan, 1970-1987” [Desejo homossexual e sociedade em Taiwan, 1970-1987], The China Quarterly, n.181, Cambridge University Press, mar. 2005.
3 A expressão “da gema” (bensheng ren) designa os taiwaneses cuja família migrou para a ilha antes de 1945. Aqueles cuja família chegou depois são chamados “continentais” (waisheng ren).
4 Pai Hsien-yung, Garçons de cristal [Rapazes de cristal], Flammarion, Paris, 2004.
5 Tongzhi (literalmente, “seguir o mesmo caminho”) é um termo popularizado nos anos 1980 em Taiwan e Hong Kong para designar as minorias sexuais. Cf. “Cinéma et littérature tongzhi à Taiwan” [Cinema e literatura tongzhi em Taiwan], Aurore Formosane, n.9, primavera de 2017.
6 Os nomes ingleses oficiais são, respectivamente, Lobby Alliance for LGBT Human Rights Declaration e Taiwan Alliance to Promote Civil Partnership Rights.
7 “Doit-on continuer de soutenir le changement politique et social de Taïwan si les conciles religieux s’opposent au mariage pour tous?” [Devemos continuar apoiando a mudança política e social de Taiwan se os concílios religiosos proíbem o casamento para todos?], The Initium, maio 2017.