Por Lia Vainer Schucman.
É novembro e, como de costume, as pessoas que dedicam a vida à luta antirracista são chamadas para eventos, palestras e celebrações para lembrar a consciência negra.
Eu tenho recusado convites para ir em instituições que não querem encarar o tema de frente. O motivo é simples: não aceito mais colaborar com a “politica do checklist”.
Mas, o que é a “politica do checklist”? Explico: chega novembro e a instituição cede um pequeno espaço – em um dia do mês (que não altere a agenda dos departamentos) – para pensar a temática das relações raciais, contanto que nos outros 364 dias do ano, a “normalidade” temática impere, olímpica e confortável.
É como uma escola aderir à lei 10.639 e mal se preocupar em informar seus professores e alunos sobre o tema.
Nesses eventos “checklist”, os acadêmicos que cuidam da burocracia agendam a mesa ou o simpósio sobre racismo em horários complicados para a comunidade acadêmica, nada nobres, quase como um “desconvite”. Não bastasse, ignoram a importância da presença de um representante negro – ou de especialistas – para “pensar” o evento e colaborar na produção dos roteiros e discussões.
Mas não é tão simples lidar com essas pressões da história. Profissionais negros estão em todas as áreas do conhecimento. Se você só pensa neles quando precisa falar sobre racismo, temos reiterado o fenômeno do “checklist”. É como institucionalizar as cotas, sem preparar a sociedade para recebê-las.
Muitos representantes dos movimentos antirracistas podem fazer uma lista muito mais completa do que esta arrolada acima. No entanto, o sentido global da distorção é esse. O checklist é o mais evidente sintoma daquilo que se pretende combater, a saber, falar sobre o tema, sem querer enfrentá-lo.
Alguns perguntam: “o que fazer?”. Ou: “eu sei que tenho privilégios, mas eu não tenho nada a ver com isto, é ‘estrutural’”.
Sim, é estrutural. O privilégio acontece mesmo que você não queira. Mas dizer que individualmente não há nada que se possa fazer caracteriza um gesto de covardia. É destituir qualquer protagonismo dos sujeitos, é considerá-los meras marionetes de uma vida já prescrita e desenhada, é aceitar a tese do assujeitamento sem o menor espírito crítico.
Dentro desta reflexão que se pretende colocar como uma perspectiva de ação, posso sugerir alguns procedimentos. Se você trabalha numa escola ou universidade e dispõe de alguma posição que possibilite ações concretas, comece pensando na contratação de professores negros. Se a escola é particular, cotas para alunos. E se você dispõe de lastro intelectual, aja sobre as narrativas, sobre as histórias que ali se contam, as imagens que se veiculam, as bonecas com que se brincam, as narrativas sobre as bonecas com que se brincam.
No mundo profissonal, há também muito espaço para se explorar como ação produtiva e inclusiva, sem precisar de favores do poder público: se você trabalha em uma empresa, por exemplo, já pensou sobre como ela pode lidar com a política de contratação? O RH poderia – para começar – inovar e mudar os quesitos de “boa aparência”(brancos). Poderia também questionar as possibilidades de ascensão destes trabalhadores na empresa.
Se você é professor universitário, já se perguntou quais alunos escolhe para serem seus bolsistas? Na seleção de mestrado/doutorado, será que você não usa um critério muito mais exigente para avaliar candidatos negros? Os erros de português dos sujeitos brancos são julgados tanto quanto os dos negros?
Pergunto: na sua vida cotidiana há mudanças neste sentido? Ou a vida de adulto repete aquela conhecida cena infantil em que na hora de chamar os colegas para comer a pizza em casa, vinham todos menos o colega negro? Essa cena é contada por quase todo negro que convive de fato com brancos: “sim eram meus amigos, mas na hora da festa não vinha o convite”.
Esta reflexão habita meu trabalho e minha vida. Mas a publico precisamente neste mês porque, depois de muitos anos na luta antirracista – e de reflexão sobre mudanças nas instituições em que fui dar as “palestras de novembro” – chego à conclusão de que, mesmo com as melhores das intenções, eu vinha colaborando com a “política do checklist”.
Concluo, portanto, com uma autocrítica e uma proposição: novembro é importante, mas não basta. Que tal pensar as atuações deste mês como um “irradiador” de políticas com mais efetividade, contribuindo com mudanças reais na distribuição dos recursos e no reconhecimento do outro?
Lia Vainer Schucman é Doutora em Psicologia Social pela Universidade de São Paulo (USP) (2012) realizou pesquisa de pós doutorado em Psicologia Social pela USP no Projeto de Pesquisa “Famílias Interraciais: estudo psicossocial das hierarquias raciais em dinâmicas familiares”. Tem experiência na área de Psicologia e relações raciais. Publicou recentemente o livro “Entre o encardido, o branco e o branquíssimo” branquitude hierarquia e poder na cidade de São Paulo”
Fonte: Justificando