Por Eduardo Viveiros de Castro.
“Pôr em xeque a supremacia do pensamento ocidental-moderno fazendo-o experimentar outras ontologias, outras epistemologias e também outras tecnologias.” Esta é, segundo Renato Sztutman, organizador do excelente livro Encontros (Azougue Editorial, 254 pgs ), uma das intenções das reflexões antropológico-sociológico-políticas de Eduardo Viveiros de Castro. Inspirando-se em fontes tão variadas como o Movimento Tropicalista dos anos 1960, a Antropofagia de Oswald de Andrade, a literatura de Guimarães Rosa, a análise filosófica de Deleuze e Guattari, as teorias revolucionário-baderneiras de Hakim Bey, sem falar num punhado de outros antropólogos (Lévi-Strauss, Roy Wagner, Marilyn Strathern…), Viveiros de Castro é um dos estandartes na resistência atual “contra a sujeição cultural na América Latina aos paradigmas europeus e cristãos” (Sztutman).
Mais de 30 anos atrás, quando começou a estudar antropologia, Viveiros de Castro rememora: “naquela distante época estávamos sendo acuados pela geopolítica modernizadora da ditadura – era o final dos anos 1970, que nos queria enfiar goela abaixo o seu famoso projeto de ocupação induzida (invasão definitiva seria talvez uma expressão mais correta) da Amazônia”.
Um dos esforços deste antropólogo, desde então, foi revelar a complexidade e riqueza dos povos indígenas da América Latina com a constante preocupação em “conceber todo nativo em sua capacidade de fabricar teorias sobre si e sobre outrem”, como diz Sztutman. O conceito de “perspectivismo ameríndio”, que caracterizaria o “jeito” indígena de conceber a realidade, visa nos abrir os olhos para outro modo de perceber o real, uma perspectiva nas antípodas do cartesianismo/positivismo tão típico do nosso Ocidente.
Por “perspectivismo ameríndio” ele se refere à “concepção indígena segundo a qual o mundo é povoado de outros sujeitos, agentes ou pessoas, além dos seres humanos, e que vêem a realidade diferentemente dos seres humanos” (p. 32).
“Uma das teses do perspectivismo é que os animais não nos vêem como humanos, mas sim como animais” (p. 35), aponta Viveiros de Castro. Por exemplo: para os homens, as onças no mato são apenas animais, “bestas”, “feras”; mas para as onças no mato, os homens é que não passam de bichos (e de carne sedutoramente suculenta). Outro exemplo: na perspectiva dos urubus, a carniça… é um delicioso peixe-assado.
Viveiros de Castro, com aquilo que aprendeu morando e convivendo com os nativos da Amazônia, convida-nos a olhar o mundo com outros olhos, num exercício de outramento através do qual podemos vivenciar o real à maneira do perspectivismo ameríndio, isto é, concebendo uma multiplicidade de consciências que se esparramam por toda a paisagem do real, sendo que cada animal teria uma tendência a fazer de sua perspectiva uma espécie de “centro-do-mundo”, de conceber-se como “subjetividade” e objetificar o outro.
Em muitos mitos indígenas, deparamos com a noção de que os animais são criaturas que foram humanas um dia. “Tal humanidade pretérita dos animais nunca é esquecida, porque ela nunca foi totalmente dissipada, ela permanece lá como um inquietante potencial – justo como nossa animalidade “passada” permanece pulsando sob as camadas de verniz civilizador” (p. 36).
Donde emergem frases, aparentemente absurdas, altamente poéticas, inspiradoras de reflexões altamente interessantes, como “onça também é gente” ou “a oncidade é uma potencialidade das gentes” (p. 38).
Com muito senso de humor, Viveiros de Castro aponta:
“considerar que os humanos são animais não nos leva necessariamente a tratar seu vizinho ou colega como trataríamos um boi, um badejo, um urubu, um jacaré. Do mesmo modo, achar que as onças são gente não significa que se um índio encontra uma onça no mato ele vai necessariamente tratá-la como ele trata seu cunhado humano. Tudo depende de como a onça o trate… E o cunhado…” (p. 38)
Este pensamento antropológico decerto tem todo um impacto político, todo um “ideal” de diversidade socioambiental, todo um plano de resistência às práticas que Raul Seixas satirizava como o “alugar o Brasil”,; há implícita (e às vezes escancarada) toda uma revolta contra os desenvolvimentismos ecocidas, destruidores não só de ecossistemas que sustentam a biodiversidade, mas des-respeitosas afrontas à outridade de outros cujas perspectivas poderiam ampliar as nossas, cujas sabedorias poderiam fecundar a nossa ocidentalóide sophia.
Excerto de Eduardo Viveiros de Castro: “A revolução faz o bom tempo” ,clique no link para ler na íntegra e assistir vídeo