Por Tatiane Lopes e Vitória Camargo.
A base de muitos “favores” e “parcerias” os anos de chumbo foram um momento excepcional para o crescimento das maiores empreiteiras do Brasil e a consolidação de suas relações de corrupção com o Estado que duram até hoje.
O golpe militar e o longo período de 21 anos que a ele se seguiu, marcado por perseguições políticas, tortura e aprofundamento de ataques aos trabalhadores, é justificado por alguns setores da direita com o argumento do “combate à corrupção”. Já mostramos dez escândalos abafados pela ditadura, bem como alguns famosos políticos corruptos que são parte de seu legado, como ela não teve nada a ver com a defesa dos interesses nacionais e heranças deixadas por esse regime que fazem parte do que há de pior no país hoje, mas não pára por aí, um dos exemplos ilustrativos de que a corrupção correu solta durante os anos de chumbo são as relações desse regime com as empreiteiras que hoje estampam os noticiários de corrupção e se consolidaram justamente neste período.
É no mínimo ingênuo (para não dizer desonesto e oportunista) defender que na ditadura militar brasileira não houve corrupção, os chamados “tempos de ouro” da política brasileira. Pelo contrário, foram os tempos em que o Estado consolidou suas relações espúrias, como “balcão de negócios”, com as grandes empreiteiras que hoje estampam novos escândalos de corrupção.
Se a relação dos governos brasileiros com essas empresas que dizem respeito ao setor da infraestrutura remontam das décadas de 30 a 50 e das metas de JK, nos “50 anos em 5”, é fundamental apontar que é a partir do golpe militar que as propinas se tornam moda e prática recorrente entre o Estado e esses setores, consolidando seus lucros como política pública. Por sua vez, na ditadura quaisquer investigações eram impossibilitadas, em um regime em que os próprios militares eram seus juízes e “lidavam” com seus opositores na base da censura e da perseguição política.
A Odebrecht, como apontamos aqui, foi a empresa que mais cresceu nos anos de chumbo. No início da ditadura, diferente da já gigante Camargo Corrêa, a Odebrechet era apenas uma construtora com influência regional e ligação com os políticos baianos. Em 1969, o ditador Costa e Silva barra empresas estrangeiras de participarem das obras públicas no Brasil – obras estas que não eram poucas, diga-se de passagem. Com Transamazônica, Itaipu, Tucuruí, Angra, Ferrovia do Aço e Ponte Rio-Niterói, grandes grupos monopolistas conquistaram definitivamente seu espaço no colo do Estado – e um show de escândalos de corrupção, a Odebrecht foi um deles.
Como mostram os importantes estudos de Pedro Campos, em “Estranhas Catedrais”, e em seu artigo para o livro “Os donos do Capital” a empresa construiu seu legado de propinas estabelecendo sempre íntimas relações com os militares. Especialmente depois do governo Médici a Odebrecht a partir da relação com os militares que estavam ligados a Petrobras arrematou dois contratos que fizeram seu orçamento triplicar em um ano, o aeroporto supersônico do Galeão e a Usina de Angra, neste ano de 1974 a empresa passou de 13º a 3º na lista das maiores empreiteiras do país, e nunca mais saiu do topo. Outra beneficiada no período, com trajetória parecida de empreiteira regional à multinacional de sucesso graças às parcerias corruptas, primeiro com o governo estadual de Minas com JK à cabeça, depois com os militares, e hoje também bastante conhecida dos noticiários é a Andrade Gutierrez, querida dos ditadores (de 11º a 4º lugar em cerca de um ano).
Norberto Odebrecht, fundador da empreiteira baiana foi atuante politicamente no processo de redemocratização, junto aos militares e colegas empresários, é claro, participando de iniciativas como o Movimento Cívico de Recuperação Nacional, liderado por Hebert Levy e composto pelo ex-ministro de Geisel, Nelson Gomes Carneiro, além de empresários da Volkswagen, Roberto Marinho e José Ermírio de Moraes e Victor Civita. Durante a Constituinte a Odebrecht também se aliou ao “centrão” e aos militares para defender leis que definiam a “empresa nacional”.
Ironicamente, a empresa que tem hoje seus principais executivos presos pelos escândalos de corrupção, em nome da competição empresarial e sede de lucros, chegou a pagar mesada para uma funcionária da embaixada francesa que foi demitida depois de delatar esquemas de corrupção envolvendo Delfim Neto e a Camargo Corrêa. Mas como sujo que fala do mal lavado não dura muito, foi em 1992 que Emílio Odebrecht, hoje preso em sua mansão, saiu a público pela primeira vez para explicar as acusações de suborno ao governo do Acre e também ao então ministro de Collor, Rogério Magri:
“… Primeiro vamos analisar o que é subornar… Hoje para o sujeito resolver alguma coisa, para sair de uma fila do INPS, encontra seus artifícios de amizade, de um presente ou de um favor…”, e continuava justificando o suborno em resposta ao jornalista do Jornal do Brasil: “se for preciso a gente banca o funcionário para levar [os processos que não podem “dormir na mesa”] de um andar para o outro e assim por diante”.
A lógica de atuação em que o Estado é de fato um balcão de negócios para a burguesia, bem expressa já nesta primeira entrevista de Emílio e sua parceria com a ditadura e os demais governos que seguiram na democracia brasileira e permitiram tornar a empreiteira a maior multinacional brasileira do setor está longe de ser exclusividade da Odebrecht.
A gigante paulista Camargo Corrêa começa sua história de corrupção junto ao Estado ainda antes do golpe militar de 64 e, nos seus primeiros anos, favorecida pela parceria com o governador-interventor de São Paulo, Ademar de Barros, cujo Silvio Brand Corrêa era cunhado, chegou à ditadura militar como a maior do ramo. Chegou bem e continuou melhor ainda. Em mais de 40 anos de história a Camargo Corrêa nunca ficou fora do top 5 das empreiteiras do país, liderando o ranking durante doze anos, sendo oito seguidos e não coincidentemente, todos os anos em que liderou o ranking foi no período de 1964-1988, mais ligada à ditadura impossível.
As parcerias entre Camargo Corrêa (CC) e Companhia Energética do Estado de São Paulo (Cesp), dirigida durante a ditadura por engenheiros da USP que eram próximos de Sebastião Camargo permitiu que a CC se tornasse a empresa que mais construiu hidrelétricas no período, chegando aos anos 80 como a maior companhia de energia do planeta, que construía as maiores hidrelétricas do mundo naquele momento (Itaipú, Guri na Venezuela e Tucuruí).
Um registro de conversa de 1973 contido no artigo de Pedro Campos no livro “Os donos do Capital”, apanhado pelo serviço de espionagem do Estado, mas obviamente mantido em segredo durante a ditadura, entre o general João Figueiredo e Golbery de Couto e Silva, mostrava que eram corriqueiras o acerto prévio, antes da concorrência, para fechar contratos milionários como o da hidrelétrica de Água Vermelha e que havia uma forte parceria entre a Camargo Corrêa, o Bradesco e a Votorantim.
E não eram só as hidrelétricas que alimentavam as relações espúrias entre a empreiteira e o Estado, especialmente em São Paulo a CC esteve na construção de quase tudo, aeroporto de Guarulhos, Imigrantes, Anchieta, Bandeirantes, Metrô, Sabesp, Sistema Cantareira, entre outros.
Sebastião Camargo nunca teve medo de se meter com a política, era membro do Círculo Militar de São Paulo, foi diplomado honoris causa pela Escola Superior de Guerra em 1967, era ligado ao ditador paraguaio, Alfredo Stroessner, e conhecido financiador da repressão e tortura da ditadura através da Operação Bandeirantes.
Não é de se estranhar que uma empresa dirigida por um homem desses tenha se dado muito bem no regime militar. Essa truculência na política se desdobra na superexploração dos trabalhadores, que em condições degradantes de trabalho, em alojamentos que pareciam para animais no meio da selva amazônica, protagonizaram marcantes greves selvagens seja durante a ditadura na construção da usina de Tucuruí nos anos 80, ou mais recentemente nas obras de Jirau, em 2001.
Essas empresas se transformaram em grandes conglomerados ao longo de sua jornada de beneficiamento, se espalharam por ramos distintintos e se encaixam bem como “donos de tudo”.
Na lógica das licitações do Estado, obras estimadas em R$ 2,5 bi chegaram a custar R$ 10 bi, como é o caso da hidrelétrica de Tucuruí. O esquema se mantém o mesmo até hoje: quando não são feitos acertos prévios, prática muito comum, as menores licitações ganham as obras e, assim, postergam os prazos, precarizam os serviços e lucram muitas vezes mais do que o previsto inicialmente. Nesse sentido, a Copa do Mundo brasileira não foi em nenhuma medida inovadora. Acidentes de trabalho, sem nenhuma fiscalização, e obras infinitas eram verdadeiras especialidades dos ditadores.
Os subornos, favores, parcerias e toda forma de corrupção entre empresários e Estado no capitalismo não começaram na ditadura, mas tiveram nela um impulso singular na história do país, que garantiu que se consolidassem e seguissem crescendo até os dias de hoje. Uma anedota contada no livro “História de Empreiteiros” de Henrique Guedes é bastante ilustrativa. Abordado por um antigo administrador do governo de São Paulo, numa ocasião de posse no Palácio dos Bandeirantes, Sebastião Camargo teria dito: “ – Olá Sr. Sebastião, o senhor também por aqui? – Eu… estou sempre por aqui… os senhores é que mudam”.
A relação entre Estado e capital é inerente ao sistema capitalista, seja na democracia ou na ditadura. Sebastião Camargo sempre soube que governos e regimes mudam, mas que o capital que as elites detém é capaz de corromper qualquer um em favor de nunca parar de crescer, por isso, por mais que brade a Lava Jato e se faça crer como paladina de alguma justiça, se trata apenas de realocar os jogadores,trocar um esquema de corrupção por outro, mais internacional, mais subserviente ao imperialismo garantindo o lucro de alguns dos donos do mundo. Nessa toada, juízes ganham dinheiro e prestígio, golpes se fazem contra direitos constitucionais aumentando o poder de repressão, governos balançam mas compram apoio em troca de garantir reformas contra os trabalhadores para que esses senhores donos do capital sigam explorando tudo que podem do nosso sangue e suor.
Não há combate a corrupção sem enfrentar a propriedade dos capitalistas e os privilégios dos políticos. Só expropriado essas empresas e fortunas que se fizeram a base da exploração do trabalho e do dinheiro público é possível combater a corrupção. São os trabalhadores da construção civil que adoecem e morrem para construir o Brasil os que podem melhor gerir as riquezas de seu próprio trabalho.