Por Jules Montagne.
É tarde quando chegamos a Inhamízua, na periferia da cidade.
Barracas vendem pés de galinha fritos e bananas-da-terra cozidas. Muitos homens e mulheres se reúnem em um bar improvisado, coberto por uma placa de aço ondulado. Estão bem-humorados. O som das risadas se eleva sobre o barulho dos caminhões que trafegam pelas redondezas.
A luz do posto de gasolina do outro lado da estrada ilumina a cena. Algumas das mulheres estão sentadas em cadeiras brancas de plástico, com seus bebês no colo. É uma cena típica, com pessoas sentadas sob coqueiros ouvindo música no ritmo marrabenta, que sai de um velho alto-falante.
Luísa e eu andamos por trás do bar, pisando em barro seco e passando por cacos de vidro e preservativos usados. Estamos nas cabanas agora. São 80 meticais por cinco minutos – aproximadamente R$ 4. Uma garrafa de cerveja nesta cidade custa 55 meticais.
Em Beira, assim como em todo lugar, o sexo está à venda – e aqui há uma grande chance de o HIV ser parte da transação. Caminhoneiros passam pela cidade por causa do corredor comercial que se estende até a fronteira leste do Zimbábue. O fim da jornada é esta cidade portuária moçambicana onde a expectativa de vida é de menos de 50 anos e os índices de HIV estão entre os mais altos do mundo. Quando eles vão embora, esse legado frequentemente vai com eles.
Um a cada dez adultos em Moçambique é HIV positivo, tornando a prevalência do vírus no país a oitava mais alta do mundo. O governo fez algum progresso no controle da epidemia nos últimos anos, mas chegar às pessoas marginalizadas no corredor de Beira continua sendo difícil.
Como alcançar uma população que está constantemente em movimento? Uma população que tem medo da intimidação policial ou de ser descoberta por amigos e parentes? Pessoas que têm pouco a ganhar se encontrando com você, e muito a perder. Para chegar a e elas, é preciso ter uma estratégia inovadora.
Continuamos andando Luísa, eu e as outras mulheres, noite adentro. Os pontos quentes, elas dizem, são todos iguais – bares improvisados com cadeiras de plástico, música alta, carcaças de caminhões, pilhas de pneus velhos, garrafas de cerveja quebrada e, sempre, cabanas atrás.
Luísa é uma educadora comunitária – parte da equipe que presta aconselhamento médico à comunidade local –, mas vai retornar às ruas como profissional do sexo quando estiver sem dinheiro.
E sua história é a história deste projeto.
Aqui em Beira, descobri um grupo que ajuda pessoas a se ajudarem – mesmo com Moçambique ameaçando voltar ao caos político do passado. Em meio à discórdia, o projeto está enfrentando a ideia de que é inevitável contrair HIV no corredor comercial, ao transformar profissionais do sexo em educadoras comunitárias algumas noites na semana, às vezes mais. Junto com conselheiros, elas oferecem orientações de sexo seguro, aconselhamento de planejamento familiar e testes rápidos de HIV. Distribuem preservativos e lubrificantes. E, o mais importante, conectam cerca de 3.800 trabalhadores do sexo e 4.500 caminhoneiros de longa distância a clínicas de saúde que, do contrário, eles provavelmente jamais visitariam.
Esse é o Projeto Corredor, estabelecido por Médicos Sem Fronteiras (MSF) em janeiro de 2014. Apesar dos riscos, ele está atingindo os inalcançáveis.
A história da epidemia de HIV em Moçambique faz parte da história da violência no país. Depois de uma década de luta armada, Moçambique se tornou independente de Portugal em junho de 1975. Centenas de milhares de portugueses fugiram, incluindo muitos que trabalhavam no sistema de saúde. No dia da independência, restavam apenas 80 médicos.
A Frente de Libertação de Moçambique (Frelimo) chegou ao poder, mas herdou um país quebrado, com uma infraestrutura frágil e poucos profissionais qualificados. Depois de dois anos, eclodiu uma guerra civil brutal, com a Frelimo sendo violentamente combatida pela Resistência Nacional Moçambicana (Renamo), movimento rebelde armado e temido. Nos 15 anos seguintes, mais de 1 milhão de pessoas morreram e 10% da população do país se tornou refugiada.
Enquanto o HIV se alastrava pelos países vizinhos, Moçambique estava protegido pelo pequeno ingresso de pessoas no país.
Um acordo de paz foi alcançado em 1992 e, com ajuda internacional, o governo se concentrou em melhorar os principais corredores de transporte, a fim de recuperar o crescimento econômico. Isso incluía o corredor de Beira, que se estende por 300 quilômetros do oceano Índico à fronteira leste do Zimbábue. Antes prejudicadas pela infraestrutura dilapidada, falta de profissionais e ataques de criminosos, redes de transporte partindo do porto de Beira, que foi reformado, começaram a se estender a países vizinhos.
Moçambique estava aberto para negócios.
O desenvolvimento, porém, teve um custo. Quando as populações são mais móveis, o mesmo acontece com as infecções sexualmente transmissíveis, como o HIV. Motoristas de longa distância, por exemplo, são mais propensos a pagar por sexo, com múltiplos parceiros. Eles fazem paradas noturnas e frequentemente chegam com dinheiro para gastar.
E então, depois da guerra civil, os caminhoneiros frequentemente levavam o HIV de uma parada a outra no corredor de Beira, até voltarem para suas casas e famílias. Profissionais do sexo seguiam o rastro do dinheiro. E o HIV seguiu todos eles.
Enquanto isso, refugiados voltavam de países vizinhos – outro fator que provavelmente contribuiu para um aumento nos índices de HIV. O primeiro caso em Moçambique foi notificado em 1986. Ao fim de 1992, 662 casos haviam sido confirmados. Em 1998, o número aumentou para 10.863.
Em parte, o crescimento dos índices refletiu avanços no diagnóstico, mas não só. Quinze anos depois do primeiro caso, cerca de 1 milhão de pessoas no país estava vivendo com HIV.
Nesse período, reformas políticas e econômicas levaram Moçambique a ser um dos países de maior crescimento na África, com aumentos do PIB de 7% ao ano. O governo deu prioridade à prevenção e ao tratamento do HIV, e doadores internacionais apoiaram. O número de pessoas em tratamento para o HIV aumentou 37 vezes entre 2004 e 2013.
Em meados de 2016, aproximadamente 900 mil pessoas vivendo com o HIV estavam recebendo tratamento antirretroviral, três vezes mais do que em 2012. Uma ampliação na cobertura de tratamento para mulheres grávidas com HIV resultou em um declínio de 73% no número de novas infecções entre crianças em apenas três anos. O número de novas infecções de HIV entre adultos diminuiu 40% de 2004 a 2014.
Moçambique se tornou um exemplo de como combater uma epidemia de HIV. Ainda assim, havia uma peça faltando no quebra-cabeça.
A história de sucesso não se estendeu ao corredor de Beira – nem sequer chegou perto.
Nosso grupo ganha uma recepção calorosa na parada seguinte – o bar Pinta Boca´s Premium. Muitos dos educadores comunitários são rostos conhecidos aqui.
Luísa leva um caderno e anota os números de telefone das profissionais do sexo que querem receber, durante a semana, aconselhamento sobre como e onde pegar medicamentos antirretrovirais. “Quanta custa?”, perguntam. “São de graça”, responde Luísa. Para uma mulher em pé ao lado da mesa de sinuca, as pernas enfiadas no barro, Luísa diz que sim, ela pode buscar medicamentos na clínica se ela ficar sem. E tratamento para tuberculose também? Claro, diz Luísa. Ela vai telefonar no dia seguinte com informações.
As páginas do caderno de Luísa são rapidamente preenchidas.
Um homem que bebe uma garrafa de cerveja Impala se aproxima de uma das mulheres sentadas em cadeiras de plástico na beira da estrada. Ela passa seu bebê gentilmente para uma colega de trabalho e anda em direção às cabanas com o caminhoneiro. Uma rapidinha, como elas dizem.
Jaime, um conselheiro de MSF, se juntou a nós nesta noite. Ele conhece bem essas pessoas. Enquanto brinca com uma criança sentada em seu joelho, um caminhoneiro se aproxima. “Posso fazer o teste?”, pergunta. Jaime o acompanha até uma van e o homem faz o teste de HIV ali mesmo. Um resultado preliminar sai depois de 15 minutos. Se o resultado positivo for confirmado depois, ele vai se juntar ao 1,5 milhão de pessoas vivendo com HIV em Moçambique, segundo a última contagem.
Acabamos voltando para a van – agora com 144 preservativos a menos, cada um de 53 milímetros de largura e feitos de borracha natural. Luísa e pessoas como ela são ideais para estar aqui: se encaixam melhor do que estrangeiros bem-intencionados que, sem experiências parecidas, podem não se conectar nunca de forma tão pessoal com aqueles que estão em risco.
Luísa, de 29 anos e mãe de cinco crianças, conta que seu ex a abandonou logo depois de ela sofrer um estupro coletivo. O ataque a contaminou com o HIV. Para ela, foi tarde demais. Mas não para essas mulheres, acredita ela.
Até o fim desta semana, seu caderninho estará cheio.
Houve infindáveis negociações para tirar do papel o Projeto Corredor de MSF – e nenhuma mulher se empenhou mais por isso que Daniela Cerqueira Batista, coordenadora brasileira do projeto.
Psicóloga de formação, Daniela é atraente sem esforço, com um estilo meio hippie. Quando encontra alguém, sempre há abraços e beijos nas bochechas. Suas mensagens de texto têm mais emoticons que as minhas têm caracteres. Sua energia não é abalada pelo calor opressivo, mesmo tendo que coordenar uma equipe de 90 pessoas em Beira.
Quando ela viu o quão caro era um livro em uma loja local, criou uma biblioteca. Quando não conseguiu encontrar uma bandeira colorida de orgulho LGBT, trouxe um guarda-chuva colorido do Brasil. E então, na rua Dom Francisco Gorjão, o guarda-chuva é um símbolo improvisado do orgulho gay pregado em cima da porta da sede de MSF em Beira.
Muitas reuniões foram necessárias para implementar o Projeto Corredor – com ONGs locais, representantes do setor de transportes, forças policiais, funcionários do Ministério da Saúde, integrantes do sindicato de caminhoneiros, representantes de comunidades fronteiriças e pessoal da alfândega. Além disso, houve sugestões de doadores e instituições de financiamento, entre elas o Plano de Emergência do Presidente dos Estados Unidos para Combate à Aids (Pepfar, na sigla em inglês), o Fundo Global e muitas outras.
O Projeto Corredor não tem a ver apenas com uma organização. Na verdade, são cerca de 300. Em um país de 43 línguas.
Mas essas alianças acabaram sendo frutíferas, explica Daniela, por terem estabelecido relações sólidas com empresas portuárias que realizam sessões educativas com seus funcionários, grupos comunitários de teatro que apresentam espetáculos sobre sexo seguro, e organizações que promovem oficinas e palestras sobre violência doméstica. E o projeto seria incompleto sem a ligação com atendimento médico – os centros de saúde em Ponta Gêa e Munhava.
Há lições que você não vai encontrar nos livros. No início, os que trabalhavam no projeto usavam camisetas de MSF, mas eram rejeitados – profissionais do sexo e caminhoneiros associavam a organização somente à assistência médica e não se aproximavam dos educadores comunitários para que outras pessoas não achassem que eles eram soropositivos. As equipes dos centros de saúde logo aprenderam a entregar os medicamentos antirretrovirais em caixas com rótulos falsos – desse modo, pacientes iam para casa com embalagens que pareciam conter apenas analgésicos.
Clínicas móveis foram instaladas ao longo do corredor com horários de funcionamento flexíveis; profissionais do sexo e caminhoneiros trabalham em horas não convencionais. Conselheiros de MSF e educadores comunitários fazem visitas de porta em porta e param em 200 pontos de concentração ao longo do corredor. Suas equipes apoiam cuidados oferecidos em centros de saúde do governo, de modo que o estigma e a discriminação não afastem essas populações marginalizadas do tratamento. O Projeto Corredor agora se estende por Moçambique e foi levado até o Malauí e o Zimbábue.
Mais recentemente, MSF introduziu passaportes de saúde para todos os pacientes diagnosticados com HIV que estão em tratamento. Contendo resultados de exames e regimes de tratamento, eles permitem a continuidade dos cuidados ao longo de todo o corredor. MSF está trabalhando para que esses passaportes multilíngues sejam reconhecidos no Zimbábue e no Malauí – se tiver sucesso, os pacientes podem receber tratamento ininterrupto para HIV além das fronteiras.
E então há também os educadores comunitários. Nos bares improvisados, são Luísa e as outras profissionais que passam uma sensação real de confiança, conexão, camaradagem e solidariedade. Elas sentiram na pele; às vezes ainda sentem. E na Rua Dom Francisco Gorjão, elas são envolvidas em todos os aspectos do projeto – planejamento, implementação, tomada de decisões e supervisão, em nível local e nacional. Luísa tem a oportunidade, se quiser, de progredir na organização; muitos educadores já se tornaram conselheiros. Outros tiveram apoio para criar seus próprios negócios.
Luísa é remunerada por sua função de educadora. Perguntei a Sebastiana Cumbe, supervisora de apoio psicológico, como isso influencia as profissionais do sexo que trabalham nesse projeto. “Há um salário”, ela me conta. “Mas não é só isso. Elas querem mudar suas vidas e ajudar suas irmãs que estão nas ruas.”
“Você está doente”, disse o parceiro de Luísa. Ele acabara de descobrir que ela havia sido estuprada. Depois, ele a deixou.
Ela já era profissional do sexo há algum tempo quando isso aconteceu. Luísa teve o primeiro filho aos 14 anos; o segundo, quatro anos depois. Ela se tornou a provedora da família quando o parceiro não conseguia trabalho.
Ela se lembra do seu primeiro dia nas ruas. Tomada pela vergonha quando viu um vizinho, ela correu para casa antes do primeiro cliente. Porém, dois dias depois, sem ter comida para os filhos, ela voltou.
Ela sempre se assegurava de que os clientes usassem preservativos, mesmo que eles quisessem pagar mais se ela os atendesse sem. Se alguém se recusava, ela também se recusava. Ela continuava sendo HIV negativo.
“Metade do dinheiro agora”, o cliente disse naquela noite. “E metade depois.” Ele queria que ela fosse para longe das cabanas. No carro, ele telefonou para os amigos.
“Ele tirou uma arma e me disse para sair. E eu saí. Me mandou tirar a roupa e eu tirei. Os amigos chegaram. Eles fizeram sexo comigo, cinco pessoas. Sem camisinha. Depois me largaram ali. Eu não tinha mais forças. Recolhi minhas roupas, peguei uma carona e fui para o hospital.”
Os ferimentos externos e internos de Luísa eram tão graves que ela não pôde trabalhar pelos seis meses seguintes.
Ela foi testada pouco tempo depois. Deu HIV positivo.
No mundo todo, profissionais do sexo são 12 vezes mais propensos a serem HIV positivo do que a população geral. Em 16 países da África subsaariana analisados em 2012, a prevalência de HIV entre profissionais do sexo era de 37%.
“Quando eu estava doente”, contou Luísa, “meus filhos acabaram não indo para a escola porque eu não podia mais pagar o transporte escolar. MSF sempre vinha para me levar ao hospital. Não tinha mais nada para comer porque não podia voltar às ruas. Eles me deram uma carta e fui buscar comida. Comecei a tomar remédios. Lentamente, me recuperei”.
Luísa hoje tem cinco filhos, de idades entre 2 e 14 anos.
Ela se tornou uma educadora de MSF há dois anos. Enquanto anda no barro seco, em meio a cacos de vidro, eu vejo algo nela. Energia. Empatia. Uma necessidade de ajudar os outros da mesma forma que outros a ajudaram.
Ela trabalha menos nas ruas do que antes. Mas não se arrepende de suas escolhas. “Eu teria sentido mais vergonha se tivesse que implorar por dinheiro. Foi uma decisão consciente. Quando meu coração me diz para fazer algo, eu faço.”
De volta à rua Dom Francisco Gorjão, conheço Antonio*, de 22 anos. Ele explica que o Projeto Corredor alcança outras populações em risco, não só as que trabalham com sexo. Estratégias similares são usadas para cada grupo, apesar de suas diferenças.
Desde a infância em Maputo, Antonio sabia que era diferente de seus amigos. Ou ao menos o faziam se sentir diferente. Enquanto brincava com bonecas e kits de cozinha, sua madrasta dizia para ele brincar com carros e para ter amigos meninos em vez de meninas. Na adolescência, ele foi mandado a Beira para viver com os primos. “Aqui eu me sentia confortável”, ele diz. “Podia pintar minhas unhas, usar maquiagem e vestidos sem medo.” Às vezes, era maltratado na escola, mas Beira se tornou seu lar.
Sua relação com a própria família foi mais difícil. Recentemente, ele visitou a casa da irmã com uma amiga gay. Sua irmã disse que, se descobrisse que as filhas são gays, as assassinaria com as próprias mãos.
Antonio trabalha como educador comunitário para homens que fazem sexo com homens (HSH). Mundialmente, homens gays e outros HSH são 19 vezes mais propensos a serem HIV positivo do que a população geral. Um estudo recente em Beira revelou que um terço dos homens que fazem sexo com homens com mais de 25 anos de idade está vivendo com HIV.
Outro estudo recente sugeriu que um terço dos HSH de Beira nunca fez o teste de HIV. Desses, 14% disseram que isso ocorreu porque eles não sabiam aonde ir.
Com prevalências de HIV tão altas entre os homens que fazem sexo com homens de Beira, o objetivo do trabalho de MSF é ampliar estratégias preventivas. É então que entra a orientação da Profilaxia Pré Exposição, conhecida como PrEP, na sigla em inglês. Ao tomar determinada combinação de medicamentos em um comprimido diário, as pessoas podem reduzir o risco de contrair HIV em mais de 90% (isso não protege contra outras infecções sexualmente transmissíveis e a irregularidade no uso diminui sua eficácia).
José Carlos Beirão gere o Projeto Operacional de Pesquisas de PrEP, estabelecido no escopo do Projeto Corredor em 2016 e o único do tipo em Moçambique. Até agora, 214 participantes, homens que fazem sexo com homens e mulheres profissionais do sexo, foram recrutados – o projeto espera chegar a 250 pessoas. Beirão espera que, ao fim do projeto, ele possa entender a demanda por PrEP e se seria possível implementar um programa de PrEP em larga escala.
Eu pergunto a Ken Ho, especialista em HIV e pesquisador da PrEP na Universidade de Pittsburgh, se ele pensa que a estratégia usada no corredor pode ser aplicada a contextos fora de Beira.
“Sabemos que os homens que fazem sexo com homens jovens e negros são desproporcionalmente afetados pelo HIV”, ele explica. “Essas são as mesmas pessoas que podem ter acesso limitado a cuidados médicos em decorrência da falta de plano de saúde, desconfiança de instituições médicas ou medo de sofrerem preconceito.” Ele acredita que a estratégia usada no corredor pode ser aplicável aos Estados Unidos, ao menos na etapa inicial de estabelecer uma relação com populações difíceis de alcançar.
O especialista, no entanto, acautela: “O risco é que essas intervenções direcionadas funcionem mais como um curativo e permitam – ou talvez até encorajem – que os problemas estruturais persistam. Elas são um primeiro passo necessário. A questão mais ampla é o que podemos fazer para remover o estigma e outras barreiras responsáveis pelas disparidades.”
A autoconfiança de Antonio aumentou desde a época da escola, ele me diz.
Para ele, é uma questão de visibilidade. Quando chegou a Beira, ninguém parecia com ele. Hoje, ele vê pessoas parecidas. Os meninos que estão crescendo hoje, acredita, vão ter uma chance de pensar diferente por conta disso: se eu vejo, eu posso ser.
Estou do lado de fora do aeroporto de Beira, justo onde José Manuel foi morto a tiros em abril de 2016. Ele era um representante da Renamo no Conselho Nacional de Defesa e Segurança. Antes um grupo armado, a Renamo é agora um partido de oposição. Um informe da Human Rights Watch relatou que a polícia levou dez horas para chegar à cena do crime.
O conflito armado recomeçou em Moçambique em 2015, depois de duas décadas de paz. O resultado das eleições gerais de 2014, vencidas pela Frelimo, foi contestado violentamente pela Renamo. Houve execuções sumárias de pessoas em aldeias, sequestros, violência sexual, assassinatos políticos, ataques a clínicas de saúde, a ônibus e até relatos de covas comuns.
Moçambique corria o risco de voltar ao caos político do passado. Por causa da violência, mais de 11 mil moçambicanos fugiram para o Malauí e o Zimbábue. Ao fim de 2016, uma trégua foi acordada e a maioria dos refugiados retornou, mas muitas famílias continuaram deslocadas internamente.
Em 2016, o crescimento econômico caiu pela metade, com uma queda significativa no preço dos produtos primários. Então, houve uma confissão surpreendente e devastadora do governo: ele havia dado garantias de 1,5 bilhão de dólares a empréstimos secretos e inconstitucionais. Quatorze países doadores e instituições multilaterais – como o Reino Unido, o Fundo Monetário Internacional e o Banco Mundial – imediatamente suspenderam o apoio direto ao orçamento do Estado. A dívida externa do país subiu para 9,9 bilhões de dólares – um aumento de 20% em relação aos cinco anos anteriores.
No início de 2017, surtos de cólera haviam se tornado tão comuns que mal chegavam aos noticiários nacionais. O custo do pão e outros itens básicos estava aumentando. A moeda estava se desvalorizando. Enfermeiros não eram pagos. O cessar-fogo estava sendo mantido, mas não sem dificuldades.
Pessoas comuns em Moçambique estão pagando um preço alto. É possível que isso também aconteça com o Projeto Corredor.
A infraestrutura de saúde já está em risco. Há apenas três médicos para cada grupo de 100 mil pessoas, uma das piores taxas do mundo. Mais da metade da população precisa andar durante uma hora ou mais até a unidade de saúde mais próxima. Mais da metade das unidades médicas carecem de eletricidade e 41% delas não têm água corrente.
Alex Vines, especialista em Moçambique, é coordenador do Programa para a África na Chatham House, um centro de estudos de Londres, desde 2002. “Como os eventos políticos e econômicos recentes vão afetar o sistema de saúde de Moçambique e, por sua vez, o Projeto Corredor?”, pergunto a ele.
Vines diz que pelo menos o cessar-fogo é por tempo indefinido e que as chuvas dos últimos meses permitiram algum respiro econômico. “Mas o peso da dívida – por causa dos empréstimos secretos e da suspensão do apoio financeiro direto dos doadores internacionais – afetou seriamente as finanças do governo, o que tem um impacto terrível no sistema de saúde e programas de HIV”, ele explica.
Doadores internacionais financiam mais de 95% do programa de HIV de Moçambique. O Projeto Corredor depende significativamente desse financiamento, e poderia ser seriamente prejudicado. Vines, apesar disso, está esperançoso: “Acredito que os doadores internacionais vão retomar seu apoio direto ao governo, mas serão mais rígidos com a prestação de contas. A confiança é crucial. ”
O que vai acontecer futuramente com o apoio ao sistema de saúde e, consequentemente, com o Projeto Corredor, dependerá, em parte, do resultado de uma auditoria independente sobre os empréstimos secretos, segundo Vines.
Uma dúvida persiste, diz Vines, em relação a alguns dos principais doadores. Donald Trump propôs um corte na ajuda internacional dos Estados Unidos à saúde, o que afetará os programas de planejamento familiar em Moçambique. Não está claro quem preencherá essas lacunas. A antiga posição de país “queridinho dos doadores” não está mais assegurada.
A retirada de fundos do Projeto Corredor ronda o dia a dia de Caroline Rose, coordenadora-geral de MSF em Moçambique. “Estamos recebendo mais e mais pedidos de unidades de saúde com problemas: ‘Vocês podem consertar nossa ambulância?’, ‘Podem transportar medicamentos de nossa clínica para outros distritos?’, ‘Podem pagar pelo combustível?’.” Ela está negociando com doadores internacionais do projeto, encorajando-os a implementar estratégias temporárias de financiamento até que soluções de longo prazo sejam negociadas.
Vines prevê que o país vai enfrentar alguns anos difíceis antes de começarem as exportações em grande escala das reservas de gás, previstas para meados dos anos 2020. Moçambique entra agora em outro ciclo de eleições, que sem dúvida será acirrado e provavelmente vai durar os próximos dois anos. “Enquanto isso, a luta diária do moçambicano comum continua sendo para sair da pobreza.”
E, então, mulheres como Luísa continuarão caminhando em direção àquelas cabanas toda noite. Elas vão correr riscos para alimentar suas famílias. Iniciativas como o Projeto Corredor serão cada vez mais necessárias.
Luísa está saudável e otimista em relação ao futuro e ao de seus filhos. O corredor foi onde ela encontrou, em diferentes momentos, sustento, traumas indescritíveis, sentimento de comunidade e agora um propósito. Esse lugar de certa forma definiu sua vida, mesmo que a tenha colocado em perigo.
Em 2014, o Projeto Corredor foi estabelecido para alcançar os inalcançáveis. Noite após noite, de ponto quente em ponto quente, de um posto de gasolina a outro. Ainda é cedo, mas ele já se conectou com milhares de profissionais do sexo e caminhoneiros. Dados preliminares sugerem que isso está dando um impulso significativo à prevenção e ao tratamento de HIV. E o projeto se recusa a esmorecer, mesmo diante do financiamento incerto e de um ambiente político conturbado.
A noite acabou para nós. Em poucas horas, o sol nascerá. Comerciantes vão abrir suas barracas no Mercado do Goto para apregoar frutas e vegetais. Pescadores vão consertar suas redes próximo ao farol da praia de Macúti, os botes de madeira fincados na areia. Luísa levará seus filhos para a escola.
Daniela vai abrir as portas de seu escritório sob o guarda-chuva colorido.
O Projeto Corredor verá mais um dia.
Fonte: Le Monde Diplomatique Brasil