Eu sou uma acadêmica e meu trabalho consiste em levantar hipóteses. Então lá vai uma pra vocês: publicitários não são burros, ainda que alguns ajam como imbecis. Em outras palavras, pra ficar mais bonito: não há ingenuidade numa área cujo trabalho das pessoas é estar ligado nos acontecimentos. Este é um texto escrito sobre a campanha racista do papel higiênico que se apropriou do slogan Black is Beautiful, mas serve para outras que já vieram e ainda estão por vir.
O que não falta hoje em dia é apropriação de demandas sociais, sobretudo do feminismo, movimento negro e LGBT+. É empoderado, lacrador e bafônico pra onde a gente olha, de capa de revista de rótulo de creme de cabelo, passando pelas pessoas que estão sendo convidades para estrelar campanhas publicitárias.
Não há ingenuidade numa área cujo trabalho das pessoas é estar ligado nos acontecimentos
Ou seja, não é de hoje e não são poucas agências que estão de olho nos debates dos movimentos sociais e tentando obter algum ganho com isso – seja por meio da apropriação do vocabulário a uma forma de reposicionar a marcar entre os consumidores, mostrando o quanto a marca é bacana. Em 2015 uma loja de cosméticos causou frisson ao colocar casais homoafetivos na propaganda de Dia dos Namorados. A marca foi ameaçada de boicote pelos conservadores e incensada por progressistas. Tinha até um meme de um rapaz com uma fantasia no carnaval feito de sacolinhas da marca.
Outro caso emblemático foi uma marca de cerveja que em 2015 fez uma campanha infeliz incentivando a cultura do estupro. Fotos dos cartazes com os dizeres “Esqueci o não em casa” e “Topo sem saber a pergunta” com intervenção de militantes feministas viralizaram, fazendo com que a empresa recuasse e não apenas retirando o conteúdo do ar, como reformulando a campanha em torno da mensagem “carnaval com respeito”. Este ano a mesma marca assumiu o passado machista e lançou uma campanha com ilustradoras feministas.
Se por um lado os movimentos sociais têm contribuído para sensibilizar algumas marcas e agências para a formulação de campanhas mais inclusivas, de outro há quem se beneficie de insistir na manutenção de preconceitos e/ou estereótipos para atrair uma parcela de potenciais consumidores que não se identificam ou rechaçam pautas progressistas. Foi o caso de uma marca de móveis que, ao ser criticada nas redes sociais por conta de uma campanha machista, optou pela ironia. A marca respondeu em sua página no Facebook que se “no século 21 nem cerveja se vende mais objetificando mulheres” caberia a eles “manter a tradição”.
Há quem se beneficie com a manutenção de estereótipos para atrair consumidores
Esta mesma marca voltou a obter visibilidade ao oferecer estágio a um rapaz demitido após fazer postagens machistas em seu local de trabalho meses depois da primeira “polêmica” e voltou aos trendtopics quando ofereceu outro estágio a uma jovem branca que alegou ter sido agredida por usar turbante.
Portanto me parece bastante evidente perceber que se há um público ativista bastante atuante nas redes sociais que consegue obter atenção das marcas para que estas reformulem suas campanhas quando criticadas (ou utilizem vocabulário militante para se aproximar de tais públicos), é bastante plausível que existam empresas de olho em uma fatia expressiva de público que pode ser seduzida justamente batendo de frente com as demandas dos movimentos sociais.
Isso já está acontecendo na política institucional, área onde os profissionais de marketing estão presentes há algum tempo e se tornam cada vez mais importantes. Hoje o país vive um momento de polarização política que se manifesta com intensidade nas redes sociais. Grupos de jovens neoconservadores têm tido bastante sucesso em mobilizar pessoas em torno de suas causas, como vimos recentemente com relação à censura em exposições artísticas. Portanto, é preciso admitir que em campanhas machistas, homofóbicas ou racistas – como a do papel higiênico que se apropriou de forma ofensiva de um slogan tradicional do movimento negro – há algo mais complexo a ser considerado do que a simples “falta de noção” dos profissionais envolvidos na campanha.
Sim, o racismo no Brasil, tal como o machismo e a discriminação das pessoas LGBT+, é algo tão internalizado que é possível que equívocos ocorram, sobretudo numa área dominada pessoas que acumulam privilégios (homens brancos cisgêneros de classe média alta). Também é possível que esses problemas sejam apontados e tenham sua importância subestimada. Porém, diante da quantidade de informações disponíveis e da atenção cada vez maior que as marcas e agências demonstram ter em relação aos debates sobre raça, gênero e afins, está cada vez mais difícil alegar inocência nesses processos.
É preciso admitir que em campanhas machistas, homofóbicas ou racistas há algo mais do que “falta de noção”
É possível que algumas “polêmicas” estejam sendo produzidas justamente por seu potencial de viralizar – seja pela crítica daqueles que se sentem ofendidos ou pela defesa daqueles que reduzem essas questões a mimimi ou vitimismo (o que pode ser visto neste comercial do Conar chamado Feijoada). Portanto, antes de atribuir esses episódios lamentáveis à falta de noção dos profissionais de publicidade e propaganda, é necessário estarmos atentos para a frequência com que esses “erros” ocorrem – e o quanto repercutem na visibilidade das marcas.
Chega de conceder o benefício da dúvida a quem sempre nos negou. Parafraseando a poeta Mel Duarte, no que depender da minha geração, parça, não mais passarão impunes.
Imagem destacada: Bon Bon Vie
Fonte: Casa da mãe Joanna.