Por Patrícia Figueiredo, Agência Pública.
Por conta de um homônimo, um editor da Agência Pública recebeu acidentalmente em sua caixa de emails uma mensagem do site “Gravidez Indesejada”. O email chamou a atenção da equipe de redação para a associação responsável pela página, que declara ter “20 anos de experiência em ajudar as mulheres com uma gravidez indesejada”. O site promete atendimento personalizado, sigiloso e gratuito para que as mulheres grávidas possam “resolver rapidamente e de forma segura os seus problemas”. Em uma de suas seções, o portal responde dúvidas comuns sobre o uso do misoprostol, substância que é utilizada em hospitais brasileiros para realização do aborto legal – e que também é usada, ilegalmente, sob o nome comercial Cytotec, para abortos ilegais.
A mensagem encaminhada por engano deu origem a uma reportagem investigativa, que revela como a equipe do site atrai as mulheres grávidas para a sede da organização. Lá, elas são dissuadidas de interromper a gravidez por psicólogos ligados à Igreja Católica e assistem slides sobre as consequências negativas do aborto na vida da mulher. Além da reportagem, o email resultou também em uma checagem do Truco – projeto de checagem de fatos da Agência Pública. O Truco verificou a veracidade de quatro alegações do site sobre os riscos do misoprostol como método abortivo. A apuração concluiu que três das frases são falsas. Confira:
“Tudo o que se conhece sobre ele [Cytotec] a este respeito é o resultado de uma prática clínica muito informal, irregular e completamente assistemática. É algo muito diferente de um medicamento onde há multidões de professores e cientistas constantemente pesquisando, debatendo e aperfeiçoando o conhecimento sobre a ação e o uso do remédio”.
Em uma das abas do site Gravidez Indesejada há um texto sobre as indicações e os efeitos colaterais do Cytotec, medicamento cujo princípio ativo é o misoprostol. Na frase selecionada acima o site alega que tudo que se sabe hoje sobre o uso dessa substância como método abortivo é resultado de uma prática clínica “informal, irregular e completamente assistemática”. O texto também diz que as comunidades médica e científica não estão “pesquisando, debatendo e aperfeiçoando o conhecimento sobre a ação e o uso do remédio”. O Truco verificou a alegação com médicos e documentos de organizações de saúde internacionais. Os dados mostram que a frase é falsa.
Uma cartilha da Organização Mundial de Saúde (OMS) indica o misoprostol como um dos principais métodos para o aborto seguro. A cartilha da OMS baseia-se em pelo menos 273 referências bibliográficas e na consulta de 24 médicos de diversos países. Além disso, dois médicos brasileiros especialistas em aborto legal procurados pelo Truco afirmam que o misoprostol é um método abortivo amplamente reconhecido pela comunidade científica. A substância é utilizada inclusive por hospitais do Sistema Único de Saúde (SUS) que realizam abortos nos casos em que ele é permitido por lei.
A cartilha “Abortamento seguro: orientação técnica e de políticas para sistemas de saúde”, publicada pela OMS em 2012, é voltada para profissionais de saúde e traz diversas recomendações para a realização do aborto legal. Os métodos indicados pelo documento variam de acordo com aspectos como a disponibilidade de medicamentos e o período gestacional da mulher. O texto traz ainda recomendações para a atenção pós-abortamento e para a adequação dos procedimentos técnicos nos sistemas de saúde locais. O documento foi produzido em inglês e posteriormente traduzido e adaptado para outros seis idiomas, incluindo o português.
Na cartilha, o método indicado como ideal para a maioria das situações prevê a administração de dois medicamentos: misoprostol e mifepristone. Este último é conhecido como “pílula RU-486” ou “pílula do aborto”. Trata-se de um medicamento que não está disponível no Brasil e não tem registro na Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa). O procedimento recomendado para o abortamento farmacológico quando não há disponibilidade de mifepristone é a administração de uma dose maior de misoprostol.
No Brasil, o misoprostol faz parte da lista de substâncias sujeitas a controle especial, regulamentadas pela Portaria 344/1998. A venda de medicamentos que o incluem na composição é restrita a estabelecimentos hospitalares credenciados. A marca comercial do misoprostol utilizada nesses locais é o Prostokos, um medicamento registrado na Anvisa. Já o Cytotec, que tem a mesma composição, não tem registro vigente na Anvisa e não pode ser vendido nas farmácias brasileiras desde 2005.
O Prostokos é um dos medicamentos utilizados nos hospitais do SUS que realizam abortos legais. No Brasil, o aborto é permitido por lei em três situações: quando a gravidez é causada por estupro, quando existe risco de vida para a mãe ou quando o feto é anencéfalo, ou seja, possui grave má-formação cerebral. Nessas situações, o procedimento pode ser realizado em hospitais credenciados.
O hospital Pérola Byington, em São Paulo, é um deles. A instituição é líder na realização de abortos legais no Brasil. O obstetra Jefferson Drezett, coordenador do Ambulatório de Violência Sexual e de Aborto Legal do hospital, destaca que o misoprostol é amplamente utilizado no dia a dia do ambulatório. “Hoje a gente tem uma enorme quantidade de pesquisas e de evidências científicas que coloca como absolutamente incontestável a segurança do misoprostol”, afirma. “A medicina já conhece todo o perfil de absorção da substância, em suas diversas vias de administração, a gente sabe quais efeitos ela tem no organismo, quais são os eventos adversos que a gente tem que estar atento. Hoje ela é uma das medicações mais importantes para a obstetrícia, e não apenas para abortos.”
O obstetra Cristião Rosas, chefe do Serviço de Atenção a Vítimas de Violência Sexual do Hospital Nova Cachoeirinha até abril deste ano, também ressalta a importância do misoprostol na medicina. “É incorreto afirmar que não é uma droga bem estudada. Pelo contrário, o misoprostol é uma das drogas que mais foi objeto de pesquisas científicas nas últimas décadas”, avalia.
Rosas explica que se trata do método mais comum para a realização de abortos legais no hospital. “O ideal é conversar com a mulher para definir qual o método que será adotado, quais são as consequências de cada um, mas a grande maioria prefere o método farmacológico, com misoprostol, por ter justamente menos efeitos colaterais”, explica o médico.
“Em 50% dos casos, sem importar quando o medicamento é tomado, não se consegue abortar.”
Não há nenhuma pesquisa que indique que a taxa de eficácia do misoprostol é de apenas 50%. “Na verdade, a eficácia do misoprostol como método abortivo fica entre 80% e 85% na maioria dos estudos”, afirma o obstetra Jefferson Drezett. Além disso, é incorreto afirmar que a eficácia da substância não depende de quando o medicamento é empregado. O período gestacional, a dosagem e a via de administração influenciam na variação da taxa. Por isso, a frase foi classificada como falsa.
De acordo com a cartilha da OMS, “a taxa de eficácia do misoprostol como método abortivo é de 75% a 90%”. Esse número é relativo ao uso do misoprostol na dose recomendada pela entidade e administrado por via vaginal ou sublingual, para gestações com menos de 12 semanas. A variação é grande porque leva em conta estudos científicos feitos em diversos períodos e com populações de diferentes países.
Pesquisas feitas apenas no Brasil, em locais que realizam o aborto permitido por lei, mostram taxas de eficácia ainda maiores. De acordo com um estudo publicado em 2014 a efetividade do misoprostol pode chegar a 98%. O índice foi constatado na pesquisa que avaliou a eficácia do misoprostol em 253 pacientes submetidas a procedimentos de aborto legal no Hospital Pérola Byington. As pacientes, atendidas entre janeiro de 2008 e dezembro de 2014, tinham idade gestacional entre 13 e 22 semanas.
Drezett, chefe do serviço de aborto legal do Pérola Byington e um dos autores do estudo, afirma que não há na literatura científica estudos que registrem eficácia de apenas 50% para a substância. “A taxa de eficácia vai depender de vários fatores, mas só poderia chegar a um número próximo a 50% com doses incorretas, repetidas por intervalos de tempo inadequados”, explica.
“Existe algum método abortivo 100% seguro? Não.”
De acordo com os médicos obstetras procurados pelo Truco, nenhum método abortivo é considerado 100% seguro. Isto ocorre porque, na medicina, nenhum procedimento clínico ou farmacológico pode ser classificado como 100% seguro. Por isso, a afirmação é considerada Sem Contexto já que, apesar de verdadeira, falta contextualização à frase.
Jefferson Drezett, do Hospital Pérola Byington, explica que nenhum método para realizar interrupção de gestação é completamente seguro. “Não existe nenhuma técnica para o aborto que a gente pode dizer que não haverá nenhum risco. Mas, também, nenhum parto é 100% seguro e nem por isso a gente demoniza o parto, onde toda mulher vai ter um risco até maior do que na interrupção da gestação”, afirma. Cristião Rosas, do Hospital Nova Cachoeirinha, concorda. “Não existe nada na medicina que possa ser considerado livre de riscos. Todos os remédios têm efeitos colaterais, assim como as cirurgias têm também suas complicações.”
A OMS qualifica o aborto legal, realizado por equipes médicas qualificadas, como um “procedimento médico de elevada segurança” em sua cartilha sobre o tema. No entanto, o documento destaca também que nos países com restrição legal é possível que se dê um
acesso desigual ao aborto seguro. “Abortamentos que cumprem com os requisitos de segurança passam a ser um privilégio dos ricos, ao passo que as mulheres de baixa renda acabam recorrendo a práticas tecnicamente não recomendáveis, operadas por pessoas sem as habilidades necessárias que provocam incapacidades ou mesmo a morte”, atesta a cartilha.
O aborto ilegal leva à morte milhares de mulheres no Brasil todo ano. Dados do Ministério da Saúde mostram que quatro mulheres morrem por dia no país após receber atendimento médico por complicações do aborto. Os números são de 2015 e totalizam 1.664 relatos de mortes em todo o Brasil.
“Tanto pílulas abortivas, como qualquer outro método, de nenhuma forma pode ser considerado seguro.”
Embora nenhum procedimento clínico ou farmacológico possa ser considerado 100% seguro, o aborto legal, realizado por equipes qualificadas, é considerado pela OMS um “procedimento médico de elevada segurança”. Além disso, estudos norte-americanos mostram que a taxa de mortalidade em abortos legais é extremamente baixa. Assim, a afirmação é classificada como falsa.
A mesma cartilha da OMS que trata dos métodos abortivos mais indicados para cada caso também discorre sobre a segurança do procedimento. “Quando o abortamento é realizado por pessoal devidamente treinado, em condições médicas modernas, é extremamente raro surgirem complicações e o risco de morte é insignificante”, declara o documento. “Realizado por profissionais capacitados que aplicam técnicas médicas e fármacos adequados e em condições higiênicas, o abortamento torna-se um procedimento médico de elevada segurança.”
Um estudo feito nos Estados Unidos em 2012 pelo instituto Gynuity conclui que a taxa de mortalidade no parto é 14 vezes maior do que a verificada em abortos legais. A pesquisa, que utilizou dados oficiais de 1998 a 2005, conclui que a taxa de mortalidade de mulheres foi de 8,8 a cada 100 mil partos e apenas 0,6 mortes a cada 100 mil abortos legais realizados. Os números incluem abortos realizados com diversas técnicas, e não apenas aqueles em que é empregado o misoprostol.
Os medicamentos classificados na frase acima como “pílulas abortivas” constituem o método mais seguro para realização de abortos, segundo Cristião Rosas. “Estudos internacionais mostram que o tratamento medicamentoso tem menos mortalidade do que os tratamentos cirúrgicos”, explica o obstetra. A combinação de misoprostol e mifepristone é o método mais indicado pela OMS em sua cartilha de orientação aos serviços de saúde para realização do aborto legal.
Já o aborto inseguro e ilegal, realizado sem atenção médica, registra taxas altas de mortalidade em algumas regiões do mundo. “A taxa de mortalidade por procedimentos de abortamento inseguro é de 460 a cada 100.000 na África e de 520 a cada 100.000 na África Subsaariana, em comparação com 30 a cada 100.000 na América Latina e no Caribe e com 160 a cada 100.000 na Ásia.” As estimativas, contidas na cartilha da OMS, foram obtidas pelo estudo “Unsafe abortion: global and regional estimates of the incidence of unsafe abortion and associated mortality in 2008”, também publicado pela OMS mas apenas em inglês.