Por Jacqueline Moraes Teixeira.
A inspiração pro título veio do Seminário: Quem tem medo dos antropólogo(a)s? Dilemas e desafios para a produção e práticas científicas em novos cenários políticos, que aconteceu na Anpocs 2017
Nos últimos dois dias tenho acompanhado com imensa preocupação as mobilizações que surgiram com o objetivo tentar impedir a realização do Seminário: “Os fins da democracia“, que acontecerá no Sesc Pompéia em São Paulo, entre os dia 07 e 09 de novembro, com a presença de Judith Butler, filósofa e professora da Universidade de Berkeley (EUA).
Meu objetivo com esse texto*, portanto, é tentar responder a algumas das afirmações que acompanhei em vídeos, em textos divulgados em importantes sites de notícias voltados para o público católico e evangélico, bem como em afirmações apresentadas no texto da petição que pede o cancelamento do Evento do Sesc.
Faço isso pra tentar abrir um diálogo, considerando tanto minha trajetória e pertencimento cristão, quanto minha formação e atuação como antropóloga, tentando encarar o desafio de pensar questões sobre religião cristã e relações de gênero. Após essa introdução, passo a discorrer sobre alguns pontos onde encaro algumas interpelações destes movimentos, oferecendo algumas respostas
1. Judith Butler criadora da ideologia de gênero
Essa afirmação aparece veiculada em inúmeros noticiários, blogs e vídeos. Acho super importante dizer que Butler não é a criadora do que vem sendo pejorativamente denominado de “ideologia de gênero“.
Os Estudos de Gênero começaram muito antes de Judith Butler nascer (ela nasceu em 1956), antes também de se usar a palavra gênero para se pensar uma identidade sexual (algo que ocorreu apenas por volta da década de 70).
2. Judith Butler formulou o “conceito de ideologia de gênero”?
“Ideologia de gênero” não é um conceito!
Dentre as áreas que reúnem pesquisas e teorias que falam sobre as relações sociais e diversidade ninguém utiliza “ideologia de gênero” como um conceito científico. Essa é de fato uma expressão usada apenas num âmbito mais político, por grupos contrários as produções teórico-científicas da área. Logo, dizer que Judith Butler produziu o conceito de “ideologia de gênero” é um grande equívoco.
3. “No livro “Problemas de gênero” Judith Butler criou o conceito de ideologia de gênero”.
Após esclarecer que esse conceito não existe, é importante dizer também que estudos e teorias voltados para se pensar a desigualdade entre mulheres e homens nos espaços público e privado datam do final do século XIX e inicio do século XX, foram escritos por autoras cujos textos tornaram-se fundamentais para a garantia do direito ao voto feminino, por exemplo.
Há alguns textos bem importantes e didáticos que podem ajudar a conhecer um pouco melhor como os Estudos de Gênero começaram. Faço a indicação de alguns deles por aqui:
- Gênero: a história de um conceito, de Adriana Piscitelli
- Gênero: uma categoria útil para se pensar análise histórica, de Joan Scott
4. “Em “Problemas de Gênero”, Judith,vadia! (acreditem, esse é o tom de um dos vídeo contrários à presença da filósofa no Brasil) diz que “homem não deve ser homem e que mulher não deve ser mulher”
O texto não diz nada disso!
Em “Problemas de Gênero” (1990), Butler apresenta uma análise filosófica sobre o modo como a palavra gênero (que como já disse, passou a ser usada internacionalmente pela área dos Estudos de Gênero por volta dos anos 70) como sinônimo de identidade.
A partir da análise de textos de filósofas como Simone de Beauvoir, e de teóricos da psicanálise, como Freud e Lacan, Butler tenta demonstrar o modo como a palavra gênero, inicialmente usada para se diferenciar da palavra sexo (que seria de denominação biológica), acabou se distanciando de seu objetivo inicial (que era representar a dimensão cultural da diversidade sexual).
Lanço mão desse resumo grosseiro pra tentar contextualizar um pouco o conceito de “performatividade de gênero” (esse sim, é um conceito da Butler).
Ela introduz esse conceito pra dizer que nenhum fator biológico dá conta da produção das identidades de gênero, que são apreendidas no cotidiano por mecanismos de engendramento, ou pra dizer de modo mais simples, de repetição.
Esse ponto me parece fundamental de se compreender, uma vez que grande parte da discussão levantada pelos movimentos que se autodenominam contrários ao desenvolvimento de projetos educacionais voltados para o que chamam pejorativamente de “ideologia de gênero” parte desse suposto.
No texto da Emenda que tramitou durante o ano de 2015 na Câmara dos vereadores da cidade de Campinas, SP, a exigência pela retirada de referências a gênero do Plano Municipal de Educação se fundamentava nos possíveis traumas psicológicos que crianças poderiam desenvolver ao aprenderem nas escolas algo diferente do que haviam aprendido em seus contextos familiares. Assim, a discussão levantada pelo documento não dizia respeito a dimensão biológica mas sim, a legitimidade de quem deve ensinar o gênero, se deve ser a família ou a escola.
5. “Dizer que vai falar sobre Democracia é uma estratégia para difundir a ideologia de gênero sem que você perceba” (outra fala do vídeo contrário à vinda de Butler)
Apesar de ser internacionalmente reconhecida por sua contribuição aos Estudos de Gênero, pensar a democracia na contemporaneidade com foco em contextos onde há crise generalizada e guerra civil é algo que Butler vem fazendo há pelo dez anos, ou mais. Disso, emergem textos importantes sobre o conflito na Palestina, no Egito, sobre o modo como a condição de refugiados tensiona as categorias do direito, e sobre manifestações e ocupações de ruas e outros espaços por todo mundo. Sua produção acaba sendo importante, permitindo com que Butler divida o cenário internacional das discussões sobre política, ética e esfera pública com autores como Habermas, Charles Taylor e mesmo, como Hannah Arendt.
Na página Institucional da Universidade de Berkeley é possível encontrar a lista de suas principais produções bibliográficas. Assim, o título do seminário “Os fins da democracia” está em pleno acordo com sua proposta e palestrantes convidados.
Por fim
Acredito que temos que mudar a estratégia pública de visibilidade das agendas civis. Proibir, censurar fere nossos direitos democráticos mais substanciais. Espaços de debate e divulgação acadêmica devem continuar existindo. A luta não deve ser por torná-los extintos, mas sim, por torná-los acessíveis
Não tenha medo de Judith Butler…
* Texto originalmente publicado como post no Facebook e reproduzido aqui com autorização da autora.
Fonte: Casa da mãe Joanna