Por Nilson Cesar Fraga.
No dia 28 de dezembro de 2017, todo o município de Irani, SC, se encontrava envolto por brumas cinzas e carregadas de águas que lavariam o solo do Berço do Contestado no decorrer de todo aquele dia e do dia seguinte. Às margens da BR-153, no km 63, as nuvens eram mais carregadas, isso desde o encontro com a BR-282, cujo cruzamento forma a cruz do Contestado encravada no coração barriga verde, numa porção de terras a poucos quilômetros do Paraná ou do Rio Grande do Sul.
O dia 29, marcado pelo sepultamento de Vicente Telles, foi um dia nublado, intercalado por fortes precipitações de chuvas e, de quando em quando, por um pequeno raio de sol que tentava rasgar o cinza do céu – o Irani seguia enlutado, estava em silêncio, já vivendo o luto da perda do seu filho mais importante, pois o semeador da esperança já havia feito a passagem para a Corte Celeste Cabocla – o Contestado amanhecera em luto e silencioso.
Havia no ar a mesma dor encenada por Vicente Telles para milhares de crianças, jovens e adultos que o procuravam anualmente para aprender sobre o Contestado por meio da arte do velho sanfoneiro, pois uma das suas encenações mais impactantes – que versava sobre o choro das véia que viram seus filhos mortos no campo de batalha do Irani –, deve ter marcado o imaginário de milhares de pessoas, falava da dor e do cheiro da morte ocorrido no Combate do Irani – quando os espectadores viravam artistas nessas encenações, pois ninguém assistia às apresentações do semeador do sonho caboclo sem ser parte da história contada e cantada; todos os visitantes sempre foram personagens por algum instante.
Esse foi Vicente Telles, um encantado soldado do Exército Encantado de São Sebastião, um semeador do sonho e da bravura cabocla. O Contestado sempre ecoará em Santa Catarina e no restante do Brasil, pelo pensamento e pela voz de Vicente Telles, que perpetuou a memória da guerra e dos remanescentes caboclos sobreviventes do genocídio do início do século passado.
Vicente Telles, nascido a 5 de outubro de 1931, viveu a maior parte da sua vida no município de Irani e, quando descobriu o Contestado, optou pela versão dos vencidos, produziu para eles ao longo da vida, assim como sempre esteve próximo desses, seja no Irani ou noutros lugares do Contestado.
Como guerreiro da causa cabocla, sua vida não foi um mar de rosa, lutou arduamente para levar a epopeia cabocla ao centro das discussões da cultura e da formação territorial do Sul do Brasil – mesmo que não soubesse disso, foi o grande impulsionador dessa causa, deixando pelo caminho centenas de pupilos e encantados. Fora chamado de louco e de excêntrico, assim como fora chamado de mentiroso, pois, no início, muitas pessoas achavam que ele inventava os episódios da guerra que abordava nas suas dramatizações – mas o tempo rompeu os estereótipos, tornando-o um grande e respeitado disseminador das questões que envolvem toda a epopeia cabocla.
Contudo o tempo foi seu juiz de paz, e continuou durante muitos anos recebendo de três a quatro ônibus por semana lotados de crianças, jovens e adultos, para ouvirem-no no seu Projeto Pedagógico do Folclore do Contestado.
Daqueles iranienses que participavam dos desfiles cívicos nas semanas do Contestado, nos muitos outubros do Contestado, a maioria já havia se libertado dos sentimentos de medo e vergonha por descenderem dos rebeldes do passado, por serem do sangue daqueles que viviam nos redutos. Vicente Telles ajudou na libertação desse povo, que passara a ter orgulho de ser caboclo, de ser filho do Contestado.
Vicente Telles escreveu muitas músicas, montou numerosas encenações teatrais, incentivou muitos estudiosos, incluindo os que são do meio acadêmico, e, principalmente, fez centenas de palestras para todo tipo de público, sobretudo em Santa Catarina, mas também no Paraná e noutros lugares, sempre munido da sua inseparável sanfona – falava das lutas, dos valores e da vida pura dos caboclos banidos de suas terras ancestrais.
A Guerra do Contestado foi diuturna e violenta, banhou de sangue todo o sertão, mas Vicente Telles falava dela por meio da arte, dessa forma, parte da dor e do sofrimento do holocausto caboclo, era suavizado pela performance encantadora do semeador do Contestado.
Vicente Telles sempre fora dono de uma mente muito aguçada e lúcida, pois sua imaginação nunca manteve o Contestado como uma fotografia velha e petrificada pelo tempo num álbum qualquer de memórias do passado. Para ele, o Contestado seguia até nossos dias, sobretudo quando comparava os desterrados do Contestado aos integrantes do Movimento dos Sem-Terra. Para Vicente, a diferença entre os sem-terra de hoje e os caboclos do Contestado, é que os que lutam pela terra hoje possuem a consciência do seu direito e se organizam lutando por tal direito; o povo caboclo, por sua vez, tinha inteligência e valentia, mas não tinha a consciência dos que lutam hoje pelo direito à terra, sempre dizia isso Vicente Telles.
Numa de suas mais belas canções, Vicente Telles comenta:
Herdeiro do chão Contestado
é o sem-terra e sem rumo seguro
Herança de amor e justiça
Da raça mestiça de coração puro
Contestado é a voz do passado
Falando ao presente, alertando o futuro
Vicente Telles, meu amigo e inspirador de duas décadas, sempre me encantou com sua produção, encantou os milhares de alunos de graduação e pós-graduação que estiveram comigo no Sítio Histórico do Irani e na sua casa. Vicente não era um personagem para amadores e aventureiros que vagam pelo Contestado, vindos dos mais diversos cantos do Brasil e até mesmo do exterior; sabia onde pisava. Como bom caboclo, avaliava muito bem os que o procuravam em busca da memória do Contestado – tinha a alma desconfiada dos caboclos, que não se abrem e não entregam as informações mais perturbadoras e íntimas para os inquiridores que apareciam de vários lugares. Sempre foi um encantado para a redenção e divulgação da causa cabocla, sabendo como agir, como falar e o que falar aos visitantes. Abria seu coração para as crianças e os jovens, pois esses possuem um coração puro e são capazes de, como ele, se encantarem pela epopeia cabocla, pois não são interesseiros e saíam deslumbrados depois de algumas horas como partícipes das encenações do semeador do Contestado.
Inquestionavelmente, Vicente Telles foi o grande redentor da epopeia cabocla; pela sua arte, trazia a história viva dos cadáveres insepultos do Contestado, daqueles que lutaram e morreram para amalgamar o solo catarinense e contestadense.
Mesmo nas primeiras horas da sua morte, naquele dia chuvoso e triste no Irani, depois das homenagens na Câmara de Vereadores, o corpo de Vicente Telles desfilou no alto de um caminhão do corpo de bombeiros, cercado pelas flores que recebera em homenagem, com seu caixão coberto com a bandeira do Contestado – a bandeira de tecido branco, com a cruz verde ao seu centro, a bandeira da resistência secular de um povo e sua causa. Desfilava pela cidade cabocla naquela manhã cinza, ao som da buzina das dezenas de carros que seguiam o cortejo, trazendo para as portas e janelas das casas pessoas curiosas e com olhares atônitos, pessoas acostumadas com o barulho que Vicente sempre fez no Irani, nos outubros do Contestado, rememorados anualmente pelo velho sanfoneiro. Gentilmente, os comerciantes iam fechando as portas dos seus comércios, enquanto o cortejo passava pela cidade.
Mas a última viagem de Vicente Telles pelo Irani foi marcada, ainda, pela surpresa que esse grande cidadão catarinense preparava para as diversas pessoas que participaram do seu cortejo, desde políticos estaduais, regionais e locais, estudiosos, amigos e amigas de causa, artistas de vários matizes, fãs, crianças que conviveram com suas artes nas escolas e pessoas comuns da sociedade local e regional. O cortejo, com o corpo de Vicente à frente e sobre o caminhão de bombeiros, passou pela parte mais periférica de Irani, uma comunidade muito pobre, dominada pela lama no chão naquele dia úmido, com casas simples, algumas eram apenas barracos feitos com restos de madeiras, cobertos com lona preta, um resumo da miséria que ainda paira sobre a vida de milhares de caboclos e caboclas que vivem no Contestado. Vicente desejava, não duvidemos disso, que os convidados para sua despedida vissem a verdadeira face dolorida vivida pelo povo caboclo.
Das casas e barracos simples saíam à porta pessoas surpresas e emocionadas, crianças vagavam pela rua seguindo o caminhão com o corpo do velhinho que todos os anos estava nas escolas levando a bravura cabocla até elas – o semeador do Contestado havia sido homenageado pelas escolas do Irani nesse mesmo ano em que se despedia; assim, todas as crianças haviam visto, em outubro, Vicente vivo e com sua sanfona, todas as crianças que corriam pelas ruas lamacentas por onde passava o caminhão vermelho dos bombeiros sabiam quem estava naquele caixão coberto com a bandeira do Contestado. Algumas pessoas choravam, enquanto o caminhão deslizava pelas ruas apertadas daquela precária ocupação humana de remanescentes do povo caboclo; em alguns momentos, parecia que o caminhão não daria conta de subir pequenos morrotes enlameados, que ficaria ali encalhado. Havia em todos os rostos a tristeza por estarem perdendo um guerreiro que, por décadas, tentou romper a invisibilidade dessas gentes espoliadas, que tentou fazê-los existir aos olhos dos políticos locais, regionais e estaduais. Vicente veio, brilhou, brigou, contraditou, apontou e tentou libertar aquela gente de raça mestiça e coração puro, mas os ouvidos dos políticos estaduais sempre foram surdos para o grito do velho sanfoneiro.
Mas Vicente venceu sua última batalha, esfregou, na cara de centenas de pessoas que o acompanharam, a grande ferida secular deixada como herança ao povo caboclo – sua miséria, sua luta pela vida. As dores nos olhos do povo periférico que viu o cortejo do Vicente passar ficarão para sempre na memória dos que seguiram aquele caminhão velho e vermelho do corpo de bombeiros de Irani, carregando Vicente pelas entranhas da maior realidade existente no Contestado caboclo – a miséria, o abandono, o esquecimento e a dor.
Vicente obrigou-nos a sentir o cheiro do verdadeiro Contestado, o cheiro da morte, o cheiro da fome, e nos permitiu ver o olhar de crianças caboclas emocionadas pelas suas ruas de brincadeiras de crianças, ou mesmo nas suas casinhas ou, ainda, nos seus barracos. Foi uma visita ao coração dolorido do Contestado, mostrando que o Contestado das estatísticas da fome e da pobreza existe de fato, assim como aquelas crianças que clamam por justiça e pelo direito à vida e a um futuro com dignidade, futuro negado aos seus antepassados. Vicente nos fez passar pelo centro da alma cabocla do Contestado. Vicente plantou suas últimas sementes. Seu enterro foi sua última lição como grande educador que sempre teve os pés manchados pelo solo ensanguentado do Contestado.
Na hora do seu sepultamento, dividindo com justiça a carneira dos seus pais, no Cemitério Caboclo do Sítio Histórico do Irani, as brumas cinzas e carregadas de águas que encobriam o sol no céu do Irani desabaram na forma de uma forte chuva e essa veio para germinar todas as sementes plantadas pelo semeador do Contestado – o velho sanfoneiro da causa cabocla seguia para a Corte Celeste.
Obrigado, Vicente Telles, meu amigo, por nos dar mais uma lição de vida no dia tua morte, por abrir nossos olhos, por nos fazer ver o que olhos míopes da politicalha nacional, como bem falavas, sempre se negaram a ver. Guardo teus olhares e teu sorriso comigo, como se seguíssemos nos encontrando, como todas as vezes que nos víamos na tua casa ou noutros lugares ao longo de tantos anos, ou quando lias meus livros e artigos sobre o Contestado e, sempre, tecias comentários diretos ou indiretos, mas sem, jamais, julgar e gerar um confronto de ideias entre nós, pois foste um cavalheiro, que respeitava minha forma de ver e fazer o Contestado, assim como sempre fiz contigo, pois nossas divergências e olhares sobre o mundo caboclo nunca nos separaram, aliás, sempre nos uniram, porque, como sempre ensinastes, a causa do Contestado precisa de aliados, cada um faz a sua parte, respeitando a do outro, edificando o grande edifício da luta e da resistência cabocla.
Neste sentido, sempre foste fonte de inspiração para mim e para tantos outros pesquisadores. Mesmo que alguns que tenham bebido da tua fonte tenham subtraído essa parte nas suas construções intelectuais, eu não, sempre te levei comigo nas minhas atividades e falas sobre o Contestado, pois foste como um pai que inspira um filho – sobre isso, creio que nunca duvidaste. Por isso nosso respeito fraternal. Orgulho perpétuo de Ti, meu amigo, seguimos daqui, caminhando lado a lado em colunas de batalhas que ainda existirão sobre o chão do Contestado, pois tu mostraste isso na tua última caminhada pelo solo do Irani, no dia 29 de dezembro – quando abriste as feridas inflamadas da herança maldita desta guerra secular.
Guardo comigo os momentos que vivemos no ano passado, quando estiveste conosco no Trombudo do Contestado, assim como havias estado com tua sanfona por todos os cantos possíveis do Contestado nas últimas décadas, no nosso derradeiro encontro, abrilhantaste, com Vicentinho e Nancy, a abertura da III Semana do Contestado, de Lebon Régis – o Coração do Contestado –, plantando lá, em vida, tuas últimas sementes para os que lutam pelo Contestado – como sempre, emocionaram a todos e todas.
Só as palavras de Vicente Telles poderiam fechar esse momento. Não ousaria fechar com minhas palavras, pois seria ousadia demais, depois de tantos anos de parceria e amizade:
No Irani um sanfoneiro sem plateia
Na oito baixos toca o “choro das véia”
Duas BRs que se cruzam por aqui
Formam a cruz do Contestado no chão do Irani
Obrigado, Vicente Telles. Seguimos, pois o Nosso Contestado segue sangrando e ouvindo o choro das véia. A gente se vê na Corte Celeste Cabocla, chegaremos com o Exército Encantado de São Sebastião, para darmos vivas a Ti!