“Se a religião retorna com força, não seria por que ela é consciente de uma forma de gozo que outros discursos sociais não são mais capazes de integrar?”, pergunta Vladimir Safatle, professor livre-docente do Departamento de filosofia da USP, em artigo publicado por Folha de S. Paulo, 12-01-2018.
Eis o artigo.
Não seria difícil reconhecer que uma das questões a assombrar as sociedades contemporâneas é: o que vem após a religião? Ou mesmo se é possível e desejável falar em um após a religião.
É inegável que o laicismo de nossas sociedade ocidentais é, na verdade, uma construção da ordem das ilusões. Deus está presente nas falas do presidente dos Estados Unidos, no nome do partido da primeira-ministra alemã, nos discursos dos infrequentáveis deputados brasileiros, entre tantos outros.
Mas não é apenas nessa dimensão explícita da intervenção política que encontramos Deus.
Não seria possível nem sequer pensar nossa psicologia, ou seja, nossas noções de personalidade, de interioridade, de unidade, identidade, responsabilidade, sem compreender o impacto das construções teológicas como o livre-arbítrio, a revelaçãoe o julgamento das minhas ações.
Não haveria nem sequer a noção de unidade da consciência sem que, antes, houvesse as construções calvinistas sobre a predestinação. Pois, sabendo Deus já de antemão se serei ou não salvo, só me resta agir como se já estivesse salvo, construindo uma unidade de conduta e autoinspeção que não pode mais ser minorada através do recurso a sacramentos como a confissão.
Ou seja, a religião está presente nos pontos mais recônditos da constituição moderna da individualidade.
Mesmo o caráter anticlerical da luta iluminista contra as superstições religiosas e pelo advento de uma história marcada pela teleologia do progresso não poderia ser pensável sem a secularização da noção teológica de providência.
Foi apenas a defesa da irredutibilidade da contingência no interior dos processos de desenvolvimento, sociais ou biológicos, que nos retirou, pela primeira vez, do horizonte estrito do quadro teológico.
Diante disso, as discussões a respeito da laicidade de nossas sociedades tocam, normalmente, pontos muito superficiais do problema. O verdadeiro problema não são apenas os crucifixos em repartições públicas ou o “Deus seja louvado” nas cédulas de dinheiro.
O problema diz respeito ao que nos tornamos depois de séculos de hegemonia religiosa e no que podemos nos tornar depois disso. Pois não teria sido exatamente quando ela deixou de estar explicitamente à frente que a religião ficou mais indestrutível, voltando constantemente à tona de forma, muitas vezes, inesperada?
No entanto livrar-se disso passa por uma operação mais complexa do que a simples redução da religião às formas da regressão social. Mesmo a crítica da estrutura teológico-política foi muitas vezes acusada de se sustentar em outras formas de construções teológicas, como o panteísmo.
De toda forma, seria fácil lembrar aqui o que, da experiência religiosa, é expressão do medo e da esperança. Dois afetos que, cada um a sua maneira, perpetuam estruturas de servidão. Mas – e esta não deixa de ser uma via explorada de forma reiterada pela filosofia do século 20 – seria melhor começar por se indagar o que, no interior dessa mesma experiência religiosa, sustenta-se pelo gozo.
Todo poder é uma promessa de gozo, e não poderia ser diferente com a experiência religiosa.
Hegel, por exemplo, colocou-se o problema sobre o após a religião. Ele compreendia que pensar tal questão era uma tarefa filosófica fundamental. Mas sua resposta não passava pela redução da religião à simples forma da regressão social. Na verdade, tratava-se de lembrar o que, na religião, era a forma inicial de algo que só poderia ser desenvolvido fora dela, como se ela germinasse o que precisaria desenvolver realmente apenas em um “após”.
Por exemplo, era a religião que produzia, pela primeira vez, as formas sociais da relação à incondicionalidade. Formas essas que acabariam por explodir o caráter representacional do próprio discurso religioso.
Nesse sentido, se a religião retorna com força, não seria por que ela é consciente de uma forma de gozo que outros discursos sociais não são mais capazes de integrar? Pois o entusiasmo não é apenas patologia, que o digam a arte e a política. Mas em um mundo no qual essas duas dimensões da experiência são reguladas pelos limites do possível, o convite para o retorno à religião aparecerá para alguns como irrecusável.
Fonte: IHU