Meu cachorro de Natal

Por Urda Klueger.

Ele veio para minha vida num dia de São Nicolau[1], dia muito mágico para a minha cultura, tempo em que o coração da gente começa a se preparar para o Natal. Era pequenino e doentinho, e já escrevi diversos textos sobre essa chegada de Atahualpa na minha vida. Faz quatro anos, e naquele primeiro Natal passamos nós três, Aldo[2], Atahualpa e eu em duas festas de Natal, onde Aldo e eu nos socorríamos da profunda dor da partida inesperada do nosso amigo Teles[3], um mês antes, matado por uma louca do trânsito, e Atahualpa se socorria das suas mazelas devorando, nas sobras das festas, carne, lingüiça e banha, tanta quanta suportou, o que foi excelente para ele, que recuperou a saúde naquela esbórnia gastronômica.

Correu o ano enquanto ele crescia, um ano de chuva, muita chuva, que culminou, no mês de novembro, com uma tragédia de águas que veio alterar a vida de toda a nossa região de Santa Catarina/Brasil[4]. Estava chegando o segundo Natal de Atahualpa, e nós o passamos num depósito de livros de uma editora, só nós dois, embora a noite de Natal a tenhamos passado com os amigos de um abrigo cheio de gente que perdera as suas casas na tragédia, onde houve farto jantar sob o comando da doce Luzia[5], minha amiga cientista social que lá estava dando seu coração e suas forças para aquela gente sofrida, que a natureza magoara tanto. Mas, na manhã seguinte, quando entreguei ao meu bichinho seu presente de Natal, que era um cachorrinho de pano, queria morrer de ternura quando vi o quanto ele ficou com medo do mesmo, dando grandes voltas no depósito de livros onde vivíamos, para não passar perto dele. Demorou alguns dias para ele aceitar aquele intruso na sua vida!

Então, no outro Natal, que era o terceiro, nós já tínhamos dado a volta por cima da tragédia do ano anterior, e já morávamos nesta casinha onde vivemos até hoje, e que até tem cheiro de flor! Foi um Natal requintado: fiz todos os enfeites, todas as comidas, tudo o que se faz num grande Natal, mas decidi que o passaria somente com o meu bichinho, como que para exorcizar o que acontecera no ano anterior, e foi lindo estarmos juntos,  vendo as estrelas de luz piscando na varanda e tendo um vislumbre do trenó do Weinachtsmann percorrendo o céu!

No Natal número quatro também cumprimos todos os rituais, mas fomos para a casa da minha afilhada Ana Paula, onde passamos divertida noite. Na volta, havia tantos presentes para abrir, tantas cartinhas de alunos para ler, que acabei dormindo de exaustão.

E então veio este ano de 2011 e uma coisa nova na minha vida: não estaria com a saúde de sempre em dezembro. Bem no começo do mês tive que fazer uma cirurgia, que deixou um grande corte na minha barriga. Não tinha como cuidar do meu cachorrinho, e ele teve que ir passar uns tempos na sua casa 2, que é a casa da minha prima Rosiane Lindner Gieland.

Quando a gente corta a barriga, dói um bocado, mas, mais que sentir a dor da cirurgia, doía-me o coração por estar sem meu cachorrinho tão amado!

Os dias se passaram: 2, 3, 4, 5… 11, 12, 13 – no dia 13, que foi ontem, o médico me disse que eu já estava tão bem que poderia reaver o meu bichinho e, ao telefone, Rosiani disse que o traria para mim!

Céus, como a gente é servo do coração! Pus-me a cuidar de tudo, cozinhar carne, cozinhar osso, cozinhar fígado, trocar as roupas de cama do meu cachorro, fazer papinha de bolo com leite, acender as luzes da árvore de Natal, escolher as mais bonitas músicas de Natal para recebê-lo – e então não sabia mais o que fazer e sentei-me na varanda, como tantas vezes fazíamos nos dias de chuva, e a tardia noite de dezembro caía e ele não chegava.  Mas ali sentada na varanda eu me pus a chorar tanto que tive que entrar e me esconder, para não alarmar os vizinhos: de supetão, de uma vez só, veio a grande dor acumulada por 13 dias, aquela dor que a gente vai engolindo quando ama e se vê diante da impossibilidade: por todos aqueles dias eu tivera que ficar sem o meu cachorro e suportando a dor da cirurgia, e a dor 2 era tão desconfortável que eu escondia de mim própria que tinha a dor 1, para poder agüentar a outra, e naquele choro eu descobria que era terrível ter agüentado a dor da falta de Atahualpa, muito mais terrível a dor do coração que a do corpo.

Então, ele chegou com Rosiani e Germano, e estava bastante desconfiado, farejando as coisas por aqui, assim como quem diz: “O que aconteceu, que eu tive que ficar longe quando sinto que o teu cheiro estava aqui na casa? E porque minha irmã gatinha pode ficar contigo e eu não?”. Claro que pulava em mim e me lambia, mas estava desconcertado e não sabia muito bem como agir. Acabou comendo e aceitando carinho, mas algo dentro dele não estava bem.

Fomos dormir, afinal, ele rejeitando muito contato, escondido debaixo da cama, sem sequer ir para sua caminha, e eu esperando o amanhecer, para ver se as coisas melhoravam. No meio da madrugada, no entanto, algo se resolveu lá dentro do coração dele, e senti-o subir na minha cama e dormir um pouquinho aconchegado a mim, como faz às vezes. Então entendi que o Natal chegara. Ainda faltam 10 dias para a noite oficial, mas dentro de mim o Natal já chegou! Perto de Atahualpa, é Natal todos os dias do ano!

Blumenau, 14 de Dezembro de 2011.

Escritora, historiadora e doutoranda em Geografia pela UFPR


[1] Dia 06 de dezembro.

[2] Aldo Renê Vera Sarubbi

[3] Adenilson Teles dos Santos, morto tragicamente um mês antes.

[4] Os detalhes da minha vida com Atahualpa nesse tempo fazem parte do livro “Meu cachorro Atahualpa”.

[5] Luzia Jacinta Fistarol Soares

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