Por Jefferson Pinheiro.
A pedagogia de emergência foi criada em 2006 por Bernd Ruf, professor alemão que foi ao Líbano em meio à batalha entre Israel e o Hezbollah para acompanhar o repatriamento de 21 jovens libaneses. O objetivo inicial da pedagogia de emergência é atuar em situações de guerra e catástrofes naturais atendendo crianças feridas emocionalmente a recuperem a confiança nelas mesmas, no outro e no mundo. Mas o trabalho também se aplica à realidade cotidiana de países afetados por grave crise social. “Embora o Brasil não viva uma guerra declarada, milhões de crianças enfrentam diariamente todo tipo de abuso e lidam com as terríveis consequências de uma violência urbana que mata mais que o conflito sírio (a cada nove minutos, uma pessoa é assassinada no país, de acordo com recente estudo do Fórum Brasileiro de Segurança Pública)”, diz o site da organização.
Quando a Brigada Militar mobilizou um pequeno exército e montou uma operação de guerra para despejaras 70 famílias da Ocupação Lanceiros Negros, no Centro Histórico de Porto Alegre, em junho, um grupo de educadoras que atuam com a Pedagogia Waldorf ligou para São Paulo à procura de Reinaldo Nascimento, Paulo Vicente e seus colegas da Associação da Pedagogia de Emergência no Brasil. Queriam ajuda para trabalhar com as crianças que foram expulsas de casa sob bombas de gás e que poderiam ficar traumatizadas por toda a vida.
Reinaldo atendeu ao pedido de vir encontrar as crianças da Lanceiros, mas não conseguiu vê-las porque estavam acolhidas temporariamente em outra ocupação, a Mulheres Mirabal, e superprotegidas no primeiro momento após o despejo, conta Liese Serpa, uma das responsáveis por trazê-lo até a cidade. Mas o terapeuta social e educador físico aproveitou a viagem para realizar oficinas com professores de escolas públicas e privadas na sede da Escola Porto Alegre (EPA), que atende pessoas em situação de rua. Ali surgiu a proposta de fazer na capital gaúcha um início de formação nos conceitos e práticas da pedagogia que tem ajudado crianças em sofrimento por todo o mundo, e que tem uma essência muito simples, baseada em arte e brincadeiras.
De forma coletiva e colaborativa os educadores locais organizaram o I Seminário de Pedagogia de Emergência em Porto Alegre, no mês de setembro. Rosele Guimarães, professora da Escola Municipal de Educação Infantil Pica-Pau Amarelo, participou dos dois encontros: “Fiquei muito surpresa com a abordagem da pedagogia de emergência. Senti ali uma possibilidade de encontrar uma nova forma de interagir com as crianças no cotidiano das escolas. Já comecei a aplicar algumas canções e jogos corporais e ver o efeito na concentração dos meus alunos. As atividades realmente respondem ao que se propõem de chamar as crianças para trabalharem com as emoções, com a unidade de grupo, com a afetividade de uma forma lúdica e que dá conta do interesse e das necessidades delas.”
Durante o seminário, em setembro, conversamos rapidamente com Reinaldo Nascimento e Paulo Vicente sobre a proposta do trabalho que estão desenvolvendo no país:
Sul21: O que é a pedagogia de emergência?
Paulo: A pedagogia de emergência procura contribuir para a criança que sofreu algo agudo e provocou uma desestabilização orgânica. A pedagogia entra neste momento com atividades básicas para ajudar a criança com as próprias forças que estão nela, no organismo dela, a dissolver os quadros de sintomas, evitando patologias.
Sul21: Em que momento surge e onde já foi aplicada?
Reinaldo: A pedagogia de emergência surgiu em 2006, durante uma guerra entre Líbano e Israel. Num evento de juventude que acontecia na Alemanha havia jovens do Líbano e de outros dezesseis países. Mas com a guerra, esses jovens libaneses não puderam voltar. Depois de algumas semanas se tomou a decisão de levá-los para casa. Quando se chegou no Líbano, o professor Bernd percebeu que era necessário fazer alguma coisa rápido por aquelas crianças que estavam num contexto de catástrofe. Elas estavam muito machucadas, mas não era só no físico, estavam machucadas de alma, uma coisa muito mais profunda. Você não via o sangue escorrendo nos braços, mas via que animicamente estavam muito destruídas. E ele (Bernd) dizia que se não se fizesse algo por aquelas crianças o mais rápido possível, talvez a única coisa que aconteceria no futuro, se tivessem um futuro, era fazerem com os outros aquilo que estavam fazendo com elas.
Então ele voltou para a Alemanha e montou o que chamou de time de pedagogia de emergência, foi para o Líbano novamente e começou a trabalhar com estas crianças. A partir desta ação, a pedagogia de emergência já fez mais de 60 intervenções. Foi também à Faixa de Gaza, Filipinas, Japão, Indonésia, China, Haiti, Quirguistão, Equador, Quênia, Nepal, Curdistão, Iraque… Agora estamos pensando na possibilidade de ir para o México. Temos um time que foi para Paris, Londres e Bruxelas por causa dos ataques terroristas. Tem um grupo que foi para a Itália, depois do terremoto. E hoje temos vários times regionais. Temos na Espanha, Suíça, Colômbia, Chile, Argentina…
No Brasil há um time muito forte, parece que já atendemos indiretamente, trabalhando com os educadores, mais de 3 milhões de pessoas. A pedagogia de emergência chegou aqui em 2011, quando teve aquela enchente em Nova Friburgo/RJ. O pessoal ligou para a Alemanha, só que logo em seguida aconteceu o tsunami no Japão, que foi muito catastrófico. Então o time resolveu ir para lá primeiro antes de vir para o Brasil. Só que aqui chegamos em forma de seminário. Depois, vimos que tinha tudo a ver com o Brasil porque o país vive uma situação de pedagogia de emergência. Aqui existe esta situação aguda, mas que se não é cuidada vira crônica. Um sintoma de tristeza se a gente não cuidar pode virar depressão. Aquela criança que está com medo porque a casa desabou e ela perdeu os pais, se a gente não cuida dela vai ter síndrome do pânico.
O time internacional fica monitorando o que está acontecendo no mundo. Se acontece alguma catástrofe, vemos se temos parceiros naquele local e se ligam pra gente. Se fazem contato, o pessoal da Alemanha aciona o time internacional, que são mais ou menos 350 voluntários, e a equipe é formada para ir. Todo o trabalho é voluntário.
Sul21: Como a pedagogia de emergência pode contribuir com as escolas, em especial as de periferia, que muitas vezes vivem sob conflitos?
Paulo: Uma catástrofe é localizada no tempo e no espaço. A partir desta data a gente percebe que a pedagogia de emergência vai fazer algum efeito (se aplicada) em oito semanas mais ou menos. Porque a partir desse tempo em que um evento agudo provocou vários sintomas neste organismo humano, estes sintomas começam a caminhar para um processo de patologia. Então, já não é uma atuação de pedagogia de emergência, mas um tipo de currículo de atividades voltadas para o que a gente chama de terceira fase dessas feridas anímicas, que agora começam a gerar outros efeitos psíquicos e físicos nesta criança.
No Brasil, encontramos muito nas instituições crianças nesta terceira fase ou ainda numa fase mais complexa, que é quando a criança que se sentiu ferida, que teve aquele trauma lá no começo, numa quarta fase, que pode levar alguns anos, ela vai ser o agressor. Então, no momento da crise ela é a vítima, mas na quarta fase é o agressor. O agressor do ambiente externo ou do seu próprio ambiente interno.
A pedagogia de emergência oferece ferramentas, posturas, atividades que contribuem para o profissional, para esta pessoa que procura ver a criança com um outro olhar e quer fazer alguma coisa para auxiliar.
Sul21: No que consiste a intervenção, quais são as principais ações e práticas?
Paulo: A pedagogia de emergência vem dos estudos de uma antropologia que observa a criança a partir de uma perspectiva orgânica, física, psíquica e espiritual. As bases de atuação são as da Pedagogia Waldorf. É como se fosse uma Pedagogia Waldorf bem concentrada para auxiliar esta criança.
Sul21: Ela é pensada para ser trabalhada como atividade extracurricular ou pode ser implementada no currículo regular?
Reinaldo: A pedagogia de emergência foi pensada para a situação de guerra, de catástrofe humana e catástrofe natural. Então, aconteceu um evento traumático, o time chega para que esta criança, por conta deste evento, não fique doente. Porque é normal ela se assustar, ter medo, fazer xixi na cama, fazer cocô, ter uma regressão. Crianças com 9 anos começam a chupar o dedo, não conseguem mais se concentrar na escola porque estão muito assutadas e agitadas. Na pedagogia de emergência, a gente tenta, com as próprias forças da criança, fazer com que estes sintomas diminuam.
Nas escolas brasileiras, muitas crianças já estão traumatizadas. Por exemplo, quando a gente descobre que uma criança está sendo abusada sexualmente em casa ou quando sofre violência doméstica, normalmente a gente não descobre no segundo ou terceiro dias, nem no primeiro mês. Às vezes se descobre depois de anos. E muitas vezes não se percebe isso na escola. A gente observa que ela ficou mais quieta, que está mais agitada, que está fazendo mais bagunça, mas muitas vezes os educadores não entendem que é uma reação normal àquilo que está acontecendo em outro lugar e que não é normal: abuso, violência, abandono.
A pedagogia de emergência trabalha principalmente com os educadores que estão em escolas públicas, mas também nas particulares, com a ideia da pedagogia do trauma. Hoje eu sei que tenho alguns alunos na minha sala de aula que estão traumatizados, que estão realmente doentes por causa daquilo que aconteceu. Então, o educador sabendo que isso é trauma e não frescura, que isso é um problema sério e não uma bagunça do aluno, ele pode pensar: “O que posso fazer para ajudar esse aluno?” Muitas vezes trazemos conceitos de como transformar esta escola num local seguro, já que a casa, o ambiente onde ele está não é mais seguro. Falamos muito que ritmo cura, beleza cura. As relações entre educadores, professores e colaboradores nesta escola são muito importantes e curativas porque se a gente pergunta para o professor como é o Joãozinho, ele vai descrever o aluno de um jeito, mas se pergunta para o porteiro como ele vê esta criança, talvez o porteiro veja diferente, porque a relação é outra.
Nós trabalhamos muito em como começar a aula, como terminar a aula, como seria o pensar da aula, o sentir, o agir, o fazer da aula. Aqui no seminário as pessoas falam o tempo todo: “Nossa! É mesmo?” Elas ficam assim: “Putz! Se eu fizer isso pode dar certo, então?”. Tenta! O Paulo sempre fala: “Pesquise. Pense. Veja como você se sente quando faz estas atividades”. Depois, você vai levando quando se sentir seguro.
Sul21: A pedagogia de emergência tem alguma atenção especial para o educador? No Rio Grande do Sul os professores estão há meses recebendo salários parcelados. Muitos dizem que estão sem condições de pagar moradia, de comprar alimento, algumas vezes sem ter a passagem de ônibus para ir à escola. Esta pessoa que deveria ajudar as crianças em situação de trauma também se encontra desestruturada, desesperada muitas vezes. Como vocês veem esta realidade?
Paulo: São duas coisas grandes que se misturam. A primeira é: qual é a vocação que este adulto tem em relação à atividade com a criança? Qual a relação que ele tem com esta vocação? Se relacionar com a criança, ativar a força vital da criança é uma grande tarefa. Outra grande tarefa é como eu faço para sobreviver no mundo, cujo o sistema é capitalista e tenho que pagar a luz, comprar alimento, pagar o transporte… A atividade com a criança é sagrada e precisa acontecer independente de dinheiro ou não. A pedagogia de emergência atua em situações de catástrofe. Você não tem sala, não tem lousa, tem lá folha de bananeira para criar um espaço. Então a atuação com a criança vai se resolver, mesmo eu não ganhando nada com isso, porque é um trabalho voluntário. Agora, se a falta do recurso impede o meu encontro com a criança, esta tarefa grande não acontece. Isso é um problema.
A questão social e trabalhista do professor, no Brasil e em qualquer outro lugar, precisa ser vista com seriedade. Impedir que um adulto com vocação se encontre com a criança e faça o seu trabalho porque a questão da subsistência não acontece é uma catástrofe provocada pelo homem. Tem que ser revisto.
Sul21: O professor, responsável por levar o auxílio, também precisa de ajuda?
Paulo: Faz parte da nossa pauta de trabalho, de intervenção e nas formações abordar o assunto de como fortalecer o educador nesses recursos internos para que ele esteja bem e atue com as crianças.
Reinaldo: A gente vê muitas coisas nestas intervenções pelo mundo afora, mas sabemos que o educador brasileiro enxerga e ouve coisas que também não são normais: crianças que presenciam assassinatos várias vezes por ano levam isso para a escola porque acham que é um lugar seguro para poder falar, mas muitas vezes os professores ficam doentes por saberem que não podem fazer muito por esse aluno lá fora. Na sala de aula ele faz aquilo que pode, mas às vezes falta ainda alguma coisa. Principalmente porque também está doente já que não chega aquilo que ele precisa para trabalhar bem. Porque é uma coisa física, o professor precisa comer, precisa dormir, e se o salário dele chega fragmentado, a gente sabe que falta alguma coisa pra ele ter higiene psíquica. A gente fala que passear é importante, ir ao cinema é importante, mas como vai fazer isso se ele não tem esse recurso?
O pior trauma é causado pela pessoa que deveria te proteger. Então, se você é professor deveria ter alguém te protegendo para que você tivesse todos os recursos necessários para fazer o trabalho sagrado que é cuidar da criança. Mas se você não recebe isso e ainda tem que pensar nessa criança o tempo inteiro… Quando a máscara cai no avião você coloca em si primeiro para depois colocar na criança, mas se esta máscara não está caindo nem pra você, como é que vai cuidar dessa criança se você nem tem esse oxigênio? Esta é uma questão muito séria.
Sul21: Como vocês se sentem fazendo este trabalho que faz a diferença na recuperação de crianças que poderiam carregar um trauma pela vida toda?
Paulo: Eu tenho dois sentimentos em relação a esta tarefa. Uma é quando estou com a criança e ela está desvitalizada, enfraquecida que você vê a pele dela branca, olheiras, que eu faço uma atividade e ela se recupera, que os olhos se enchem de vida, então eu também me sinto abastecido de força vital. Outra é quando eu encontro com o adulto que se pergunta: “O que eu posso fazer?” E quando a gente partilha e troca ideias e o adulto fala assim: “Puxa, faz sentido. Eu vou fazer isso”. Isso também me preenche de vida. Eu não posso deixar de fazer isso.
Reinaldo: Adoro ser educador, é aquilo que quero ser e nunca pensei em fazer outra coisa. Me sinto muito privilegiado quando com coisas muito simples você pode ajudar uma criança a não ficar doente, porque aquilo que ela está vendo realmente não deveria acontecer, mas ocorre porque é a realidade do mundo… O que nunca deveria acontecer é esta criança não ter ajuda, não ter uma pessoa ali para cuidar dela. Nós temos conseguido fazer isso com a pedagogia de emergência, que é barata, a gente consegue chegar e com pouco fazer muito. Esta frase me acompanha há muito tempo: solidariedade não é dar aquilo que você não precisa, é compartilhar aquilo que você tem de melhor. Eu gosto do que faço, então quando vou (atuar em diferentes países) ofereço isso com toda a minha força. Às vezes, a gente volta sem ela depois, com dor de cabeça, hernia de disco, mas a gente se cuida. Para mim isso é o mais gratificante, mas também estar com outros educadores. Se num seminário aqui em Porto Alegre, mais de 100 pessoas se inscrevem para esse tema, é sinal de que tem alguma coisa de emergência dentro das escolas.
Fonte: Sul21