Por Jorge Lescano.
Hábito: disposição duradoura adquirida
pela repetição freqüente de um ato; uso; costume.
Novo Dicionário Aurélio.
Eu sou afeiçoado a ler até os papéis rasgados das ruas
Miguel de Cervantes: Don Quixote
Hábito é enfiar o dedo no nariz,
a leitura é um trabalho intelectual.
Livro das cinzas e do vento
Sem pretensões de escrever uma tese acadêmica, uma vez que estas estão viciadas pelas normas do discurso universitário, das quais afortunadamente estou livre, gostaria de expor a minha visão do ato da leitura.
Atualmente conto mais de seis décadas de leituras anárquicas, isto é, livres de qualquer controle e direção a não ser o meu interesse e o meu gosto. Assim que fui alfabetizado descobri a leitura e o livro que se tornaram meus companheiros pela vida afora. Se escrita-leitura está condicionada pelo entorno social, não se pode negar que também o indivíduo leitor, com todas as suas particularidades, físicas inclusive, faz parte do processo que denominamos leitura e que vai muito além da decodificação de signos gráficos.
Através do texto dois sujeitos se defrontam. O autor, que também é um leitor, e o leitor-autor de novos e imprevistos significados. Duvido que exista leitura errada, no máximo poderá haver leitura deficiente, leitura que não atinge todo o conteúdo do texto.
Ler é como andar, como falar. Quando a criança começa a falar e não consegue pronunciar como os adultos, se diz que fala errado, grande injustiça! Quando anda feito um palmípede porque o tamanho do pé não permite a flexão e ainda estende os braços como asas para manter o equilíbrio, ninguém diz que anda errado. Todos reconhecem que anda segundo as suas possibilidades e até festejam cada nova conquista de terreno.
O meu campo de experimentação, por assim dizer, é o texto ficcional. A arte é de um modo geral um campo de experimentação. Nela podemos vivenciar idéias sentimentos e sensações de forma explícita sem correr qualquer risco. Interpretar “mal” uma situação ou um personagem literário não põe em risco a vida de ninguém, já ler deficientemente uma fórmula de química pode fazer a casa voar. A releitura do bom texto literário sempre acrescerá novas informações, interpretações e sentidos.
Confunde-se muitas vezes a quantidade com a qualidade. Um bom leitor é, para a maioria das pessoas, alguém que lêmuito (?), que possui vasta biblioteca, real ou virtual em tempos de internet. Creio que um grande leitor pode ser o leitor de um único livro durante toda a vida. Alguns exemplos literários podem ilustrar esta idéia.
No romance L’Étranger, de Albert Camus, traduzido como O estrangeiro (deveria se chamar O estranho: a obra trata do estranhamento do protagonista em relação a si mesmo, mas isto é tema para outra nota), Meusrault, seu protagonista, preso por haver matado um homem, encontra na cela uma folha de jornal na qual se narra a morte de um homem por sua mãe e irmã. Devo ter lido esta história milhares de vezes, diz. O caso o leva a refletir profundamente sobre a falta de sentido da vida e chega à conclusão de que bastaria viver um dia para ocupar o resto da vida com as lembranças. O próprio Camus deve ter pensado muito nisso, a notícia deu origem a sua peça dramática O mal entendido. Se Meusrault tivesse mais material de leitura talvez se distraísse e o seu pensamento poderia vagar sem rumo; nunca saberemos, pois a obra não nos dá qualquer pista a respeito.
Yannes, garimpeiro grego na Amazônia venezuelana, carrega como único pertence um exemplar da Odisséia, este é suficiente para preencher suas necessidades intelectuais. Isto acontece em Os passos perdidos, romance de Alejo Carpentier. O autor não dá informações sobre o resultado dessas leituras e garante que o personagem é real. Real também é o fato mencionado por Camus.
Pierre Menard, autor do Quixote, de Jorge Luis Borges, é obra exemplar sobre a leitura. O personagem, leitor de Cervantes e poeta simbolista, decide escrever (não reescrever) o Don Quixote. Borges ilustra a idéia de que o leitor pode (talvez deva) ser o verdadeiro autor da obra. A leitura, diz, é um trabalho mais demorado, mais intelectual que a escrita.
Costumo dividir a leitura em três estágios básicos: o informativo, no qual o texto revela seu conteúdo imediato, seu significado semântico; o estrutural ou crítico, onde o leitor lê o corpo do texto, não apenas o nível gramatical ou sintático, mas onde reconhece outros elementos, tais como a ação, tempo, lugar e personagem, elementos básicos de qualquer narração e sem os quais nada pode ser narrado; finalmente o nível criativo, aqui o leitor mudou a sua natureza, ele é co-autor do texto. Ler é recriar o texto. É lugar comum dizer que um livro sem leitura é letra morta. Nada mais verdadeiro. Cada leitor recria o texto com suas próprias experiências, projeta sobre a obra o seu repertório único, intransferível, neste sentido ele já está escrevendo, já é um escritor. Pierre Menard é o paradigma deste estágio.
Mais de uma vez vi andarilhos parando para ler uma folha de papel jogada na rua. (Não devia haver muitos na época de Cervantes.) O caso é intrigante: o que procura esse leitor? Creio que não seja informação. Provavelmente não se importou em verificar a data de publicação. Penso que está exercendo o famigerado hábito da leitura preconizado por editores, críticos, professores, livreiros, jornalistas, curadores de feiras de livros e eventos afins. Sim, uma vez superado o estágio de leitura com os lábios, surge o hábito de leitura, isto é, um reconhecimento compulsório do texto. Nos grandes centros urbanos é fácil verificar que lemos de forma impensada, contínua, quando andamos pela rua. Todo texto é reconhecido automaticamente, sem crítica e dificilmente fica registrado na memória. Isto é um hábito, será uma leitura?
Incentivar o hábito da leitura não será reforçar o hábito de consumo, substituir a qualidade pela quantidade?
Estas são observações avulsas de um autodidata sem qualquer repertório epistemológico, como o leitor atento pode perceber, mas que não se considera vítima do hábito da leitura.