A “abençoada” despolítica da fome

Por Gisele Pereira.

Não é novidade que o prefeito “não político” da cidade de São Paulo é afeito a fazer de sua gestão um verdadeiro show business. Com lições trazidas de seu universo empresarial, aplica como ninguém a ideia da propaganda como alma do negócio. Se, como ele mesmo afirma não ser um político, também não se entende como o responsável pela administração da coisa pública, mas faz dela um negócio rentável para seus pares do empresariado.

Antes de se projetar como “trabalhador” para conquistar a prefeitura da cidade de São Paulo, João Doria comandava um reality show empresarial, “O Aprendiz”. Após uma das provas e com  arrogância própria de quem está habituado ao comando, o então apresentador questionou os caminhos percorridos pela equipe derrotada ao afirmar reiteradamente que o pobre, o faminto, o miserável, não tem hábito alimentar e deve dar graças a Deus se tiver o que  comer.

Agora, na condição de gestor da cidade, sua visão a respeito de quem vive em situação de pobreza parece ser a mesma. Com a improvisação típica de quem comanda um espetáculo midiático, Doria apareceu a petiscar um granulado que apresentava como a solução, a uma só vez, do problema da fome e do desperdício de alimentos na cidade. O recipiente estampava a imagem de Nossa Senhora Aparecida.

O granulado, depois substituído pela farinata, fere a dignidade humana e o direito a uma alimentação adequada, como afirmou o presidente do Conselho Federal de Nutrição. É, portanto, desumanizador. Não à toa recebeu o apelido de ração humana.

Além das inumeráveis críticas ao caráter desumanizante do granulado, recaem sobre ele uma série de suspeitas a respeito de sua  qualidade e segurança alimentar, sem falar nas dúvidas que rondam a plataforma Sinergia, desde a sua capacidade de produzir a tal farinata até a existência real de uma fábrica, uma vez que o endereço do CNPJ é de uma residência.

Não há dúvidas, contudo, de que a própria indústria alimentícia será supernutrida com este programa. A exemplo dos medicamentos perto do prazo de validade “doados” à prefeitura e que hoje se acumulam nos postos de saúde e que significaram uma economia gigantesca à indústria farmacêutica com seu descarte, agora a indústria alimentícia receberá uma série de incentivos e investimentos em tecnologia para destinar alimentos que, pelo prazo aproximado da validade, não poderiam ser vendidos e deveriam ser incinerados, em vez de transformados em um granulado ou farinha ao consumo de indivíduos em situação de rua e alunos das escolas públicas municipais.

Uma verdadeira (des) política da fome que reitera sua visão do “pobre” como uma categoria em si mesma, natural, isolada das condições materiais que a produz e não como fruto de um sistema econômico absolutamente injusto. A fome não é resultante da escassez de produção de alimentos ou do desperdício, mas da necessidade do sistema de manter indivíduos em condições miseráveis como um gigantesco exército de reserva. A naturalização da pobreza serve ainda para alimentar uma visão estigmatizante e discriminatória de quem vive nesta situação.

Comer não é um ato puramente mecânico, desprovido de questões psicológicas, sociais e culturais. Ao contrário. É profundamente arraigado em nossa identidade e condição humana. Comer é um ato de prazer, de socialização e também um ato político.

O próprio Doria, no afã de congregar com seus aliados, ofereceu a eles um jantar em sua residência, cujo menu, sem dúvida, não incluía granulado ou multimisturas. Imaginemos a cena de políticos a receber cada qual seus potes abençoados de granulado e saboreando-os entre uma conversa e outra.

No cristianismo, a comida, especialmente sua partilha, é da mais alta importância e significado, tanto que na liturgia católica o momento auge é a comunhão, que celebra o momento no qual Jesus comeu e bebeu com seus amigos e pediu-lhes que toda vez que comessem do pão e tomassem do vinho, lembrassem de seu corpo e seu sangue, entregues em sacrifício em uma luta por libertação. Ou seja, a comunhão é a celebração por meio da comida do projeto de Cristo e sua continuidade por meio de nossos atos.

Em uma canção católica muito forte e emocionante se diz que “no banquete das festas de uns poucos, só rico se sentou, nosso Deus fica ao lado dos pobres, colhendo o que sobrou…”

Estar ao lado dos pobres não é manter a sua condição, mas lutar para que ela não mais exista. É por isso que Cristo condenou de maneira tão contundente a riqueza e a opressão dos mais vulneráveis.

Por isso, é ainda mais lamentável que o arcebispo de São Paulo, Dom Odilo Scherer, tenha se sentado à mesa com o prefeito para comungar de sua visão a respeito da pobreza e daquilo que “merecem”  os pobres.  Em entrevista ao telejornal SPTV, da Rede Globo, na qual defende o programa em nome dos famintos, o arcebispo disse esperar que “não se politize a questão da fome.” Mais do que apoiar, Dom Odilo dá sua benção e proteção à “despolítica” de Doria.

A fome é uma questão política, além de econômica e social. Não um destino imposto por um Deus excludente. Não é este Deus que celebramos na eucaristia, mas o Cristo encarnado que se colocou contrário ao domínio político, econômico e religioso.

Abençoar a sujeição dos pobres à políticas dessa natureza é inverter a máxima da Teologia da Libertação. O cristianismo trata de uma igreja dos pobres, e não de uma igreja que se acha possuidora dos desejos, vontades e hábitos de quem vive em situação de pobreza.

Em outro trecho, a canção citada acima nos lembra que Jesus é um pão de igualdade e que “comungar é tornar-se um perigo, viemos para incomodar”. E assim o seremos, pois comungamos do projeto de Cristo pela libertação humana dos sistemas de exploração e dominação, mesmo aqueles construídos e mantidos supostamente em seu nome.

Fonte: CartaCapital

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